- O fado está marcado nos genes da família Câmara?
- Acho que sim (risos). Todos os Câmaras cantam. Já havia o João do Carmo, depois veio o Vicente e todos os outros, o filho, José, o Nico, o Gonçalo, o Nuno. Não somos primos direitos, mas há uma ligação através dos avós. A primeira senhora que ouvi foi Teresa de Noronha, da família, e o homem que mexeu comigo foi o Vicente Câmara, que fazia programas na Emissora Nacional.
- Celebra 50 anos de carreira. Sente-se um artista?
- Sinto. Na realidade, começara a cantar antes, mas conto a partir de 1961, quando gravei pela primeira vez um disco para ser de mensagem, que era o ‘Fado da Despedida'. Foi quando sai de casa para fazer a entrega total a Cristo. E os 50 anos de carreira coincidem com os 50 anos de vida religiosa. Só fui ordenado em 1973, mas a data de 1961 marca a minha carreira artística a cantar para Deus.
- O que define um artista?
- Na área do canto, um artista é alguém que canta bem, acima do normal, que tem personalidade, que não imita, apesar de ter as suas referências. Há de facto um limite, abaixo do qual não se é artista.
- É obrigatório o talento ou a formação também ajuda?
- O talento é fundamental. Eu nunca aprendi nada. O meu pai não me deixou estudar música, porque achou que ia tirar tempo aos estudos. Na altura tive pena, mas agora já não, pois sem ter aprendido nada, apenas por intuição, quase 90% do meu repertório é música minha. É algo que não sei explicar. Existe imensa gente que faz música sem ter aprendido. Tem é de se ter qualidade. E se o público gosta, normalmente é porque o artista tem qualidade.
- Disse que chegou a ter os espectáculos mais cheios do que a igreja. Ainda é assim?
- Não é bem isso, o que quis dizer tem a ver com o passar a mensagem. Estudos revelam que ao fim de seis, sete minutos, uma pessoa desliga pois não tem poder de concentração. Para estar sentado numa igreja, a ouvir o padre falar durante meia hora, isso obriga a que a mensagem tenha interesse, o orador tenha características de artista de teatro, saiba fazer gestos e poder de comunicação. E comecei a notar que nos meus espectáculos as pessoas ficavam pregadas, serenas. Na igreja mexem-se mais.
- A ida de Frei Hermano para um convento surpreendeu. Porque manteve segredo?
- Não sei. Queria ter a certeza, passei mais de um ano a estudar a vocação e só disse aos meus pais um mês antes de entrar.
- Não era uma pessoa recolhida, frequentava a sociedade, ia a casas de fado...
- Às casas de fado também ia, mas sempre em grupo. Naquela altura era A Toca, do Carlos Ramos, A Tipóia, O Embuçado ou A Parreirinha, que gostávamos muito, pois estava lá a Celeste Rodrigues, que cantava muito bem. Por vezes, também aparecia a Amália. Naquela época havia festas em casas de famílias, algumas só para dança, com orquestra do Shegundo Gallarza. Lembro-me de que a minha primeira festa de dança, em que ia excitadíssimo, foi no Estoril, tinha 15 anos. Convivia-se entre famílias, tudo gente conhecida. E cresci com amigos do Estoril, Cascais e Sintra. Havia os bailes em que as meninas debutavam de branco e aí passava-se imensa coisa. Agora é tudo nas discotecas, há menos distinção, mais mistura.
- Falou-se de um caso de amor que o levou a esta vida...
- Costumo dizer que foi um caso de amor, mas não o que as pessoas pensam. A vocação a Deus é um caso de amor.
- Deixou alguém cá fora...
- Sim, sim.
- Podemos saber quem?
- Não posso dizer quem, mas posso dizer que me custou muito, como a qualquer rapaz que anda num meio com raparigas lindíssimas. Nós, religiosos, também nos apaixonamos. Isso é que as pessoas não entendem. Quando um rapaz decide ir para a vida religiosa e abdica do casamento, do amor, não é por não ter atracção pelas raparigas. É porque a vocação é algo sobrenatural, que não se pode explicar, e há a obrigação de a seguir.
- Mas cantou poetas como Pedro Homem de Mello, Mário de Sá-Carneiro... Como é que o público reagia?
- Temos bons autores. E fui muito bem recebido, pois tive sempre o cuidado de escolher textos simples.
- Circulam posts na net pelo facto de ter cantado ‘O Rapaz da Camisola Verde', poema de Homem de Mello que se presta a várias leituras...
- Quando me chegou à mão, em 1969, o Pedro Homem de Mello não estava nada à espera que eu gravasse aquilo. Tinha uma quantidade de versos, e eu, com licença dele, cortei à faca, este sim, aquele não, e pus assim um bocado soft. Cantei a história de um rapaz que se perde e que eu poderia ter salvado se tivesse feito alguma coisa por ele. Depois, a Amália também gravou. Na altura ninguém questionou.
- Cantava para um público especial?
- Gostava de cantar para todas as camadas sociais, todo o público. Num disco metia mensagens religiosas e também números folclóricos ou música popular portuguesa. Eu nem sabia o tema de ‘O Rapaz da Camisola Verde', mas aquela imagem que surge quando se diz ‘era o rapaz de camisola verde, negra madeixa ao vento, boina de marujo ao lado' cativa as pessoas, seria o símbolo do rapaz rebelde, que não se porta bem e se perde, e que poderia ter salvado se tivesse feito alguma coisa... é assim.
- Em 1978 gravou o ‘Nazareno' e nos anos 80 levou à cena o musical, em que fazia de Cristo na cruz...
- Foi o Mário Martins, director musical da Valentim de Carvalho, que me pediu para gravar uma obra de grande fôlego, um musical, com princípio, meio e fim. Criei um Cristo à portuguesa. Tinha havido à pouco tempo o ‘Jesus Cristo Superstar' e eu escolhi as cenas simples que as pessoas conhecem, como o nascimento de Cristo, as Bodas de Caná, com muita alegria e bailados, a morte e a ressurreição. Houve pessoas que ficaram chocadas, mas as Bodas de Caná foram assim, uma coisa alegre.
- Ganhou muito dinheiro?
- Sim.
- E o que fez aos seus bens quando entrou no convento?
- Como fui tão bem recebido, o convento era pobre e nunca me pediram nada, nunca gastei um tostão e fiz o curso todo de teologia à conta dos Beneditinos, deixei tudo para eles. Depois, quando fundei os Apóstolos de Santa Maria já estava nos píncaros da fama e subi o cachet. Esse dinheiro, discos, espectáculos, direitos de autor, foi todo para esse efeito, criar uma fundação do apostolado através da música.
- Foi difícil conciliar a vida religiosa com os palcos?
- Sim. Tudo o que nos obrigue a sair de casa, ter de gerir o tempo e questionar se é isto que Jesus quer de nós exige meditação. Peço sempre ao Espírito Santo que me guie, para saber se vale a pena ir. Se fosse hoje, voltava a escolher esta vida, mesmo que fosse proibido de cantar. Quando entrei no convento pensei que nunca mais iria cantar.
A VERDADEIRA VOCAÇÃO DO MONGE CANTOR
Diz quem o conhece bem que a religião sempre viveu em Hermano Vasco Villar Cabral da Câmara. Um entre sete filhos de um família aristocrata, cresceu na Quinta da Alagoa, em Carcavelos, estudou no Colégio Manuel Bernardes, no Paço do Lumiar, e frequentou a elite da sociedade portuguesa. Talentoso, com lamento na alma, escapulia-se para as casas de fado, onde gostava de ouvir vozes populares, e tudo indicava que viesse a engrossar a lista dos galãs Câmara, fadistas da sociedade e pais de família. Só quem lhe era muito próximo não foi surpreendido com a entrada num mosteiro de frades beneditinos, em 1961, quando já contava 27 anos. A família chorou, "ninguém esperava que o Quico fosse para frade", os amigos estranharam e os companheiros de fado lamentaram a partida de um ‘compincha'.
"Foi uma surpresa para todos", admite Lili Caneças, que se cruzou com a pessoa que Frei Hermano da Câmara era antes de se tornar monge. Como era hábito nas décadas de 1950 e 60, as elites frequentavam as mesmas salas. "Lembro-me de o ver no Clube de Ténis do Estoril, dava-me com as irmãs mais novas, e sei que era costume cantar em festas particulares. Era muito bonito, saía bastante e quando entrou para um convento aquilo foi muito comentado, dizia-se que sofrera um grande desgosto. Para nós, aquela ideia romântica de alguém se refugiar num convento era inspiradora", diz a socialite.
Celeste Rodrigues, irmã de Amália, foi das poucas privilegiadas a ouvir de viva voz a despedida do fadista. "Éramos amigos, ele ia às casas de fado com o Conde Sobral, um senhor mais velho que fez muitas letras para fados, mas não cantava aí. Nessa altura tivemos uma conversa no Campo de Santana e disse-me que ia para um retiro, mas nunca pensei que fosse definitivo. Depois, não convivi mais com ele."
Companheiro de fados e festas, João Braga não foi apanhado de surpresa. "Ele era místico, rezava muito, mesmo antes de cantar, e eu, que o acompanhei em várias festas de caridade onde cantávamos fado, como a casa do Prior da Ereira, conhecia essa sua faceta. Gostava muito de o ouvir cantar, pois tinha uma voz diferente, um modo próprio de cantar fado, mas ele era muito ligado à religião", lembra o fadista.
O próprio Frei Hermano conta que, por influência das palavras da mãe, o dia da Comunhão foi o mais bonito da sua vida e que as reguadas sofridas no colégio de padres, onde nunca se sentiu integrado, eram vividas como os flagelos de Cristo. Hermano Vasco pedia ao pai para praticar esgrima, tocar piano, mas o patriarca, severo, só o deixou fazer ginástica respiratória. Temia que o rapaz não se aplicasse nos estudos, em que não era brilhante. Em família, rezava-se o terço, faziam-se peregrinações a Fátima, ouvia-se o fado e davam-se longos passeios a cavalo pela Quinta da Alagoa, em Carcavelos, onde também se produzia vinho.
Foi precisamente esse néctar particular que Frei Hermano escolheu para se despedir das guitarras e violas que o acompanhavam ao vivo. Joel Pina, viola-baixo, tocou com ele desde o primeiro dia e ainda recorda o cartão e a garrafa de vinho que recebeu após um espectáculo na Feira da Golegã. "Pedia para bebermos em sua honra. Ficámos tristes, pois cantava muito bem. Na altura falou-se de uma paixoneta, mas acredito que terá sido mesmo vocação."
Apesar da escolha pela vida religiosa, o Frei não conseguiu desligar-se do canto. Em 1961 lança o ‘Fado da Despedida', registo autobiográfico gravado no mosteiro de Santo Tirso, que lhe abre as portas do êxito.
"Fui ao Convento de Singeverga, passámos lá três dias, dormimos nas celas, fomos servidos pelos monges e a certa altura o próprio Frei Hermano veio servir-nos", recorda Joel de Pina. "Resultou muito bem, pois a acústica era muito boa e havia um grupo de seminaristas, com as chamadas vozes brancas, que cantaram no disco."
Aos superiores, Frei Hermano da Câmara pedia licenças para cantar, gravar e dar espectáculos. Marcado pelas mudanças do Concílio Vaticano II e do Maio de 68, a que assistiu em Paris, lança em 1978 o ‘Nazareno'. O disco, o mais caro à altura, tornou-se ouro na época efervescente do pós-revolução e nos anos 1980 subiu ao palco do Coliseu dos Recreios num musical encenado por Carlos Avillez, que juntou Frei Hermano na pele de Cristo, Amália como Maria Madalena, e ainda António-Pinto Bastos, Teresa Siqueira, Mara Abrantes, Carlos Quintas e Vítor de Sousa.
Vicente da Câmara, primo afastado, ajudou a esgotar a lotação das cinco noites. "Praticamente não o vejo desde que foi para frade, mas vi o espectáculo no Coliseu. Quando ele abria a capa tinha o público todo na mão". "Foi um êxito, toda a gente ia ver o Frei Hermano que transformou-se de monge em pop star", confirma Lili Caneças.
Nessa década, lança obras musicais de envergadura e funda os Apóstolos de Santa Maria, ordem cujo carisma segue o apostolado pela música. Hoje, aos 77 anos, mantém a casa no Estoril e canta para passar a mensagem de que "a Deus nada é impossível".
NOTAS
ESTREIA
Em 1955, grava o primeiro disco, ‘Sunset and Sentiment', e em 1961 ‘Fado da Despedida'.
AUTORES
Musicou Miguel Torga, Fernando Pessoa, Homem de Mello, Fernanda de Castro e outros.
OBRAS
‘Nazareno', ‘Totus Tuus - Uma Serenata Mística aNossa Senhora' e ‘Missa Portuguesa' são obras emblemáticas.