Há quem não compreenda o ‘jihab’ ou gosto pelas lentilhas. Os da terra dizem de sua justiça
Desde novembro que no Pêra Doce não podem faltar os ramos de salsa, o tomate em cacho e as lentilhas encarnadas – até então o supermercado só vendia das verdes – porque são os produtos que os novos clientes mais consomem. Também já pediram hortelã em pó mas isso João Pereira, o dono da mercearia, não conseguiu encontrar para conseguir satisfazer o paladar daqueles "que vieram da guerra" – como os penelenses mais idosos chamam aos refugiados sírios e sudaneses que há dez semanas se instalaram nesta vila com pouco mais de três mil habitantes a vinte quilómetros de Coimbra.
Não têm sido, ainda assim, as preferências gastronómicas a causar mais alarido na terra mais conhecida pelo presépio gigante por alturas do Natal do que por qualquer outra coisa, embora se diga à boca cheia que por ali o turismo vai bem e recomenda-se.
"O mais estranho é a maneira como se vestem. Olhe, as mulheres andam com umas coisas atadas na cabeça, no meu tempo aquilo chamava- -se lenço, na terra deles não sei como se chama, e umas saias muito compridas, parece que lá de onde eles vêm os homens não as deixam andar de cabeça de fora", espanta-se Celeste Mendes, 81 anos de vida em Penela e um "rol de artroses" que lhe atrasam a marcha a caminho da "casa da dona Alice". Na "terra deles" chama-se ‘jihab’ – em árabe significa cobertura, um vestuário preconizado pela cultura islâmica.
"Nós aqui em Penela não andamos com lenços na cabeça porque aqui não há essa regra. E pois que se viesse para aqui essa regra a menina pode ter a certeza que eu ia presa porque não ia cumprir com ela, onde é que já se viu atar xailes na cabeça? Ainda no outro dia passei por uma moça que era tão bonita, tão bonita, tão bonita que é uma pena só andar com os olhitos de fora a piscar, até tive vontade de lhe dizer isso mas eles não percebem a nossa fala", atira Delminda Bernardino, de 58 anos, antes de desfiar as maleitas várias que a levaram até à unidade de fisioterapia onde a encontrámos.
"Olhe – continua – eu sou muito positiva porque se não fosse já tinha ido ao fundo do poço e por isso acho que elas aqui não têm razão para ter medo por isso podem andar vestidas como nós. Eles fugiram da guerra para vir para aqui, devem vir meio traumatizados, mas nós aqui vivemos em paz. Só espero que só venha para cá gente boa, aquela gente foi treinada desde cedo para disparar com a arma na mão, mas desde que sejam boas pessoas são bem--vindos à nossa vila".
"As mulheres andam assim porque os maridos querem, Deus me livre se aqui fosse assim, a mandarem na gente", acrescenta quem pediu para não se identificar "porque eles podem levar a mal".
Adolescentes iguais
O grupo ruidoso de adolescentes que se ouve de longe não seria digno de nota se junto de Ana, Laura, Beatriz e Mariana – todas entre os 13 e os 14 anos – não estivessem Tasneem, Samia, Osem (13 anos) e Waseem (11 anos), os refugiados adolescentes da Síria e do Sudão, tão perfeitamente integrados como se falassem a mesma língua e tivessem até crescido juntos ali em Penela, com vista para o castelo no alto da encosta.
E não fosse a ganga justa e desbotada e os cabelos ao vento das portuguesas a contrastar com os lenços na cabeça de Tasneem e Samia ninguém diria que parecia impossível que a conversa fluísse na rivalidade entre SL Benfica e FC Porto: a primeira, da Síria, torce pelos encarnados e a sudanesa rendeu- -se aos azuis-e-brancos.
"Não percebemos muito bem o que eles dizem mas estamos a tentar", atira Ana, camisa aos quadrados e um quê provocador. "Mas olhe, o Waseem já sabe contar até 100 em português", elogiam. "É tudo muito diferente do nosso país mas a escola é parecida", contou-nos Tasneem, em inglês, língua que Samia não fala. "Só um pouquito de português", ri-se. "Eles estão na minha turma, no 7º ano, e elas fazem educação física de fato de treino e lenço na cabeça, agora já nos habituámos mas no início estranhámos um bocado. Com ele jogo à bola nos intervalos, não é preciso saber a mesma língua", diz João, de 12 anos, filho da dona da sapataria da vila. "As meninas refugiadas tomam banho no balneário das professoras para não se despirem à frente das colegas e também já fizeram teste de inglês: dois tiveram suficiente e um insuficiente", conta a mãe do rapaz.
"Na festa de Natal, fizeram--lhes atum para eles não comerem carne mas esqueceram-se que o caldo verde tinha chouriço, então os miúdos nem tocaram na sopa porque tinha sido cozida com o chouriço", recorda João Pereira, do supermercado.
A favor e contra
Na vila de casas baixas onde desponta um castelo – Penela é um diminutivo de "pena" e significava, em baixo latim, cabeço, monte ou rochedo – os apartamentos onde instalaram as quatro famílias sírias e sudanesas destoam da habitação comum. "São umas casas assim diferentes, não se parecem nada com as nossas, mas frio não passam porque dá ali solinho o dia todo", garante Celeste Mendes.
"No início, estes apartamentos foram feitos para vender mas as pessoas não aderiram bem porque parecem uma prisão, têm umas grades à volta. Então a câmara começou a alugá-los para habitação social a 160 e 190 euros. Para ganhar alguma coisa o meu marido teve que ir para o estrangeiro e eu criei três filhos sozinha, a mim nunca ninguém me deu nada de mão beijada; aqui em Penela também há muita miséria e por isso é que algumas pessoas estão contra as casas que deram aos refugiados", sussurraram-nos no supermercado. Mas por cada pessoa que está contra há três a favor desta ‘invasão’ que veio em paz para fugir da guerra.
Rosa da retrosaria, Rosa da florista e Cláudia da sapataria bordam ao sol no final de uma manhã sem clientes, enquanto se perdem em conversa sobre os refugiados que chegaram à vila em novembro. "São muito comunicativos, riem-se para a gente e já sabem dizer ‘bom-dia’. Algumas andavam tapadas de cima a baixo mas na escola chamaram a atenção porque aos nossos miúdos fazia confusão não lhes ver a cara. Só viam os olhinhos a luzir e os nossos garotos não estão habituados, não é verdade?", questiona Cláudia Morais, 37 anos, às voltas com o trapilho. "Diz que se formos para o país deles também não podemos ir de calções, não é? Então eles têm que aqui vestir-se como nós", atira Rosa Silva, 56 anos, desembaraçada com as agulhas do tricô. "Oh mulher e eu lá queria ir para o país deles, ‘atão’ eles fogem de lá e éramos nós que íamos para lá, mulher?", insurge-se Rosa Rodrigues, 46 anos. "Oh Rosa, isto é maneira de falar, ‘atão’ claro que a gente não quer ir para lá, tão longe e em guerra, estamos aqui tão bem". O sol e a pacatez da manhã em que as encontrámos assegura o mesmo.
E a dificuldade da língua também não atrapalha as comerciantes desembaraçadas com os bordados. "Também vieram para cá os ingleses e a gente também os avia mesmo sem perceber o que dizem. Os ucranianos e moldavos também por cá ficaram mas esses já falam melhor português; estes encontraram trabalho na fábrica de queijo, nos mármores e na fábrica do peixe. Os ingleses vêm passar a reforma, porque é uma zona pacata, encostada à serra", conta a Rosa da retrosaria antes de abalar para o almoço.
"Para sabermos os produtos que eles procuram no supermercado mostram fotografias no telemóvel e têm sempre a preocupação de ler os rótulos por causa da carne de porco que não comem. E se querem queijo fatiado temos que limpar a máquina de corte porque pode haver vestígios de fiambre ou chourição e eles não lhe tocam, um tradutor é que nos veio explicar isso tudo para a gente se habituar a eles" conta João do Pêra Doce. "Trazem sempre dinheiro para pagar as compras e um deles comprou um pacote de fraldas que trazia um vale de seis euros para descontar. Dei-lhe os seis euros e ele ficou todo contente; dão muito valor aos pormenores, veem os preços e procuram sempre o mais barato".
E "as pessoas aqui têm muita curiosidade para saber mais da vida deles, tanto que uma senhora, aproveitando que elas vinham com uma tradutora perguntou se lá na Síria tinham piscinas. E as refugiadas responderam que sim, que tinham. E a senhora perguntou novamente como é que iam à agua se não podiam mostrar o corpo e elas responderam que usavam um fato completo, do pescoço até aos pés, como o fato dos mergulhadores", acrescenta João.
"Estes que aqui estão não vieram diretamente dos barquitos, estiveram três anos num campo de refugiados no Egito, um bebé que veio para cá até foi feito lá e lá nasceu", contam por sua vez as Rosas comerciantes em uníssono.
Outras guerras
"No outro dia vi um refugiado a pedir boleia e levei-o a casa mas não nos conseguimos entender a falar. Por cá andam a fazer a vidinha deles, a única coisa é que a gente gosta de ver a cara das pessoas aqui em Penela, quando estão todas tapadas a gente pode achar que está a falar com uma menina e sair de lá um homem, pode ser um problema", diz meio a brincar meio a sério António Paredes, de 73 anos, habitante da vila.
"Eu sei que elas andarem todas tapadas – e já andam menos do que quando aqui chegaram – faz confusão a muita gente daqui, mas a mim não, sabe porquê? Quem esteve lá fora sabe que cada povo tem o seu costume e eu estive vinte anos em Angola, tenho outra mentalidade", orgulha-se Isaura Tavares, de 77 anos, para logo a seguir dizer: "E olhe que sei bem as dificuldades que os refugiados passaram porque eu sou retornada, vim aos trambolhões de Angola, quem sofreu como eu sofri a fugir daquela guerra em África sabe bem dar valor ao que eles passaram. E estes são bem mais bem recebidos do que nós fomos na altura: têm cá casa e comida na mesa, eu nem um prato trouxe, só quatro filhas para criar porque o resto roubaram-me tudo".
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