Há quase 20 anos, Bob Geldof sonhou combater a miséria através da música. Uma caixa de quatro DVD agora editada lembra o concerto
Com pontualidade britânica, ao meio-dia de 13 de Julho de 1985, várias figuras do mundo da canção deram as mãos, afinaram as vozes, os instrumentos, e alinharam naquele que é considerado como um dos maiores concertos até hoje realizados: o ‘Live Aid’.
Entre as 72 mil almas que esgotavam a lotação do Estádio de Wembley, em Londres, encontravam-se Carlos e Diana de Gales, anunciados em alto e bom som por Richard Skinner. Seguiu--se a saudação real, para um minuto mais tarde ecoar ‘God Save the Queen’, o hino a dar o mote para uma maratona musical que se estenderia por 16 horas.
Do outro lado do Atlântico estava tudo a postos. Dividido entre a capital inglesa e os Estados Unidos, onde foi acolhido no Estádio JFK, em Filadélfia, o ‘Live Aid’ tornou-se uma lenda, marco incontornável entre os eventos de caridade a sério.
Bob Geldof, então vocalista dos Bomtown Rats, assumia as funções de homem do leme do projecto transcontinental. Em parceria com Midge Ure, dos Ultravox, tinha dado os primeiros passos na matéria ao conceber a ‘Band Aid’, reunião de artistas de onde saiu o tema ‘Do You Know It’s Christmas?’, êxito à escala europeia, responsável pela angariação de oito milhões de libras para a luta contra a fome em África – os ‘States’ responderam com o colectivo USA for Africa a trautear ‘We Are The World’.
Entusiasmado com aquele dia de boa memória, Geldof aproveitava as pausas entre as actuações para manter os telespectadores pregados ao ecrã: “Não vão para o bar esta noite – por favor fiquem ligados e dêem-nos o vosso dinheiro. Há pessoas a morrer agora.”
A estratégia, algo tosca, deu os seus frutos. Durante o concerto choveram chamadas de todas as regiões do planeta, com uma família do Dubai a bater o recorde dos donativos: um milhão de libras. A audiência chegou aos 1.5 mil milhões de telespectadores espalhados por 160 países e o espectáculo, rotulado desde os primeiros instantes como a mais ambiciosa transmissão via satélite de todos os tempos, revelou-se altamente lucrativo. O acerto de contas acabou por indicar um sucesso colossal: 140 milhões de euros.
CONFUSÕES (QUASE) IRREPARÁVEIS
Apesar da ideia ter sido bem sucedida, nem todos os artistas compareceram à chamada de Bob Geldof, com três baixas de peso no alinhamento inicialmente previsto: Julian Lennon, Cat Stevens – chegou a compor uma canção para aquela que seria a sua primeira aparição depois de se ter convertido ao islamismo – e Prince. Este último colmatou a falha com a gravação do teledisco de ‘4 the Tears in Your Eyes’.
Mas houve outros espinhos nessa rosa que despontou em Inglaterra e nos Estados Unidos. Mick Jagger tinha intenção de realizar um dueto intercontinental com David Bowie, impossível devido a problemas de sincronização. O ‘camaleão’ safou a honra do convento ao criar o vídeo para a versão de ‘Dancing in the Streets’ que deveria ser emitida em directo e a cores, enquanto o ‘boca grande’ dos Rolling Stones actuou em Filadélfia ao lado de Tina Turner.
Bob Dylan não deixou os créditos de figura controversa em mãos alheias e na sua actuação disparou: “Era bom se algum deste dinheiro fosse para os agricultores americanos”. Bob Geldof não gostou e retribuiu na sua autobiografia: “Ele mostrou uma completa falta de percepção de como vão ser utilizados os fundos do ‘Live Aid’. Este projecto é sobre as pessoas perderem as suas vidas. Há uma diferença radical entre perder o sustento e perder a vida (…) Foi um erro crasso e uma coisa estúpida e nacionalista para se dizer”.
Além da tirada de Dylan, no Estádio JFK a transmissão teve alguns problemas e acabou por sofrer um corte precisamente no momento em que Roger Daltrey, vocalista dos The Who, cantava ‘Why Don’t You All Fade Away?’ (‘Porque é que vocês todos não desaparecem?’), do clássico ‘My Generation’.
Mas os problemas não se ficaram por aí. Quando Keith Richards, dos Rolling Stones, partiu uma corda da guitarra, Ron Wood disponibilizou-se rapidamente a emprestar-lhe a sua. Resultado, ficou sem o instrumento e teve de recorrer à mímica para fingir que continuava a tocar.
A NOVA AVENTURA
Desde 1985 até ao lançamento da caixa de quatro DVD ‘July 13, 1985 – The Day the Music Changed the World’, o Band Aid Trust já distribuiu mais de 144 milhões de euros na luta contra a fome em África, apoiando projectos no Burkina Faso, Eritreia, Etiópia, Mali, Nigéria e Sudão.
No ano passado, Bob Geldof voltou pela enésima vez a África, de onde regressou desesperado. “Isto é vergonhoso. Está um continente inteiro em declínio desde o ‘Live Aid’. Está toda a gente a andar para a frente, menos África. Porquê? Durante quanto tempo vamos querer que isto continue?”
A 28 de Julho último o músico e empresário (ver caixa) demonstrava-se desiludido quanto à falta de sensibilidade de alguns dos actuais senhores do planeta: “Vários líderes mundiais estiveram presentes e assistiram total ou parcialmente ao evento, incluindo George W. Bush, Tony Blair e Gerhard Schroeder. Vinte anos depois, estão no poder e nada fizeram para mudar a situação”.
A luta pelo combate à fome terá em breve novos desenvolvimentos. Todos os lucros do filme serão usados na continuidade do trabalho do Band Aid Trust no continente africano e para garantir que a ajuda vá para quem necessita. “Estive pessoalmente em Port Sudan e Darfur, para garantir que o dinheiro angariado chegava às mãos certas. Estarei de novo em África para assistir à chegada dos camiões com a ajuda que pode significar a sobrevivência destas pessoas”, assegura Bob Geldof.
Quase duas décadas sobre o ‘Live Aid’, o homem que sonhou mudar o mundo através da música assentou os pés na terra. Apesar do muito dinheiro angariado, a sua visão cor-de-rosa da sociedade igualitária não passava de uma utopia.
NOME DE GUERRA: GELDOF
Apesar de continuar a acreditar cegamente na missão de dar de comer a quem mais precisa, Bob Geldof está longe da imagem do jovem idealista de outros tempos. O cabelo desgadelhado e o ar de quem dormiu no parque desapareceram. Aos 52 anos, usa um telemóvel de última geração e marca todas as reuniões numa agenda electrónica. No 'Live Aid' teve o seu grande momento televisivo ao gritar bem alto: “Give us your fookin' money” – tão célebre que passou a figurar no dicionário de frases composto pela Universidade de Oxford. E ainda hoje é reconhecido na rua devido a alguns momentos televisivos que ficaram na retina dos súbditos de Sua Majestade, como um incontornável confronto de palavras com Margaret Tatcher sobre África.
Geldof passou ao lado de uma grande carreira como cantor. Nos últimos tempos vendeu a sua agência de viagens 'on-line', assim como a produtora Planet 24, conseguindo um bom pé-de-meia que lhe permitiu ter pela primeira vez desafogo financeiro.
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