José Diogo, trabalhador agrícola, matou à facada um lavrador de Castro Verde, Columbano Líbano Monteiro. A União Democrática Popular (UDP) fez do crime uma bandeira política e do seu autor um herói revolucionário. Defendia a UDP que o réu não podia ser julgado pela “justiça burguesa e capitalista” – e promoveu um julgamento um tribunal popular, em Tomar, no dia 25 de Julho de 1975. O camarada Zé Diogo foi absolvido do homicídio e o agrário, vítima do crime, condenado a título póstumo.
Columbano Líbano Monteiro, abastado lavrador, era um homem do regime deposto em Abril de 1974: ex-legionário, amigo íntimo de Santos Costa, que durante cerca de 30 anos foi o ministro de confiança de Salazar para os assuntos militares, antigo presidente da Câmara Municipal de Castro Verde. O agrário havia de estranhar os ventos da revolução.
Em Setembro de 1974, ainda não tinha começado a ocupação – mas as regras nos escaldantes campos do Alentejo já não eram as mesmas de antigamente: os assalariados reclamavam melhores pagamentos e os latifundiários já não podiam chamar a GNR para calar os protestos.
O tractorista José Diogo, de 36 anos, recusou-se um dia a trabalhar para além da hora devida, ainda por cima não ganharia por isso nem mais um centavo. Foi despedido. José Diogo tinha mulher e dois filhos pequenos. Ao fim de uma semana de desemprego, a fome começou a apertar. Sabia que o agricultor precisava de um tractorista. Em finais de Setembro, após as primeiras chuvas, era tempo de lavrar as terras. Columbano teria trabalho para lhe dar – e José Diogo foi procurá-lo a casa, em Castro Verde.
Em 30 de Setembro de 1974, um domingo, José Diogo abeirou-se do portão do quintal da casa de Columbano. O antigo patrão deu-lhe licença para entrar - e ele avançou. Mas esqueceu-se de tirar o boné. O agrarário não terá gostado da ousadia. Os dois homens discutiram. José Diogo sacou da faca que trazia sempre no bolso – e espetou-a na barriga do outro.
Columbano Líbano Monteiro foi transportado para o velho hospital concelhio de Castro Verde, onde não se encontrava nenhum médico de serviço. Transferiram-no para Beja.
José Diogo, entretanto, fora detido pela GNR e conduzido ao Tribunal de Ourique. Apenas no dia 2 de Outubro, a conselho dos médicos de Beja, Columbano Monteiro procurou ajuda em Lisboa: ficou internado na Casa de Saúde das Amoreiras, onde faleceu dez dias depois. Na certidão de óbito, como causas da morte, constam: “peritonite, ferida por arma branca e insuficiência cardíaca”.
A facada desferida por José Diogo atingiu Columbano Líbano Monteiro no intestino. Segundo a acusação deduzida pelo juiz de instrução criminal de Ourique, “a lesão traumática do intestino, a que sobreveio como complicação uma peritonite, resultou na morte do ofendido”. O juiz entendeu que José Diogo teve intenção de matar. Mandou o acusado para a cadeia de Beja, onde ele ficou a aguardar julgamento por homicídio voluntário.
Em Maio de 1975, ainda o julgamento não tinha data marcada. A UDP movimentou-se por José Diogo – e organizou uma campanha pela libertação do recluso. O jornal ‘Voz do Povo’, o órgão da União Democrática Popular, não calava a revolta pela prisão do tractorista: “A actuação do camarada Zé Diogo é o resultado de um ódio acumulado por anos e anos de trabalho a troco da fome e da opressão, das bofetadas e das prisões que o fascista nunca se cansou de fazer em vida. Agora já não faz mal a ninguém, foi saneado da face da terra”.
A UDP não queria que o acusado fosse julgado: “O caso de José Diogo é bem elucidativo do carácter de classe do direito burguês, vigente em Portugal e nos outros Estados capitalistas. Para os tribunais, juízes, leis e polícias burgueses, José Diogo é um homem acusado de ter morto outro homem. Para o direito capitalista não há exploradores e explorados, há apenas homens iguais perante a lei. Ora essa igualdade, pretensamente garantida pelas leis burguesas, é uma farsa, um logro, uma mentira”.
José Diogo fora transformado em mártir da revolução. Mas a Justiça teimava em julgá-lo. Primeiro, em Ourique. Depois, em Lisboa. Ambos os julgamentos foram adiados por razões de segurança. Em Julho de 1975, José Diogo foi transferido para a cadeia de Tomar, a fim de que fosse julgado nesta comarca.
Foi então que a UDP organizou o julgamento popular de José Diogo. Constituiu um júri, que se reuniu em Tomar. Ao fim de algumas horas, a deliberação do júri do povo foi anunciada ao País. O jornalista José Mário Costa fica na história como porta-voz do tribunal popular: o camarada José Diogo foi absolvido do crime, enquanto a vítima mortal da facada era condenada, a título póstumo, por ter explorado os trabalhadores durante tantos anos.
A absolvição pelo tribunal popular não chegou para libertar José Diogo – que acabou, mais tarde, por ser julgado no Tribunal da Boa Hora, em Lisboa. Foi defendido graciosamente pelo advogado Amadeu Lopes Sabino. Os juízes condenaram-no a seis anos de cadeia. José Diogo, contado o tempo de esteve preso à espera de julgamento, saiu em liberdade condicional meses depois.
REVOLUÇÃO DIA-A-DIA
24 DE JULHO - Boletim do MFA propõe a construção de um Estado Socialista; Assaltos a sedes do PCP, em Sever do Vouga e Fafe.
25 DE JULHO - Assembleia do MFA convocada pela ala militar comunista: reunião decorre sob o lema ‘Um Ritmo para a Revolução, Um Caminho para a Independência nacional e Um Curso para Continuar a Descolonização’; apoio à criação de um directório, a chamada troika, com Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo.
27 DE JULHO - Manifestação em Bragança de apoio ao Episcopado.
JORGE SAMPAIO
O Presidente da República esteve na oposição ao Estado Novo: participou nas lutas académicas de 1962 (foi presidente da RIA, Reunião Inter-Associações) e, como advogado, defendeu presos políticos. Em 1969, foi candidato e deputado pela CDE. Em Dezembro de 1974 fundou o Movimento de Esquerda Socialista (MES). Foi secretário de Estado da Cooperação Externa, no IV Governo Provisório. Após a acalmia do PREC, fundou o Grupo de Intervenção Socialista - e, três anos depois, aderiu ao Partido Socialista.
O CAMARADA EXPLICA-SE POR CARTA
A UDP (União Democrática Popular) divulgou, em Maio de 1975, através da Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas, uma carta enviada por José Diogo da cadeia de Beja. A carta tem a data de 3 de Janeiro de 1975: “(...) Camaradas, encontrando-me preso na cadeia de Beja por ter abatido um dos maiores inimigos do povo, o maior inimigo que existia na região de Castro Verde. (...) Este fascista chegou mesmo a esbofetear e chicotear ceifeiros e outros ao seu serviço e outros trabalhadores seus, que em seguida os entregou à Cadeia de Beja, sendo alguns destes depois enviados ao forte de Caxias e outros presídios. Eu trabalhei para esse carrasco três meses e meio no tempo da debulha (...) de sol a sol (...)”
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