page view

Esquiar no asfalto

Depois de treinos a fio nas estradas de Almeirim, o esquiador Danny Silva cumpre o maior sonho de qualquer atleta: participar nos Jogos Olímpicos.

29 de janeiro de 2006 às 00:00

José Mourinho, o primeiro português com direito a réplica em cera no famoso Museu Madame Toussaud, dá brado nos noticiários do dia sete de Dezembro de 2005.

A história do galáctico treinador roda com insistência na rádio, e não é para menos. Danny Silva acompanha atento os pormenores e aproveita a oportunidade para quebrar o gelo da conversa. “É um lorde em Inglaterra! Para mim, um ídolo. Pode ser arrogante, mas é persistente e ensinou-me a nunca baixar os braços.” É precisamente no frio que o jovem esquiador de fundo, nascido nos Estados Unidos, se sente nas suas sete quintas. Aos 32 anos, a tenacidade valeu-lhe estar a poucos dias de cumprir um sonho a fermentar desde os cinco anos na sua cabeça de menino: participar nos Jogos Olímpicos de Inverno. A 17 de Fevereiro, estará entre os mais de cem atletas que se preparam para dar corda aos esquis na pista Pragelato Plan da cidade italiana de Turim. É o único representante luso na XX edição dos Jogos. No desfile de abertura, cabe-lhe a honra de porta-estandarte das cores verde-rubra.

À primeira vista, Danny é um verdadeiro peso pluma na modalidade. As suas proporções não vão além dos 55 quilos distribuídos por 161 centímetros de altura, e em Almeirim, onde mora e onde se treina a maior parte do tempo, tanto quanto se sabe, o principal chamariz é a Sopa da Pedra. Em pleno coração do Ribatejo não há nevões para contar história. Muito menos para ajudar a escrevê-la. No curriculum de Danny há, pelo menos, já muito a registar. E a esta altura do campeonato, faz ouvidos moucos às contrariedades. “Temos um potencial enorme. As nossas limitações não são climatéricas.”

Neste plural cabe Portugal inteiro e a esperança de “fazer dos casos bons a regra, não a excepção.” E nisso de tamanhos, insiste que os homens não se medem aos palmos. “A esquiar consigo levar vantagem nas subidas. Quanto aos nórdicos nem são assim tão altos. São é louros e branquinhos”, brinca.

Às nove e meia da manhã, pontualmente, Danny ensaia os primeiros passos de jogging na rua, à porta de casa, deixando-se conduzir até ao principal palco do treino matinal. Faz jus ao ancião ditado ‘deitar cedo e cedo erguer’, não reservasse ele 90 por cento da energia diária para o desporto. Um dos sítios preferidos para limar as minudências técnicas – “o meu tendão de Aquiles” – fica a menos de dez minutos de casa, entre Almeirim e Alpiarça. Um modesto itinerário secundário é o porto de abrigo de Danny. As aves e os vinhedos são a vizinhança que se abeira à janela para espreitar o esquiador. Os poucos condutores dos veículos de quatro rodas que com ele se cruzam na estrada, abrandam e pregam os olhos a outras rodas mais pequenas, adaptadas aos esquis, que deslizam ligeiras, tal o balanço imprimido quando se lança ao asfalto. “Chegaram a dizer-me que a estrada não era sítio para andar aqui feito parvo a estorvar”, confessa, entre risadas. “Quando comecei a ser mais conhecido houve uma mudança”, continua, voltando a empunhar os bastões e a fazer-se a mais uma corrida, e a mais uma viagem até ao limite da via. As deslocações são coroadas com uma passagem pelo ginásio ou pelas piscinas, pela tarde dentro.

OS TREINOS NA ESTRADA são um acidente de percurso incontornável. Com os Olímpicos à porta, todos os contextos são bons para praticar. Compreensivelmente, as paragens tingidas de branco são o alvo preferencial do esquiador. O tempo de permanência em Almeirim não dá para aquecer a casa onde vive, nem o contacto com o grupo de amigos, que faz contas à vida para o ir ver a Turim. O estágio final de preparação de Danny decorreu durante o mês de Janeiro no Centro de Alta Competição de Font Romeu, nos Pirenéus franceses. Em Novembro de 2005, frequentou um outro estágio de um mês organizado pela Federação Internacional de Sky, na Finlândia, um dos oásis das modalidades na neve. Os números desta prática no norte da Europa, uma das principais atracções turísticas e fonte de receita, falam por si: 7,5 são os milhões de euros investidos no esqui finlandês, 9 é o número de meses com neve durante o ano; 40 são os quilómetros da extensa pista com iluminação artificial para treinos nocturnos. A concorrência desigual não faz sombra ao protagonismo já granjeado além-fronteiras. Poucos sabem quem é o Danny Silva, mas todos conhecem o ‘one man show’.

Depois de aterrar em solo nacional, em Dezembro, o esquiador rumou à Serra da Estrela, estância que o acolhe todo o santo Natal e toda a santa Páscoa. Quem também anda sempre de malas aviadas é a companheira, Isabelle. Formada em Psicologia do Desporto, inseparável de Danny, integra a comitiva de apoio ao marido, ao lado do preparador físico Renato Rodrigues. A belga é uma das pessoas que não deixará que lhe faltem bebidas quentes para enganar as baixas temperaturas durante o circuito olímpico.

A SEMENTE DESTA grande ambição pessoal foi plantada do outro lado do Atlântico. Danny nasceu e cresceu nos Estados Unidos até aos 14 anos. Foi aí que sentiu, pela primeira vez, as emoções dos Jogos, em Lake Placid, a duas horas de distância da ‘sua’ Nova Jérsia. Foi também aí que se cruzou com um professor de filosofia, maratonista, que o levou a trilhar esse curso, na faculdade, e a continuar a dedicar-se ao desporto. As duas áreas nunca lhe pareceram inconciliáveis, mas lembra-se que a turma de pensadores de então, muitos deles praticantes de alguma modalidade solitária, costumava prestar-se a exames de consciência: “Por que é que andamos nisto?” A resposta encontraram-na no tempo que perdiam em divagações enquanto se dedicavam ao atletismo, ao ciclismo ou ao esqui. Da América, onde deixou o pai, Danny veio para a Marinha Grande. Depois para São Martinho do Porto, a terra da mãe. Só mais tarde chegou a Almeirim.

EM 2001, a oportunidade de emprego numa empresa desportiva levou-o até França. A proximidade dos Alpes fez com que o gosto pelo esqui de fundo, então sublimado, viesse à tona. “O desporto esteve sempre no meu sangue e as modalidades de Inverno são um vício terrível.” Quando veio para Portugal, não tinha hipótese de dar seguimento à actividade, também conhecida como ‘cross country’, mas não desistiu de praticar desporto. Inscreveu-se no Atlético Clube Marinhense, aos 16 anos, quando frequentava a escola secundária, e apostou no triatlo. “Ao esqui só falta a parte aeróbica, trabalhar o tronco. Se tivesse nas mãos dois ou três jovens de atletismo ou ciclismo conseguia levá-los às próximas olimpíadas jovens. Ainda me faziam concorrência!”, garante o esquiador, lamentando a falta de incentivo às modalidades com menor visibilidade. De resto, por cá, diz que não faltam promessas na vertente do biatlo (combinação do esqui e do tiro). “Basta ir aos campos para os ver aí todos aos tiros aos pássaros! Já eu, não seria capaz de fazer cinco disparos, depois de cinco quilómetros a esquiar”.

Em Fevereiro de 2005, depois de prestar provas em Espanha, Áustria e no último Mundial, na Alemanha, Danny Silva garantiu a qualificação para Turim. “Chegava a arrancar daqui de Almeirim sozinho às sextas-feiras, depois das aulas, competia sábado e domingo e regressava no final da noite”, conta. As muitas horas de treino não chegam para cobiçar medalhas, mas Danny não perde um minuto dos seus deslizes a pensar nisso. “Só não quero ficar em último. Quantos poderão dizer que já estiveram nos Jogos Olímpicos?”

O objectivo nos 15 km é trabalhar para o melhor tempo possível, reduzindo a sua marca de 57 minutos. Depois dos Jogos talvez regresse à Finlândia para um intercâmbio. Até aos 38 anos, fasquia que estabeleceu para abandonar o esqui, tem um desejo: “Espero ter mais concorrência portuguesa nos próximos Jogos.”

AS TÉCNICAS E OS RITUAIS POR DETRÁS DA MODALIDADE

Apostado em trazer o esqui de fundo para a mó de cima, a grande aventura de Danny começou em 2002, quando adquiriu o equipamento mínimo – um par de esquis clássico, depois uns com ‘rollers’, para usar fora do contexto da neve, mais as botas e restante roupa. O esquiador utiliza ainda um engenho novo, pouco conhecido na Europa, que descobriu na Argentina, nos pés de um brasileiro, o ‘catski’, um patim que desliza sobre um roller-ski adaptado, imitando o passo alternado do esquiador sobre a neve no esqui clássico, que aumenta a resistência e firma a técnica do passe. Mais barato que o esqui alpino, o esqui de fundo implica ainda um investimento inicial considerável, na casa dos mil euros.

A panóplia de ceras e parafinas para aderência aos vários pisos, é vasta. Danny espera com ansiedade o dia 17, data a escrever a negrito no seu calendário, quando deixar as peugadas dos seus esquis na prova dos 15 km de ‘cross country’. Na véspera viverá “a bonança antes da tempestade.” E quanto a superstições, “quanto menos gritarem por mim na prova, melhor”,para não perder o fio à meada.

O PIONEIRO E A DIÁSPORA PORTUGUESA NOS OLÍMPICOS

Duarte Espírito Santo foi o português pioneiro nas competições olímpicas. O esquiador, que soma já 81 anos, participou nos Jogos de Oslo, em 1952. Naquela que foi a segunda edição do pós-Guerra, e pela primeira vez na Noruega, berço do esqui moderno, 30 países – 585 homens e 109 mulheres – mediram forças em 14 disciplinas. Duarte completou a prova de descida num tempo de 3 minutos, 58 segundos e 4 centésimos, classificando-se no 69.º lugar. Alheio a classificações, recorda-se do mais importante: “Sei que acabei a prova!” Para a história fica a “grande aventura” que viveu durante aquela semana, acompanhado por um treinador austríaco que conheceu na Serra da Estrela.

Nesse distante mês de Fevereiro, quando a poeira da segunda Grande Guerra ainda estava a assentar, a escassez de neve foi uma das maiores contrariedades para os atletas, que contaram com uma assistência reduzida. “Os soldados tinham que transportar a neve para a pista. Não havia máquinas para fabricar neve. Tinha que ser tudo feito à unha”, conta, confirmando que “os Jogos eram uma terça parte do que são hoje.” Sem minorar o entusiasmo vivido, relativiza a sua participação, de tão familiarizado com a neve e os desportos de Inverno. “Faço esqui desde miúdo, a participação nos Jogos é que foi uma novidade”, refere Duarte, que ainda hoje se mantém no ‘activo’.

No último fim-de-semana, a neve pregou-lhe uma partida. Enquanto esquiava, na Áustria, onde costuma passar uma temporada todos os anos, sofreu uma queda que resultou numa fractura da bacia. Com o regresso antecipado a Lisboa, desdramatiza a peripécia, “que só não acontece a quem não esquia!”, e promete continuar a empunhar os bastões enquanto se sentir bem. “Vitalidade não me falta!”, justifica Duarte, o único olímpico português que não partilha a condição de emigrante com os seus sucessores. Já Danny Silva será o nono representante da diáspora, depois das participações de António Reis, João Poupado, J. Pires, R. Bernardes, Georges Mendes, Mafalda Queiróz Pereira e Fausto Marreiros.

FACTOS E NÚMEROS DE TURIM

- Vão ser entregues 84 medalhas.

- São aguardados 2500 atletas, 2500 representantes oficiais dos 85 Comités Olímpicos das nações em prova e 650 juízes. Serão instalados em três Aldeias Olímpicas, situadas em Turim, Bardonecchia e Sestriere.

- Sete é o número de modalidades em competição: biatlo, bobsleigh, curling, hóquei no gelo, luge (espécie de slide), patinagem e esqui (nas disciplinas de alpino, cross country, sky jumping, nórdico, freestyle e snowboard).

- As competições vão decorrer em oito espaços distintos: Bardonecchia, Pinerolo, Pragelato, Cesana-Pariol, Cesana-San Sicario, Sauze d’Oulx, Sestriere e Turim.

PERSISTÊNCIA ALIMENTA A CHAMA OLÍMPICA

Um ponto de honra é a euforia que rodeia todos os atletas. Os que sobem ao pódio, e os que ficam na cauda do pelotão.

Nos arquivos históricos da maior competição desportiva do Mundo não faltam episódios a assinalar. São testemunhos do brio e coragem olímpicos. O esquiador queniano Philip Boit é um desses casos que tão cedo não serão esquecidos. Único do seu país nesta modalidade, foi o último dos últimos nos anteriores Jogos de Nagano, mas todos mantêm as atenções viradas para o atleta. “O campeão dessa prova, Bjoern Dhalie, esperou que ele terminasse a prova só para o cumprimentar. Até deu o nome do queniano ao seu primeiro filho!”, destaca Danny Silva.

Os Jogos de Los Angeles, em 1984, ficaram marcados pela imagem de uma derrota mas também de um enorme esforço, os da maratonista suíça Gabrielle Andersen-Schiess. A atleta de 39 anos ficou classificada no último lugar, mal conseguindo equilibrar o corpo ao cortar a meta. Completou a volta olímpica aplaudida pelo público, 23 minutos depois da vencedora, a americana Joan Benoit. Actualmente, os atletas já podem ser socorridos durante a competição.

A grande aventura da equipa jamaicana de Bobsleigh nos Jogos de Inverno de Calgary, em 1988, fez correr tinta e película. Em 1993, o filme ‘Cool Runnings’ e o livro ‘Fire on Ice’ retratavam o sonho de um grupo de atletas que, apesar de nunca terem visto neve, rumaram à competição. Depois da insólita estreia, com imensas quedas à mistura, em 1992 voltariam aos Jogos. Mais confiantes, surpreenderam tudo e todos ao bater os campeões nacionais suecos, conquistando um importante décimo lugar. Vão estar em Turim, a cumprir a sua sexta participação.

Nos Olímpicos de Verão em Sydney, no ano 2000, Eric Moussambani tornou-se o atleta mais famoso dos Jogos ao estrear-se numa piscina oficial para a prova dos 100 m livres. O atleta da Guiné Equatorial aprendera a nadar poucos meses antes e fundou a federação de seu país para ganhar um convite do Comité Olímpico para disputar os Jogos. Na sua eliminatória, apelou ao estilo “cachorrinho” para conseguir completar o percurso. Protagonizou um momento único.

Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?

Envie para geral@cmjornal.pt

o que achou desta notícia?

concordam consigo

Logo CM

Newsletter - Exclusivos

As suas notícias acompanhadas ao detalhe.

Mais Lidas

Ouça a Correio da Manhã Rádio nas frequências - Lisboa 90.4 // Porto 94.8