O cientista conhecido pelo seu contributo para a teoria da velocidade da luz variável estreia-se na ficção com ‘Olifaque’.
A comunidade portuguesa de Toronto recebeu João Magueijo de braços abertos e o cientista acaba de retribuir com ‘Olifaque’ (Clube do Autor), romance cheio de vernáculo e escrito em emigrês que o autor considera uma homenagem a cinco milhões de emigrantes.
Este livro nasceu da conversa com um embaixador que lhe confessou não gostar de emigrantes?
Foi o gatilho para escrever um livro que, de certa maneira, é um manguito a uma elite intelectual que se acha com direito de julgar os emigrantes e de falar mal deles, quando são vítimas de uma situação que o país lhes criou. É assim que a situação devia ser vista e não com arrogância em relação ao nível cultural. E depois há a questão da língua emigresa, que é muito mais pragmática e eficiente do que o latim de escola que as pessoas sabem, e que passa por inglês. Não é ‘fuck’ que se diz – é ‘faque’ (risos).
Assegura que, tirando um gato especialmente bravo, nenhuma personagem do livro corresponde a uma pessoa real.
É tudo baseado em pessoas reais. Mas facto a facto, caso a caso, não são pessoas reais. Inclusive o doutor, uma das personagens, não sou eu. O gato é real, mas o resto não. É baseado em coisas reais, e algumas são muito piores do que as ‘telenovelas’ que aparecem no livro.
Acredita que vai haver pessoas em Toronto a sentirem-se retratadas?
Penso que não. Foi feito de maneira muito cuidadosa. Até em os ‘Bifes Mal Passados’ – e aí era mesmo tudo real – foi tudo feito de uma maneira muito ‘encripted’… Como se diz? Houve um certo cuidado de preservar a privacidade das pessoas. E ainda é mais fácil fazer isso numa obra de ficção. Não tenho imaginação nenhuma – costumo dizê-lo – e baseia-se em coisas de que de facto se passaram, mas estão suficientemente misturadas para ninguém se rever. As histórias reais são piores do que estas. Sempre que chego a Toronto, passo uma hora a ouvir um resumo das jogadas principais do último ano. Da última vez que lá estive já tinha acabado de escrever e pensei: "Ena, tinhas posto esta história no livro!"
São coisas que chocam com o Código Penal?
Definitivamente. Há violência doméstica, uma razão pela qual crianças são retiradas aos emigrantes muito frequentemente. As pessoas chegam lá fugidas de um trauma e os traumas reciclam-se para a geração seguinte. E muitos conseguem passar por cima da realidade canadiana. A parte final do livro é positiva e cor de rosa - no fundo é uma telenovela a brincar -, mas também é verdade, porque há uma certa esperança em relação às pessoas que foram para Toronto. O Canadá tem essa coisa de absorver a emigração e deixar as pessoas reciclarem-se, começarem uma vida nova e não perderem a cultura que trouxeram.
É a versão ‘light’ dos EUA?
Os emigrantes dizem que, indo para os EUA, é preciso perder aquilo que se foi, ao passo que, no Canadá, há uma certa glorificação da cultura que se trouxe. A identidade canadiana é uma fusão das culturas todas que ali estão.
Quantas pessoas entenderiam o título do romance, ‘Olifaque’, se não tivesse feito um glossário no final?
É um daqueles livros que no princípio talvez seja difícil, mas depois o leitor entra na língua. Há o risco de não resistir, mas também existe a possibilidade de ser viciante. Lembro-me de que na escola tivemos de ler Fernão Lopes e odiávamos. Mas ultrapassado o esforço inicial, os putos adoravam. Ia apanhar o autocarro a falar português arcaico. Há uma tendência infantil para pegar em línguas diferentes e funcionar com elas. Eu e a minha irmã falamos ‘avozês’, pois era o que a minha avó falava. Todos temos tendência para criar línguas internas e o emigrês é perfeito para isto.
Pôs a hipótese de não fazer um glossário e deixar as pessoas adivinhar o que significam palavras como "uarcar" [trabalhar]?
O glossário era fundamental. Mas espero que seja redundante ao fim de algumas páginas.
Todas aquelas palavras são usadas por muita gente ou algumas são da sua lavra?
É incrível cinco milhões de portugueses falarem uma língua e nós não a estudarmos. Nunca tivemos a curiosidade de compreender. Toda a linguagem usada no livro foi levantada, palavra a palavra, primeiro porque eu falava essa língua e depois porque, tendo regressado e estando a escrever o livro, tive o cuidado de apanhar e refinar.
Admite que mesmo quem já tenha lido ‘Bifes Mal Passados’ fique surpreendidos com o vernáculo que utiliza em ‘Olifaque’?
Quis usar a linguagem mais realista possível e o resultado foi este. No ‘Bifes’ foi opção de estilo, ao passo que aqui havia a questão concreta de usar palavras que as pessoas usam – não só emigrês mas também o vernáculo. A segunda geração veio do Norte de Portugal e não tenho que explicar que, nesses casos, car... é uma vírgula e não um insulto.
A comunidade científica conhece esta sua faceta?
A minha faceta científica é um bocado parecida: mais criativa e fora do ‘mainstream’. Tem a ver com a minha personalidade e maneira de ser. E a comunidade científica inglesa é extremamente tolerante em relação a extravagâncias. Não há uma contradição.
É reconfortante soltar "m..., car..., f...-se" junto de quem não entende o que essas palavras significam?
Normalmente, digo em inglês (risos). E ninguém se sente mal. A comunidade científica portuguesa é mais formal do que a inglesa. A formalidade é muito superficial em Inglaterra. Na prática, é um dos países mais informais do Mundo.
Corre o risco de que alguns emigrantes julguem que está a fazer pouco deles?
Não. Acho que se nota a empatia total com o tipo de vida e os problemas que tiveram. Em relação à língua, o livro pode ser bom para os intelectuais portugueses aprenderem inglês, pois os emigrantes falam melhor. Às vezes dizem mal do Mourinho, mas o inglês dele é perfeitamente compreensível, ao passo que o inglês que as pessoas acham que é correto ninguém percebe.
Criou-se a ideia de que é estranho que alguém que foi tradutor não saiba falar bem inglês...
As pessoas que dizem isso falam inglês horrivelmente e não percebem. Apanharam o inglês de uma forma demasiado gramatical e escrita. Os portugueses dizem coisas como ‘aipede’, mas o iPad é ‘aipade’. Dizem ‘jetelegue’, o que é ‘perna a jato’, e coisas que não existem em inglês. Como têm uma imagem escrita na cabeça, não percebem que aquilo não funciona. Já o emigrês funciona, e é uma língua feita para funcionar. É mais fonética, e pode ter disparates gramaticais, mas funciona.
Estes cinco milhões de emigrantes são os heróis desconhecidos de Portugal?
Acho que sim. É uma vergonha termos andado a ignorar esta gente durante estes anos todos.
E porque ignorámos?
As pessoas gostam muito de se pôr no pedestal e as que ficaram em Portugal às vezes têm a cobardia de não sair. Eu saí, mas não tive escolha. Não havia um mestrado de Cosmologia em Portugal, pelo que tive de ir estudar para Cambridge. Tive o problema que toda a gente tem, que é o medo de sair, mas estes emigrantes tiveram capacidade de saltar por cima desse medo.
Gostaria que o ‘Olifaque’ desse origem a uma espécie de ‘Gaiola Dourada’ para maiores de 18?
A ‘Gaiola Dourada’ tem uma certa glorificação da emigração, quando no fundo a emigração tem coisas que são pesadas. Teve a vantagem de abrir um bocado a visão sobre os emigrantes dentro de um país em que as pessoas não querem olhar para isso. Eu acho que o ‘Olifaque’ dava um excelente filme, ou se calhar uma telenovela.
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