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Em nome de Renato Seabra

Odília foi mãe de Renato há 21 anos. Agora é sua testemunha-chave. Retrato da mulher que aplaudiu o filho na TV

23 de janeiro de 2011 às 22:00

Um filho é um modelo no qual as mães projectam o seu desejo mais profundo. Ninguém é mais capaz de perdoar do que uma mãe". Luís Rodrigues, psicossociólogo e professor na Universidade Nova, fala de Odília Pereirinha, a mãe que terá de perdoar Renato Seabra, o modelo de 21 anos que, a 7 de Janeiro, atacou durante quatro horas o cronista Carlos Castro, num quarto de hotel em Manhattan, Nova Iorque, matando-o.

Odília voltou esta semana dos Estados Unidos, depois de ter visto o filho. Começou a trabalhar no Centro de Saúde de Cantanhede, onde é enfermeira. Vai desfazer-se da própria casa. Lia-se já numa placa a palavra ‘vende-se'.

"Uma pessoa na situação em que está Odília Pereirinha vai passar dias, meses, uma vida, em grande ambivalência, entre o amor e o ódio que tem por si própria. Num momento determinado vai recuperar todo o filme da sua vida com o filho, imagens que ficam gravadas na memória, cenas infantis, diálogos. Ela vai ter de se erguer e ir para coisas concretas que possa dar ao advogado de defesa", explica o psicossociólogo Luís Rodrigues. "Este confronto entre o público e o privado vai ser muito duro, uma situação-limite só comparável ao heroísmo dos náufragos".

A relação entre mães e filhos é a mais forte de que há memória - refere Luís Rodrigues. Relação levada a exame - Odília será a testemunha-chave da defesa do filho que pode incorrer em pena perpétua. O processo começa a 1 de Fevereiro.

ATÉ AO ÚLTIMO CÊNTIMO

A terra é de mineiros. A população lutadora. Nunca se conformou com a despromoção de concelho, em 1866, a favor de Nelas. Uma das filhas de Canas de Senhorim é Odília Pereirinha, 53 anos. Nasceu de pais negociantes de ouro e seguiu a tradição da gente obstinada.

A hecatombe americana vai obrigar a família a grandes sacrifícios. É o irmão de Odília, Heleno Pereirinha, de 46 anos, que explica: "A minha irmã vai desfazer-se de bens para pagar as despesas do filho. Ela vai gastar tudo até ao último cêntimo. Mas o resto da família está disposta a vender bens para ajudar. Temos um apartamento aqui em Canas de Senhorim e se for necessário, vendêmo-lo".

Odília Pereirinha está a ponderar a possibilidade de se mudar para os Estados Unidos e ali abrir um negócio ligado à ourivesaria. "Nesta altura tudo é possível. O importante é encontrar fontes de rendimento porque adivinha-se um processo judicial demorado e oneroso. Uma coisa é certa: a minha irmã é uma lutadora", diz Heleno.

Ao longo da sua carreira na Polícia Judiciária, o criminologista Francisco Moita Flores deparou-se com a outra face do crime, a que fica fora dos autos: "Quando um crime acontece no seio de uma família é um acontecimento muito grave e trágico que vai alterar a estrutura e as rotinas por muito tempo. Há quem mude completamente de hábitos e até de residência para estar mais perto da prisão".

Lembra os casos que acompanhou: "Vi centenas de mães desesperadas, entristecidas, mas com uma ferocidade incrível na defesa e protecção das suas crias. Até porque, nestas situações, os homens vão-se muito mais abaixo. Para elas é quase como perder um filho".

O ex-inspector da PJ explica que "numa primeira fase há uma negação dos factos: a pena é sempre injusta e desproporcional. Depois há a revolta pela intrusão do sistema judicial na vida da família, um grande investimento até à decisão do juiz e, por último, o sentimento de culpa pelo que aconteceu".

VENDIA OURO

Odília viveu quase duas décadas em Canas de Senhorim, antes de partir para Coimbra, onde tirou o curso superior. Hoje, quem a viu crescer e ajudar os pais no negócio da ourivesaria, lembram-na como "muito bonita e dinâmica", uma mulher que "não deixava ninguém indiferente". "A Odília pôs sempre em primeiro lugar o bem-estar dos filhos", diz uma conterrânea. Os habitantes mais velhos de Canas de Senhorim até se lembram ainda dos tempos em que Odília Jesus Pereirinha, gaiata, viajava com os pais quando estes iam vender peças de ouro.

"Ela ajudava-os muito no negócio", garante uma vizinha, que agora ajuda Rosa Pereirinha, de 76 anos, avó materna de Renato Seabra, a ultrapassar "esta fase negra". A idosa foi operada ao coração em Dezembro. Manuel Figueiredo, que conhece bem os Pereirinha, recorda um episódio com mais de 30 anos: "Este relógio que trago foi ela [Odília] que me ajudou a escolher. Quando soube da notícia lembrei-me logo do dia em que o comprei. Ela é uma de nós".

Odília Pereirinha completou o curso de Enfermagem e conheceu Joaquim Seabra, hoje com 50 anos, que era então enfermeiro no Hospital Arcebispo João Crisóstomo, em Cantanhede. Casaram-se, mas viveram juntos por pouco tempo. Quando Renato Seabra tinha apenas quatro anos e a irmã oito, o casal divorciou-se: "O pai abandonou-os", lembra um vizinho, Carlos Pinto, de 44 anos, destacando a coragem de Odília para enfrentar a vida nos últimos 17 anos. Joaquim Seabra foi para o Algarve, encontrando-se hoje em Vila Real de Santo António. Tem outra família.

Para o clínico Luís Rodrigues, o facto de este drama ter ocorrido no seio de uma família monoparental pode, em teoria, estar relacionado: "Para além do crime há a revelação de uma aproximação à homossexualidade, que ainda é uma minoria entre nós. E isso causa constrangimentos. Aqui surge a questão da figura parental, que é um juiz. O pai e a mãe têm papéis diferenciados na educação e não é por acaso que se diz ‘se te portas mal chamo o teu pai'. A ausência de um pai ou de um padrasto pode ser uma fragilidade".

Mas Joana Seabra, a irmã de 25 anos de Renato, médica e casada há um ano com o farmacêutico José Malta - e que está grávida de quase três meses - defende a sua família, a família de só uma mãe e dois filhos: "Nunca tivemos nenhum problema, muito menos psicológico. A minha mãe deu conta do recado".

Em Portugal, Paula Silva Fernandes é a advogada que representa a família: "Ela é uma lutadora. Criou-os com bastantes dificuldades e é uma excelente enfermeira". Em Abril de 2007, aproveitando a sua experiência na área, Odília foi a principal impulsionadora do projecto de preparação para o parto no centro de saúde onde trabalha. O programa tinha nome que a vida provou ser irónico - ‘Ser Mãe sem Medos'.

Ana Paula Reis, psicóloga do Núcleo de Psicologia da Educação e ex-apresentadora de televisão, nota que "a vida de uma pessoa é uma reacção em cadeia, nada surge do nada, e há sempre um residual que explica certos comportamentos. Os pais tendem a projectar nos filhos a vida que gostariam de ter tido, ficam vaidosos com a fama, com o sucesso dos filhos. Mas a fama conquistada através do culto do físico é sempre efémera".

O JULGAMENTO DOS OUTROS

Odília foi uma entusiasmada espectadora na plateia do estúdio durante o concurso em que Renato aspirava ao primeiro lugar. Era o ‘À Procura de Um Sonho', que a SIC exibiu no último Verão. Renato ficou pelo terceiro lugar mas encontrou no Facebook o homem que o levou a Londres, Madrid e Nova Iorque - e de quem viria a ser carrasco. A família mantém que Renato não era homossexual e que as verbas recebidas eram prendas de Carlos Castro ou pagamentos por trabalhos de moda. Mas segundo Fátima Lopes, o seu agenciado há muito que faltava aos castings.

"O julgamento será sempre externo. Odília nunca julgará o filho, não fará qualquer juízo de valor. A atitude será protegê-lo ao máximo, para reduzir ao máximo as consequências e o impacto da asneira que ele fez", diz o psicoterapeuta Carlos Garrucho. "É uma mãe que está em grande sofrimento emocional. Está perdida, pois todos os projectos de vida que idealizou caíram por terra".

Para a psicóloga criminal Maria do Sameiro, "a aproximação a Carlos Castro não pode ter sido inocente. Ele não representava uma figura paternal. A sua homossexualidade era conhecida publicamente. É impossível invocar desconhecimento por se viver em Cantanhede, pois o acesso que hoje se tem à realidade é total. Pelo que já foi dito, a mãe acompanhou o Renato no concurso televisivo e sabia dessa ligação. Portanto, houve uma aposta em tentar alcançar algo". É que as mulheres, diz a psicóloga, "tendem a viver o sucesso dos filhos com grande intensidade".

A EXPERIÊNCIA NOVA

Renato Seabra foi acólito e ajudou nas celebrações religiosas. A família ia à missa. A igreja, no centro de Cantanhede, está a poucos metros da casa onde os irmãos cresceram, no nº 14 do largo Conselheiro Ferreira Freire, e que agora está à venda. É branca, sem luxos, com garagem e um portão antigo.

O único desvio à rotina habitual que se conhece a Odília foi o incentivo que deu ao filho para participar num curso televisivo. De resto, dela dizem o que de melhor se pode dizer numa terra longe da cidade grande: "Uma mulher séria a quem nunca se conheceu outro companheiro além do marido". Renato, a propósito do programa de 2010, contou numa entrevista: "A minha mãe incentivou-me bastante e tranquilizou-me. Disse: ‘Filho, vais sem grandes expectativas. Vale pela experiência nova. Tudo passo a passo".

REFÉM DA IMAGEM

"O Renato era notado como um filho ‘apolíneo', que significava a perfeição, o equilíbrio de todas as formas, características requeridas para o plateau. A mãe teria orgulho, ela estaria muito feliz por ter parido aquele filho", nota o psicossociólogo Luís Rodrigues, e acrescenta: "A sociedade actual vive um problema que é a cultura do freestyle. Não temos padrões muito certos de comportamento".

Vítor Cotovio, psiquiatra e psicoterapeuta na Casa de Saúde do Telhal, conhece a história que saltou fronteiras e é notícia em jornais que não se escrevem em português. "Estamos aqui perante um problema que aflige a sociedade actual, em que a felicidade está refém da imagem. Quem tem responsabilidade de educador não pode ficar refém da fama. Neste caso, um rapaz de 21 anos já tem uma capacidade de escolha, das opções que foi fazendo. Gostou, sentiu que tinha jeito e recursos para singrar".

Emília Agostinho fundou a associação A Nossa Âncora, de apoio aos pais em luto, pouco depois da morte da filha Mónica, de 18 anos, num acidente de automóvel. "Ter um filho na cadeia é um luto em vida. Porque aquele jovem não morreu fisicamente mas morreu para a vida social. Respira mas não está a viver. A pena do filho será a dela também".

"A AUSÊNCIA DOS FILHOS É MUITO DOLOROSA" (Paula Fernandes, mãe de Tiago Fernandes, actor de ‘Floribella', preso por tráfico de droga)

- O seu filho, Tiago Fernandes - que o grande público conhecia do elenco de ‘Floribella' - foi preso por tráfico de droga. O que sente uma mãe nesta situação?

- É um grande choque, uma grande angústia, mas nestas alturas encontram-se forças onde nem sequer sabíamos que existiam. Em 20 anos, foi a primeira vez que me afastei do Tiago. Fica um vazio muito grande... temos tantas coisas para lhes dizer e as visitas não chegam.

- Em momento algum deixou de o apoiar. O amor entre mães e filhos não conhece barreiras?

- Mesmo sem aceitar, sem compreender o porquê, temos de apoiar e proteger os nossos filhos. Isso é ser mãe. É estar sempre ao lado dos filhos, em quaisquer circunstâncias.

- Mas as circunstâncias que envolveram o crime de Renato Seabra são trágicas. Como acha que a mãe dele se sente?

- Deve estar desesperada, mas esta é uma mãe que merece ser apoiada e respeitada, nunca condenada. Depois do julgamento, e devido à distância que os separa, o grande problema dela vão ser as visitas. A dor causada pela ausência dos nossos filhos é o que custa mais a ultrapassar e isso irá certamente virar a vida desta mãe de pernas para o ar. Depois vai ouvir coisas muito desagradáveis, vai ter de aguentar o julgamento, a sentença... terá de estar preparada para tudo.

NOTAS

VIAGENS

Antes da América, Carlos Castro e Renato Seabra estiveram em Madrid e Londres.

AMÉRICA

Os dois chegaram a Nova Iorque a 29 de Dezembro. Passaram de ano em Times Square.

MORTE

A 7 de Janeiro, Renato deixou o Hotel Intercontinental dizendo a uma amiga de Carlos que ele "não saía mais".

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