Seis meses após o regicídio, outro crime chocou Lisboa em 1908. Mataram uma rapariga de 13 anos, sem testemunhas ou castigo.
O último dia da curta vida de Maria dos Anjos começou muito cedo, como todos os outros começavam. A varina de 13 anos saiu da casa em que vivia com os pais e os irmãos, no bairro da Madragoa, e foi buscar à Ribeira o peixe que venderia pelas ruas de Lisboa, cada vez mais longe do Tejo, até haver pouca cidade e muito campo. Foi na azinhaga de Santa Luzia, que serpenteava da estrada de Sacavém para a estrada das Amoreiras (mais ou menos onde agora estão as avenidas Gago Coutinho e Rio de Janeiro) que encontraram o seu cadáver, às três horas da tarde de 31 de julho de 1908.
Ninguém sabe quanto tempo Maria dos Anjos ficou no chão, tendo à volta do pescoço o lenço de seda que servira para a asfixiar, até ser avistada por um homem que ali passou. Talvez nas quintas tenham estranhado não ouvir os pregões da jovem, e terá faltado peixe fresco nas cozinhas, mas ninguém estava preparado para aquela morte, perturbadora mesmo numa cidade que assistira seis meses antes ao regicídio, com a diferença de que os assassinos do rei D. Carlos e do príncipe real Luís Filipe foram mortos a tiro no Terreiro do Paço, e tiveram os cadáveres expostos na Morgue de Lisboa.
Para o mesmo edifício, que fascinava muitos lisboetas e horrorizava outros tantos, foi levada a pequena varina, identificada pela mãe, Ana Augusta de Sousa. Os restos mortais, escoltados pelo guarda 1090 da 10ª esquadra da Polícia Civil de Lisboa, deram entrada às sete da tarde de sexta-feira, o que contribuiu para que a autópsia só se realizasse três dias depois do óbito.
Quando o agente da autoridade chegou ao local do crime, viu a vítima com a cabeça tombada sobre torrões de terra, e os braços e pernas em desalinho. No rosto, mais de criança do que de mulher, havia manchas de sangue, bem como no pescoço, onde o velho lenço de seda fora apertado com dois nós. A cerca de 30 metros estava caída a canastra, ainda com sardinhas e carapaus, que a jovem levava à cabeça. Mais perto do cadáver, um pedaço de pão, embrulhado em papel de jornal, que ela teria guardado para o regresso a casa.
INDÍCIOS DE ABUSO
Muitas páginas se imprimiriam com notícias sobre a varina de 13 anos, que horas antes apregoara "viva da costa", "pescado do alto" ou "peixe fresco" durante os mais de oito quilómetros que caminhou em direção à morte. Terá atravessado a linha ferroviária de cintura, inaugurada no final do século XIX, no apeadeiro do Areeiro. A partir daí, pouco mais existia além das quintas e hortas que ajudaram a colar a alcunha ‘alfacinha' aos habitantes de Lisboa.
"Nas vias de entrada e saída da capital ainda havia salteadores de estrada", explica à ‘Domingo' o escritor Francisco Moita Flores, ex-inspetor da Polícia Judiciária. Naquela sexta-feira, poderiam estar à espera de Maria dos Anjos. Logo no local do crime, junto à antiga localidade do Pote d'Água, então parte da freguesia do Campo Grande, o guarda deu conta da ausência da bolsa onde a varina guardava as moedas de reis das freguesas. Quando a mãe fez o reconhecimento do corpo, apurou-se outro móbil do crime: o autor ou autores tinham levado um cordão e os brincos de ouro.
Na autópsia, feita na segunda-feira seguinte pelo diretor da Morgue, Silva Amado, concluiu-se que a morte se deveu a asfixia, "como atentam as lesões observadas nos pulmões e as equimoses na pele, no timo, no coração e nos rins". Mas também que, antes disso, fora agredida com um "instrumento de ponta aguda", provocando uma pequena ferida entre a sobrancelha e a pálpebra superior do olho esquerdo.
"Ferida sem gravidade, além disto foi subjugada, taparam-lhe a boca para que não gritasse. Parece que lhe agarraram com as mãos na face interna das coxas, próximo dos órgãos sexuais, e apertaram-lhe o pescoço com os dedos e com um lenço atado em volta dele, muito apertado", escreveu.
Perante os indícios de resistência e de tentativa de abuso sexual, Silva Amado examinou o cadáver, excluindo a hipótese de "coito anal recente". Quanto à virgindade de Maria dos Anjos, foi menos taxativo: "Não havia rutura da membrana hímen, o que não prova que não tenha havido atentado ao pudor, e até cópula, porque o hímen tinha uma abertura circular bastante grande para consentir a introdução de um membro viril de dimensões pouco avantajadas, facto que não é muito raro."
COLÓNIA VARINA
O crime da azinhaga de Santa Luzia chocou a cidade, e ainda mais aquilo a que chamavam a ‘colónia varina' de Lisboa. Eram milhares de pessoas, naturais de Ovar, Estarreja e outras localidades costeiras do distrito de Aveiro, deslocadas para a capital. Os homens dedicavam-se à pesca, enquanto as mulheres faziam venda ambulante. Também Maria dos Anjos nascera na Murtosa, que só em 1926 deixaria de pertencer ao concelho de Estarreja. Fora viver, com os pais e os irmãos, no piso térreo, designado por loja, de um edifício na rua do Cura, na Madragoa, próximo do Tejo e do Mercado da Ribeira.
Quando o corpo saiu da Morgue, milhares de varinos encheram as ruas, acompanhando o cortejo. Raparigas com a idade de Maria dos Anjos apareceram com os vestidos brancos e véus de virgens, sobressaindo naquilo que a imprensa da época classificou de "grande aglomerado de povo".
Na edição de 17 de agosto da revista semanal ‘Ilustração Portuguesa', precursora das newsmagazines em Portugal, uma reportagem de sete páginas, com fotografias da vítima, dos familiares, do cortejo fúnebre e até do sorridente cabouqueiro António dos Santos, que deu o alerta às autoridades, tinha o título ‘Os crimes célebres: A varina Maria dos Anjos'. "A pouca idade da vítima e todas as demais circunstâncias que fazem deste crime um episódio comovedor provocaram a mais dolorosa impressão", escreveu o redator, convicto de que o lenço deixado para trás era um "precioso indício guiador das investigações policiais, como prova inevitável da imprevidência habitual dos criminosos".
As semanas e os meses seguintes arrefeceram esse ânimo, sem que o homicídio de Maria dos Anjos deixasse de ser falado, embora a historiadora Rita Garnel acredite que isso não se deve apenas ao facto de envolver uma menina de 13 anos, que provavelmente já trabalharia há dois ou três. "Ser menor não tinha o mesmo significado que hoje lhe atribuímos. Como ser criança também não significa exatamente o mesmo", realça a autora de ‘Vítimas e Violências na Lisboa da I República'. "A excecionalidade, neste caso - e sempre a meu ver -, reside claro que na idade e no sexo da vítima, na solidão do caminho, mas também no aparente anonimato do autor e no também aparente caráter aleatório do caso", acrescenta.
SUSPEITA SOB CUSTÓDIA
Duas semanas após o primeiro artigo, a ‘Ilustração Portuguesa' refreava o entusiasmo. "O nome do autor ou autores do bárbaro assassínio de Maria dos Anjos são ainda um mistério, que cada dia percorrido parece adensar-se mais", lia-se na curta nota que dava conta da detenção de Josefa Maria Colares, "uma gatuna bastante conhecida da polícia", imortalizada pelo pioneiro da fotografia Joshua Benoliel ao lado de um guarda. "Tem persistido, contudo, numa negativa intransigente, contrariando os testemunhos acabrunhadores que se conjugam para a comprometer", alertava a revista.
A captura de uma suspeita não espanta Rita Garnel. "As mulheres foram sempre tão capazes de delinquência quanto os homens. Podem nem sempre ter usado as mesmas armas ou com a mesma eficácia."
Certo é que o homicídio de Maria dos Anjos não consta entre as centenas de processos julgados em 1908 nos arquivos do Tribunal da Boa Hora, depositados na Torre do Tombo. "Há muitos homicídios do século XIX e do século XX, sobretudo antes de haver a Polícia de Investigação Criminal, que ficaram por resolver", salienta Moita Flores.
Assim terá acontecido também neste caso. Chorada pelo pai, Pedro José da Silva, numa das fotografias encenadas em que a família rezava pela sua alma no local do crime, Maria dos Anjos foi caindo no esquecimento. Tal como os pregões das varinas, que deram lugar aos supermercados. A azinhaga foi substituída por ruas com prédios de apartamentos e vivendas, por onde ainda hoje caminham meninas de 13 anos, a caminho da Escola Secundária Padre António Vieira. Iguais à paisagem de 1908 só mesmo os canaviais que sobrevivem por entre o cimento e o asfalto.
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