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Feios, porcos e de Valongo

Coliseu dos Recreios assiste no próximo sábado ao adeus de ‘Balas & Bolinhos’, obra de quatro amigos.

24 de março de 2013 às 15:00

Quentin Tarantino nunca foi a Valongo, mas o norte-americano lançou a semente do filme português mais visto em 2012, capaz de levar mais de 256 mil pessoas aos cinemas, e de ‘Balas & Bolinhos Mesmo à Frente do Teu Focinho!’, o show de teatro e música que está em cena no próximo sábado no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, após ter esgotado o Coliseu do Porto em duas noites consecutivas.

"Para mim, o ‘Pulp Fiction’ foi um alerta de que o público procurava outro tipo de cinema, mais agressivo e mais real, que tinha possibilidades de ser distribuído em Portugal", recorda Luís Ismael, que tem agora 41 anos. Em 1999, cinco anos depois de Tarantino estrear o filme em que Maria de Medeiros pedia prazer oral a Bruce Willis e John Travolta ressuscitava Uma Thurman com adrenalina injetada no coração, começou a nascer a mais surpreendente saga do cinema nacional.

Foi então que Luís e J. D. Duarte se tornaram amigos de Jorge Neto e João Pires, quatro anos mais novos. Não que fossem perfeitos desconhecidos, pois eram vizinhos e os dois primeiros ainda estavam na escola secundária quando os últimos lá chegaram, mas aquilo que os leva a estarem agora juntos, nas instalações de uma produtora de vídeo portuense, ultimando detalhes da vinda a Lisboa, só começou a ganhar forma na Associação de Artes Cinematográficas de Valongo.

ERA PARA SER CURTA

Mesmo sem distribuir as estatuetas douradas da Academia de Hollywood, a sua congénere valonguense permitiu que vários jovens aprendessem a filmar e produzir cinema. Daí até aparecer um projeto era questão de aquecer o estômago. "Estávamos a comer caldo-verde, num ‘after party’, quando surgiu a ideia de fazermos uma curta--metragem em que iríamos falar e fazer o que nos apetecesse", recorda Jorge Neto.

Responsável pelo argumento do primeiro ‘Balas & Bolinhos’, que teve estreia comercial em 2001, Luís Ismael inspirou-se em ‘Pulp Fiction’, mas também em ‘Feios, Porcos e Maus’, o filme do italiano Ettore Scola que retratava uma família em absoluta podridão moral. "Queria fazer um cinema mais duro. Não estava interessado em histórias de amor. Não era para agradar a toda a gente: uns iriam gostar e outros odiar."

A sequência inicial de ‘Balas & Bolinhos’ diz quase tudo. ‘Quim Culatra’ (J. D. Duarte) é o primeiro a aparecer, caminhando pela rua enquanto ouve música no discman – tão arqueológico quanto uma grafonola para muitos dos que foram ver ‘Balas & Bolinhos - O Último Capítulo’ –, seguindo-se ‘Bino’ (João Pires), um arrumador de automóveis mais tóxico do que desentupidor de canos, e ‘Rato’ (Jorge Neto), cujos negócios de droga correm mal. Só depois surge ‘Tone’, o cérebro do grupo, que acaba de sair do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, onde passou os últimos cinco anos, sem querer reabilitar-se. À espera tem a namorada, de quem mata saudades logo ali, seguindo-se uma conversa, já dentro do modesto Renault 5. Quando a amada admite ser prostituta, o protagonista deste e dos dois filmes que se lhe seguiriam é pragmático: "Tem de se ganhar a vida..."

PROFISSIONAIS DAS ARTES

Depois do filme de 2001, cujos 62 minutos foram além de uma curta-metragem, e das duas sequelas que formam a trilogia, os amigos tornaram-se profissionais das artes. Luís detém a produtora Lightbox, na qual também realiza publicidade, e onde está o sócio J. D. Duarte, mais dedicado à produção. Jorge Neto é ator de teatro, somando papéis "com maior regularidade" nos últimos sete anos, cabendo a João Pires conciliar trabalhos de produção audiovisual com um ofício muito diferente. "Sou geógrafo e tenho feito trabalhos de investigação", relata à Domingo, admitindo que os colegas não são indiferentes ao fenómeno do cinema nacional. "Sou o gajo mais conhecido da Faculdade de Letras do Porto", graceja.

Todos negam, numa unanimidade que só não é total porque J. D. Duarte não estava presente durante a conversa, que o sucesso dos três filmes e o espetáculo teatral tenha permitido o enriquecimento lícito dos seus criadores. "Estamos até a pensar comprar o Ministério da Cultura. Melhor, criar um, já que não existe", ironizam. "Ao contrário do que se possa pensar, não interessa o dinheiro, mas sim a viagem", reforça Luís Ismael.

Tanto assim é, que sublinham o investimento realizado em ‘Balas & Bolinhos Mesmo à Frente do Teu Focinho’!. "Tínhamos a opção de fazer um espetáculo mais pequeno, com menos meios, e iríamos vender os mesmos bilhetes", assegura Jorge Neto, enquanto João Pires reforça que a ida a Lisboa "acaba por ser um capricho nosso". Ou, como acrescenta Luís Ismael, "é importante mostrar que o ‘Balas’ não é só do Porto". Com cerca de 100 pessoas, entre elenco e técnicos, "é uma grande festa de despedida".

MENINOS NÃO ENTRAM

Não será uma festa para todos, pois o espetáculo foi classificado para maiores de 18 anos. "É por causa de haver um idiota que acha que dizer car*** e f***-se é mais agressivo do que mostrar sexo às quatro da tarde numa telenovela. O que se há de fazer?!", indigna-se Luís Ismael.

O vernáculo é uma constante da vida de ‘Tone’, ‘Bino’, ‘Rato’ e ‘Quim Culatra’, o que ficou definido desde o primeiro esboço de argumento. "O vocabulário utilizado é, na nossa perspetiva, o que bate certo com estas personagens. São criminosos de sarjeta e não ia pô-los a falar como na Linha de Cascais. Quem gostar, gosta; quem não gostar, que ponha na beirinha do prato, como a minha avozinha costumava dizer", reforça o realizador, cuja filha de 11 anos conhece o trabalho do pai – apesar dos esforços da Comissão de Classificação de Espetáculos – e "não repete nada do que ouve". Para João Pires, é um problema que ainda não se coloca, visto que o filho tem um ano e meio.

Depois do adeus de sábado, seguir-se-á "um período de hibernação", mas Jorge Neto adverte que tudo pode acontecer quando se juntam "pessoas divertidas e especiais". Da mesma forma que o título ‘Balas & Bolinhos’ se deve a uma cena em que as balas essenciais para um assalto estavam junto a um prato de bolinhos de bacalhau, outra qualquer iguaria pode despertar uma nova trilogia.

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