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Chumbadas por falta de vagas

Seguiram aquela que acreditaram ser a sua vocação, mas hoje nenhuma leciona

18 de setembro de 2016 às 15:00

Sou maquilhadora há quatro anos", diz Priscila Veríssimo, de 34 anos. Licenciou-se em Filosofia e durante dois anos tirou a especialização em didática e pedagogia que a tornou apta a dar aulas. Fê-lo durante oito anos "em várias escolas, em vários níveis, de várias disciplinas do meu grupo", que além da Filosofia, inclui também a Sociologia, a Psicologia e a Antropologia. As várias experiências incluíram aulas a alunos de secundário, mas também a adultos feitos que frequentavam cursos profissionais. "Tentei tudo", diz Priscila, a viver na Amadora.

Fora do País está Cláudia Ramires, de 37 anos, que já morou em Madrid, Luanda e que agora vive em São Paulo, no Brasil. Estudou Línguas e Literaturas Modernas. Depois disso, foi fazer a formação profissional que lhe viria a permitir dar aulas e, acima de tudo, lhe dava as "competências necessárias" para o trabalho como professora. E é precisamente a parte pedagógica que "falta a muitos professores que ocupam os lugares que eu podia ocupar", atira Sónia Casimiro. "Alguém que tire Educação Física passa-me à frente em qualquer concurso, mesmo que não tenha a parte da didática", diz a licenciada em Ensino Básico de Primeiro Ciclo.

"Estou formada desde 2002", afirma Sónia, para logo a seguir completar: "ou seja, há 14 anos". Fazer as contas ao tempo que já passou mostra-lhe a dura realidade: "Só fui colocada uma única vez numa escola primária da rede de ensino público". Fala com mágoa, mas durante toda a conversa nunca escondeu o sorriso. "Acho que a minha vocação é ser professora, mas sei que se não tivesse de trabalhar seria plenamente feliz a tratar da minha família", diz enquanto leva as mãos à barriga num gesto típico de uma mulher grávida de cinco meses. Antes de o Gonçalo nascer, as atenções ainda se centram apenas no Manuel, que faz dois anos no final do mês.

"Ser professor não é fácil", sublinha Priscila. Entre as exigências está a disponibilidade para ser colocada numa escola a muitos quilómetros de casa e "para quem está a construir uma família isso é complicado", adianta a agora maquilhadora, que durante toda a entrevista deu colo ao pequeno Rodrigo, de ano e meio. Estava na hora da sesta e a tarde de calor pedia mimo. "No ensino não posso recusar trabalho, mas como maquilhadora posso. A minha prioridade é o Rodrigo e muitas vezes levo-o comigo para trabalhos". O marido de ‘Pris’, como é tratada por familiares e amigos, também é professor. "Ele dá aulas de Geografia, mas está nos quadros, é diferente", refere enquanto ajeita o filho no colo.

ADEUS AO PORTUGUÊS

Para trás ficaram dois anos em que conseguiu colocação. Primeiro numa escola em Lisboa e depois noutra em Odivelas. Uma experiência que diz ter sido "extremamente construtiva e enriquecedora", de onde destaca a "cumplicidade construída com cada aluno". Mas não sem tecer críticas. "O mais difícil era a incerteza da precariedade e o facto de estar inserida em projetos de longo prazo, sabendo que a minha participação seria curta", diz referindo-se aos projetos educativos de cada escola.

Críticas partilhadas por Sónia Casimiro, que, ainda assim, olha para o lado positivo. "O melhor é quando passo no centro comercial e os meus antigos alunos me chamam de ‘stôra’". Uma emoção que Priscila também sente. "Um destes fins de semana fui maquilhar uma noiva que foi minha aluna. Quando cheguei lá, ela chamou-me ‘stôra’. Fiquei de coração cheio", diz enquanto sorri e ao mesmo tempo se emociona com a memória que promete guardar. "Foi um dos trabalhos mais especiais que fiz, sem dúvida", garante.

Nos últimos dois anos, a maquilhadora não concorreu para nenhum lugar. "Deixei passar as datas", confidencia. Sónia nunca deixou de concorrer: "Tentar não custa, pode ser que um dia tenha uma estrelinha da sorte". Este não foi, ainda, esse ano. Voltou a não conseguir nenhuma vaga. Não sabe se vai arranjar algum trabalho em breve. Está a meio da gestação do segundo filho e por isso reconhece a dificuldade de conseguir "alguma coisa". O ano que passou integrou a equipa de um centro de estudos. "Recebia três euros por hora, mas recebia por fora e era ao lado da minha casa, decidi aceitar", revela, para de seguida confidenciar os seus planos: "Depois de o Gonçalo nascer vou ter de pensar bem em tudo. Depois dos primeiros tempos vou ter de arranjar um trabalho fixo", conclui no momento em que o filho Manuel cai ao chão. "Upa, já passou", tenta tranquilizá-lo, enquanto sorri embevecida. Entre a precariedade dos últimos anos, nunca deixou de trabalhar nas mais variadas áreas. Conta com a ajuda da família e a cumplicidade do marido e assegura que "bem ou mal não nos falta nada e somos felizes".

Como Sónia, também Priscila ainda não desistiu. "Para o ano, o Rodrigo já tem dois anos e meio, já me imagino a ter de enfrentar as probabilidades de uma colocação longe de casa e todas as mudanças que isso nos pode trazer", ainda assim, garante que vai voltar a colocar o seu nome na lista dos milhares de docentes que procuram um lugar numa escola pública. Sabe que, se conseguir colocação, o que vai encontrar é uma escola diferente. "Já não é o que era. Os professores têm muitas tarefas além de dar aulas. Não há tempo para planear e pensar no trabalho com as turmas", enumera e atira sem pensar: "A escola atual entristece-me."

Longe desta realidade está Cláudia. A consultora que se tenta habituar à vida paulista diz sem constrangimentos: "Não me arrependo de ter mudado de área profissional, tenho saudades, mas sei que a situação não melhorou nos últimos dez anos". E acrescenta que "infelizmente" conhece "muitos casos" de professores que desistiram da profissão. "Alguns encontraram um caminho melhor, outros nunca se conformaram".

AO MINISTRO

Se para a maioria das famílias portuguesas as primeiras semanas de setembro significam regressar à rotina, para estas três antigas professoras este é um mês como outro qualquer. Não há aulas para preparar, alunos para conhecer ou reuniões com os pais para ter. Há que seguir em frente com a certeza de que fizeram os possíveis por uma profissão que acreditam ser aquela para a qual nasceram e à qual podem um dia poder regressar.

Enquanto isso não acontece, fazem por garantir estabilidade às famílias com profissões diferentes das sonhadas. "Só quero que o meu filho se orgulhe de mim", afirma Priscila, numa frase que pode ser dita por qualquer uma das outras duas antigas professoras, que já aprenderam a lidar com o dia a dia longe das salas de aula. 

PROBLEMAS EM INÍCIO DE ANO LETIVO

Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, disse esta semana que o despedimento de 313 professores nas escolas privadas é uma "consequência negativa" dos cortes no financiamento do Estado, mas lembrou que em todo o País existem 26 mil docentes desempregados. E se o atraso da divulgação das listagens e os critérios usados eram, noutros anos letivos, os principais alvos das críticas, agora a polémica mora na suspeita de fraude no que toca a quatro mil docentes em mobilidade por doença. O Ministério da Educação autorizou 4160 pedidos, num número idêntico a 2015, quando Nuno Crato era ministro e foi lançada uma investigação à suspeita de fraude no que se refere à mobilidade por doença. Os resultados nunca foram tornados públicos. A Federação Nacional de Educação (FNE) acusou ainda a falta de assistentes operacionais. Nas contas da FNE, seis mil.

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