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A mãe não é só minha

O ‘reino’ do primogénito acaba com o nascimento de um irmão. Mesmo com cuidado, não há maneira de evitar ao que nasceu primeiro algum ressentimento e ciúme. Em regra, não é grave. É crescer...

17 de setembro de 2006 às 00:00

O Manuel tem sete anos e descuidou-se. Quando, de manhã, a avó foi acordá-lo com um beijinho na bochecha, sentiu-se molhado. Olhou por debaixo do lençol e viu que tinha feito xixi. “Não digas a ninguém, avó.” Aquele foi o primeiro descuido desde que deixou de usar fraldas, ainda era bebé. O bebé da casa agora é outro: o Afonso. O Manuel deixou de ocupar o centro das atenções. Ter urinado na cama pode ser um sinal de que sofre por causa disso.

Pode ser um sinal. Não é ainda um problema. “Justifica-se a intervenção clínica apenas em situações de grande desajuste”, explica Sónia Duarte Lopes, psicóloga que colabora com a Associação para o Planeamento da Família (APF). Mostram grande desajuste as crianças primogénitas que, após o nascimento de um irmãozinho, revelam, por exemplo, instabilidade motora ou têm comportamentos autodestrutivos.

Não é, por enquanto, o caso do Manuel, assegura a mãe, Maria de Lurdes Machado, 39 anos. “É uma criança activa. Tem muitos interesses. É bom aluno e gosta da escola.” O que preocupa Maria de Lurdes é o hábito recentemente adquirido pelo filho de roer as peles das unhas. “Chega a fazer ferida.”

O Manuel mostra-se carinhoso com o irmão, de 14 meses. Quer pegar-lhe, teme que caia ao tentar pôr-se de pé, preocupa-se quando o vê com algum objecto pequeno na mão, receando que o leve à boca e engula. Mas, quando a mãe lhe pede para não falar alto “porque o mano está a fazer a sesta”, o Manuel lamenta:“Oh... é sempre o mano.”

Maria de Lurdes, ela própria primogénita, não ignora a gama de emoções, entre o ciúme e o ressentimento, que, nos últimos tempos, têm sacudido o Manuel. “Tentei explicar-lhe, através de um desenho, que o lugar dele no meu coração se mantinha exactamente igual; que, com o nascimento do Afonso, o meu coração só teve de aumentar para acolher o amor pelo irmão.” O Manuel olhou para o desenho, disse “eu sei, mãe” e foi brincar para o quintal.

“Quis mostrar-me que já era grande, mas eu conheço-o e sei o que se passa dentro dele. De certa maneira, é inevitável: é preciso que se adapte a uma nova situação e isso faz parte da vida”, afirma a mãe do Manuel e do Afonso.

Quando a Matilde nasceu o João tinha cinco anos e “falava clarinho, clarinho”, diz o pai, Francisco Rodrigues. “Pronunciava bem as palavras, sem ‘comer’ sílabas. Mesmo as mais difíceis, como ‘fri-go-rí-fi-co’, eram fáceis para ele.” Opai não sabe dizer em que momento, após a chegada da irmã, o João começou a falar como um bebé, mas lembra-se de uma palavra lhe ter soado estranha: “p’aia” para dizer “praia”.

O que aconteceu ao João é, em Pediatria, exemplo de comportamento de regressão – ‘esquecem-se’ competências já adquiridas. Tais situações verificam--se sobretudo em crianças mais novas, que são incapazes de verbalizar os sentimentos. Para além de adoptarem a ‘conversa de bebé‘, podem voltar a chuchar no dedo ou a beber pela garrafa.

As mais velhas expressam normalmente o que sentem testando a paciência dos pais. O resultado é garantido quando, por exemplo, se recusam a comer ou demoram muito a preparar-se de manhã, atrasando a saída de casa para a escola. O Manuel desenvolveu outra táctica: aperta o Afonso, num abraço muito forte, irrita-o, fá-lo chorar – não de dor mas de irritação – e assim desperta, fatalmente, a atenção da mãe.

Certo é que não foi só a vida do Manuel que mudou. Também a da mãe deu uma volta com o nascimento do Afonso. “Foi uma decisão consciente. Planeámos a chegada do Afonso”, sublinha, admitindo, mesmo assim, ter-se sentido sobrecarregada, especialmente após, terminada a baixa de parto, ter voltado ao trabalho, num escritório de advogados. Entretanto, em casa, as tarefas duplicaram.

“Eu tento ser paciente com o Manuel, mas, às vezes, não consigo. Levanto o tom de voz, ordeno-lhe que pare de irritar o irmão e que vá para o quarto, de castigo.” Testar a paciência dos pais quando eles estão fatigados tem consequências.

O melhor pode ser ‘abrir o jogo’ com o filho mais velho. Dizer-lhe, por exemplo, para começo de conversa, “parece-me que estás zangado por causa do teu irmão”. Mas este é o último recurso. Há muito a fazer antes, desde que o irmão é só uma ‘semente’ a germinar na barriga da mãe. Permitir que o primogénito participe na decoração do quarto do irmão e escolher um brinquedo para repartir e outro de uso exclusivo são estratégias úteis para integrá-lo na nova vida da família.

Muitas vezes as crianças gostam de sentir-se mais velhas. Dizem até que já não são bebés e são-no ainda. Este sentido de responsabilidade infantil é valioso quando nasce um irmão. Para além de psicóloga, com experiência nas questões da família, Sónia Duarte Lopes acaba de ter o seu segundo filho. O primeiro é uma menina. “Ela gosta de tratar do bebé, gosta de mexer nas fraldas e no biberão.”

Não é fácil resistir aos encantos de um bebé. Mas uma criança mais velha também tem ‘pontos fortes’. Realçá-los fá-la sentir-se valorizada diante dos outros e também perante si mesma. “É importante mostrar-lhes que são especiais porque já sabem escrever e ler ou porque podem dormir mais tarde e manter a luz do quarto acesa.” O que está em causa é a consciência da individualidade, de que cada pessoa é irrepetível e todas têm lugar nos corações, extensíveis, das mães.

PAIS MAIS EXIGENTES COM O PRIMOGÉNITO

Os pais são, em regra, mais exigentes com o primeiro filho. Não cedem, por exemplo, em questões relacionadas com os horários de adormecer e das refeições. Com o segundo, mostram-se mais flexíveis. De acordo com esta teoria, o primeiro filho tende a ser mais conservador e obediente, enquanto o mais novo tem uma atitude descontraída. É ainda de esperar que o mais velho influencie a formação da personalidade do bebé da família. Os dois falam uma língua – a da infância – que os pais apenas teoricamente dominam e isso aproxima-os. Mas também pode suceder o contrário, ou seja, o pequeno a exercer influência sobre o maior. Tal sucede quando o filho mais velho, sobrecarregado pelos pais, colhe a simpatia e solidariedade do mais novo, que tem a vida facilitada e pode tomar o partido do irmão perante os adultos.

Gestos simples dos pais podem reduzir consideravelmente a angústia de uma criança que se sente ameaçada por um irmão.

FALAR DO ASSUNTO

Encoraje o seu filho mais velho a falar sobre o que sente, a verbalizar o ressentimento, a raiva ou outras emoções negativas que o irmão lhe suscite. Se ele não for ainda capaz de expressar os seus sentimentos, não se espante se começar a desobedecer-lhe ostensivamente.

REGRAS PARA CUMPRIR

Regras são regras e são para cumprir. Não deixe de aplicá-las se o seu filho mais velho as desafiar conscientemente. Tente, contudo, perceber o que terá motivado tal conduta. Pode significar que ele precisa de passar mais tempo sozinho consigo.

LITERATURA

Bem administrada, a literatura pode ser um bom remédio para as dores de crescimento. Por isso, leia ao seu filho mais velho histórias que lhe permitam entender as mudanças em curso na família. Livros que ‘falem’ de crianças com medo de perder o amor dos pais.

TEMPO

Tempo é fundamental. Um bebé dá muito trabalho, mas o filho mais velho, mesmo se não precisa que lhe mudem as fraldas ou o adormeçam, não dispensa tempo a sós com os pais. Uma ideia é levá-lo sempre consigo à mercearia, por exemplo. Ele saberá que esse tempo é só dele.

O MAIS VELHO: OPINIÃO DA JORNALISTA DULCE GARCIA

Imagine que o seu marido chega um dia a casa com uma bela rapariga pela mão e anuncia: ‘Querida, esta é a minha nova mulher. A partir de hoje vai partilhar a vida connosco e vamos ser todos muito felizes’. Chocante? Pois é mais ou menos isto que sente um filho único quando os pais lhe aparecem com um maninho, ou maninha. A comparação até foi feita por uma pediatra.

Daí para a frente, é sempre a piorar. Primeiro, a coisa rosada que não anda nem fala passa os dias a chorar e monopoliza a atenção da mãe, antes tão pronta a dar festinhas e colo. A seguir, a coisa começa a mexer-se e a destruir tudo à sua volta – é verdade que uns são mais rangers do que outros mas, de um modo geral, nenhum bebé resiste a rasgar a caderneta de cromos do irmão mais velho.

Nas festas, jantares ou reuniões sociais, as atenções mudam bruscamente de alvo. O menino bonito e esperto passa a ser apenas o irmão do bebé, da mesma forma que a Maria e o Manuel deixaram cair os nomes próprios para ser a mãe e o pai dos seus filhos.

E presentes? É melhor nem falar nisso. A coisa nasceu e de repente chovem rocas e peluches e brinquedos de luz e de som, cada vez que toca a campainha. Felizmente, às vezes aparecem pessoas sensatas – as que também levam um presente para o irmão mais velho.

Há-de chegar um momento em que o primogénito não aguenta mais e dispara: “Disseste que eu ia ter um mano para brincar e afinal veio isto.” Isto, no meu caso, é um furacão de 34 meses que até dentadas dava na lombada dos livros. Partiu o leitor de CD e DVD, a televisão, a mesa da televisão e todos os electrodomésticos que apanhou pelo caminho. Há duas semanas foi pela primeira vez à escola. E tem passado os últimos dez dias a choramingar porque não quer lá ficar. Adivinhem quem é que a vai consolar à sala quando ela irrompe num pranto: o irmão.

Os beijos e os abraços que ele lhe dá garantem-me esta coisa maravilhosa: ele já percebeu por que é que há sempre um irmão mais velho.

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