page view

"Ficaram pedaços de todos na Guiné"

Foi tudo muito difícil. Não havia qualquer estrutura. O isolamento era total e a logística precária. E o inimigo estava cada vez mais activo na região.

17 de maio de 2009 às 00:00

A 26 de Outubro de 1972 embarquei de avião para a Guiné, em rendição individual, com destino à Companhia de Caçadores 4540, que já se encontrava no Norte, em Bigéne. Mandaram-me com uma guia de marcha e transporte em coluna terrestre. Se quem emitiu a ordem soubesse as dificuldades para chegar por aquele meio, tenho a impressão de que ainda hoje lá andaria à procura de uma coluna militar. Valeu-me que, em Bissau, encontrei um sargento algarvio meu amigo, que se prontificou a ir comigo ao quartel- -general e responsabilizar-se pelo meu transporte. Era da Marinha e, precisamente nessa semana (finais de Outubro), deslocava-se a Bigéne para efectuar um reabastecimento à companhia. Foi assim que cheguei à minha guerra.

Estávamos a 12 de Dezembro de 1972 quando desembarcámos, a bordo da lancha Bombarda, em Cadique, na península dos rios Cumbijã e Cacine. A nossa missão era recuperar a zona de Cantanhez ao PAIGC. A operação ‘Grande Empresa’ foi concluída com sucesso e com o auxílio da Força Aérea Portuguesa, com um bigrupo da Companhia de Caçadores Pára-quedistas 121. O general António de Spínola, governador e comandante-chefe das Forças Armadas, acompanhou sempre de perto o desenrolar das movimentações das tropas, terminadas a 17 de Agosto de 1973.

Foi tudo muito difícil. Não havia qualquer estrutura montada. O isolamento era total e a logística precária. Fomos desbravando a densa mata e depois, com a ajuda de máquinas de engenharia militar, construímos as nossas ‘fortalezas’: uns pequenos buracos feitos no chão, tapados com paus de palmeiras e terra por cima. Abrimos estradas, poços e construímos um heliporto e um cais. Estávamos cercados por uma extensa bolanha e pela a mata de Cantanhez, até à aldeia de Jemberém. A Norte passa o rio Bixanque, que desagua no Cumbijã, e a Sul o rio Macobum. Um pouco mais distantes ficavam as aldeias de Cadique Nalú e Cadique Imbitina e, mais a Norte, Cadique Ial.

A minha companhia esteve quase sempre acompanhada por companhias de Pára-quedistas, Fuzileiros e Comandos. Logo nas primeiras missões no terreno fomos atacados pelos turras, situação que se manteve quase todos os dias. O inimigo estava cada vez mais activo na região de Cantanhez. Para pôr cobro à situação foi decidido construir uma estrada entre Cadique e Jemberém, obra a cargo de uma companhia de Engenharia Militar. A nossa missão era garantir a segurança dos militares e civis que ali trabalhavam.

No dia 10 de Junho de 1973, em Cadique, fomos atacados com canhões e morteiros. Estávamos a descarregar a lancha Bombarda, que tinha ido reabastecer as nossas tropas. Não houve vítimas, mas muita destruição. As nossas tropas reagiram ao fogo do inimigo. Estava eu a chegar ao acampamento numa Berliet, carregada de mantimentos que tinha ido carregar à lancha, quando, subitamente, fomos atacados com artilharia pesada já dentro do acampamento. Fiz alguns cálculos mentais rápidos, para ver onde estavam os inimigos, e disparei um morteiro de 81 mm, que acertou em cheio na sua base de fogos. Fez-se um silêncio profundo de ambos os lados. Recebi um louvor por esta minha acção.

Após a construção da estrada, deixámos Cadique. Para trás ficaram também várias tabancas e ajudámos a desenvolver a região de Cantanhez. Lá ficou um pedaço de nós todos e do nosso suor e muitas lágrimas derramadas e partilhadas com os nossos pais, que aguardavam o nosso regresso. Lembro-me como se fosse hoje, quando se ouvia o helicóptero a chegar com os nossos aerogramas. Eram notícias da civilização que se dissipavam à medida que se deixava de ouvir a máquina voadora. Dizia um, ‘olha, o meu filho já diz papá’, dizia outro, com a voz meio chorosa, que a namorada não aguentava mais a longa separação e que sua mãe estava a passar mal. Tudo isto marcou-nos e, como disse o capitão Manuel Varanda Lucas, 'pedaços de nós todos ficaram indissoluvelmente ligados para sempre a Cadique'.

Em finais de Agosto 1973 regressámos a Bissau e fomos colocados, a 8 de Setembro, em Nhacra, ficando eu a comandar a secção de Ensalmá, no controlo das viaturas que circulavam numa pequena estrada com uma ponte, que ligava aquelas duas localidades, próximo de Bissau. Em 25 de Agosto de 1974 regressei à Metrópole no paquete Uige e cheguei a Lisboa passados cinco dias. Passei à disponibilidade a 22 de Setembro de 1974, como furriel miliciano de Operações Especiais (Ranger).

'COMECEI CEDO A TRABALHAR'

O ex-combatente é natural da freguesia da Conceição, Tavira, distrito de Faro. Tem o 12.º ano. Casou em 22 de Março de 1975 e tem uma filha, nascida a 8 de Março de 1980 (Dia Internacional da Mulher). 'Comecei cedo a trabalhar como escriturário na Junta Autónoma de Estradas, onde iniciei funções a 19 de Dezembro de 1969. Passei para o Ministério das Finanças – Direcção-geral dos Impostos – Direcção de Finanças de Faro, a 18 de Novembro de 1994 com a categoria de chefe de repartição de administração geral e hoje tenho a categoria de técnico superior principal.' 

Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?

Envie para geral@cmjornal.pt

o que achou desta notícia?

concordam consigo

Logo CM

Newsletter - Exclusivos

As suas notícias acompanhadas ao detalhe.

Mais Lidas

Ouça a Correio da Manhã Rádio nas frequências - Lisboa 90.4 // Porto 94.8