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O PEQUENO GRANDE HERÓI

De repente, a vida de Emanuel mudou e ele passou de menino pequeno a grande herói. Salvou a irmã de dois meses de morrer queimada na lareira. Mas a vida passa devagar no Seixo, uma aldeia escondida no distrito de Viseu, onde as crianças brincam, vão à escola e têm sonhos de muitas cores

28 de junho de 2002 às 17:36

Tem uns olhos grandes, doces, dourados e profundos que não deixam escapar nada e prescrutam o mundo à volta com o interesse tamanho, enorme, próprio das crianças. Mas o mundo de Emanuel, que tem seis anos não vai muito para além da aldeia do Seixo, anexa da freguesia de Sarzeda, concelho de Sernancelhe, distrito de Viseu, onde vive. Por agora; pois já foi a Lisboa e gostou tanto que quer lá voltar. Assim como conhecer o mar que nunca viu a não ser nas revistas e nos livros, principalmente nos da escola ou então na televisão.

Emanuel Amante Sobral está prestes a passar para o segundo ano do 1.o ciclo e a Professora Dalinda afirma que ele “é muito aplicado, observador, atento, embora não muito falador. Anda a aperfeiçoar o desenho, principalmente a figura humana e está a fazer progressos”.

A aldeia do Seixo dista cerca de 360 km de Lisboa e o povo, como lhe chamam, poderia estar perdido no tempo, ao fundo da colina do Coto, cheia de pinheiros e vinhas e restos de uma velha e grande casa fidalga, outras que são mais casebres que casas e rochedos a fazer de sentinela, não fosse alguns exemplares edificados com a pompa que o dinheiro ganho no estrangeiro pode fazer, com parabólicas nos telhados e jardins bem arranjados. Mas o que prevalece no Seixo é o rústico das pedras que aquecem ao sol de Junho, um ou outro habitante vindo da jorna e algumas mulheres sentadas nos degraus da casa a ver o tempo passar. Por trás da igreja de Santa Maria Madalena, fica a escola primária, do tempo do Estado Novo, rodeada de um jardim espaçoso, com algumas flores e árvores, baloiços e escorregas.

O Emanuel é um dos onze alunos da Professora Dalinda que dentro da única sala de aulas tem alunos dos primeiros quatro anos do 1ociclo. E Emanuel é um dos melhores. Aliás, a Professora Dalinda está muito orgulhosa dos seus meninos e não tem maus alunos “uns são mais espevitados, outros mais calados, mas são todos bons alunos”. E ela recorda de que forma a aldeia evoluiu. Embora mais desertificada agora do que há 15 anos, a emigração mesmo que sazonal continua. Quando partilhava a docência com outra colega – uma dava aulas de manhã e outra à tarde – “embora houvesse mais alunos, não aprendiam nada, os pais também não se interessavam, havia grande absentismo e muito alcoolismo. Se não tivesse voltado para o Seixo, há três anos, ia ficar para sempre com as más recordações de então”, relembra a Professora Dalinda. Hoje, apesar de menos alunos e de se sentir, por vezes, muito sozinha – “a falta que me faz uma auxiliar! Vem uma senhora limpar mas é só uma horinha! Faz-me muita falta ter cá alguém!” – a Professora Dalinda está contente e tem fé de que os seus alunos não fiquem por ali, pelo 4.o ano, e pela aldeia do Seixo. Que sigam para a Escola E.B 2/3 ou para a Escola Profissional de Sernancelhe. E dali para outras paragens, para Viseu, Coimbra, Porto ou Lisboa. Quem sabe? Com habilitações o mundo torna-se maior.

Emanuel desde muito pequeno que quer ser médico ou veterinário. Poderia pensar-se que o incidente com a irmã fosse a causa provável, mas Antónia Amante, a mãe, afirma que é um desejo antigo, um sonho desde sempre que ela não consegue prever que se possa realizar. “Agora, que a escola é de graça, tudo bem! Mas depois, ter de pagar viagens e quarto e comida... logo se vê se ele consegue ir estudar! Somos muito pobres!” diz Antónia, olhando Emanuel que faz os trabalhos de casa, na mesa da cozinha da Avó Maria Fresta. Esta agarra ao colo a menina, a Ana Cláudia, com 9 meses, que já tem dois dentinhos e está bem desenvolvida para a idade “dizem os médicos, apesar de tudo o que já passou!”. Emanuel detém-se, não percebe uma palavra do livro, pede ajuda à mãe, dá beijinhos à irmã e volta a pegar no lápis para continuar a cópia, embora lhe apetecesse ir brincar aos Pokémons com o seu amigo Gabriel, que ainda anda no jardim de infância, mas este ano, em Setembro, já lhe vai fazer companhia na aula da Professora Dalinda.

Emanuel é um herói. Pequeno, um pouco tímido, nada vaidoso, mas um grande herói. Sabe que há quem lhe chame isso e não se importa. Na escola, no placard dos desenhos da sala de aula, está afixado um pequeno texto escrito pelos colegas, intitulado Pequeno, mas grande herói, onde enaltecem a sua bravura e coragem e demonstram o orgulho que têm em ser seus colegas. Também o Emanuel já apareceu nos jornais, tanto no jornal da terra, como noutros, nacionais, que a professora levou para a sala de aula e mostrou e leu as coisas bonitas que vinham lá escritas sobre ele. E o Emanuel também já apareceu na televisão, até mais do que uma vez, e todos lhe deram os parabéns e disseram o mesmo, que ele era um herói e, ao princípio, os colegas riam--se de o ver no ecrã ou nas fotografias, mas eram sempre de alegria os risos e as galhofas. Agora até eles já não ligam e gostam do Emanuel só por ele, porque é bom, esperto, amigo, e gosta de jogar à bola e saltar à corda e andar de baloiço. Mas ele sabe bem porque lhe chamam herói: “ Porque salvei a minha irmã da lareira.”

Era sábado, dia 1 de Dezembro de 2001. Feriado, dia da Restauração da Independência, embora isso, para a aldeia do Seixo, não faça muita diferença, pois nada ou quase nada perturba o sossego daquele povo, ali na Beira Alta, entre as encostas verdejantes do Douro e as serras e montanhas altas de granito.

Sábado é um dia como outro qualquer, pois o descanso é ao Domingo, que é dia do Senhor e até as festas da escola são ao Domingo porque assim já se sabe que os pais e os avós e os irmãos e os primos e os tios não faltam porque não trabalham e não têm desculpa para não irem.

A menina dormia no carrinho.Tinha pouco mais de dois meses. Eram 10 e pouco da manhã e Antónia foi até ao tanque lavar. Ela bem sabe que há máquinas de lavar roupa, mas eles são pobres e não têm máquina, nem muitas outras coisas de que precisam, nem mesmo uma casa em condições onde caibam todos, agora que a menina nasceu e o Emanuel já anda na escola e tem trabalhos de casa para fazer. A casa é tão pequenina que a cozinha é sala e quarto e casa de banho e também tem lareira que o Inverno para aquelas bandas não é para brincadeiras.

Antónia disse a Emanuel que a menina dormia e que se acordasse que a fosse chamar, porque o tanque era já ali, a 30 metros, nem tanto. É tudo tão perto, a aldeia é pequena e quase se pode gritar de um lado ao outro que se ouve.

Emanuel disse que sim e continuou a ver os desenhos animados que ele adora ver ao fim-de-semana, na televisão. A avó Albina, que já é bisavó e tem 87 anos também estava lá em casa, embora more com a filha, a avó Maria Fresta, que é viúva, mas naquela manhã estava lá em casa do neto e ficou com os bisnetos enquanto Antónia foi lavar no tanque.

Ninguém sabe dizer ao certo como aconteceu, se a menina acordou e chorou e a avó Albina agarrou nela para a calar, ou se pegou nela para a embalar de novo. “Passou-lhe qualquer coisa pela vista, uma tontura, ou coisa assim. Caiu e deixou a menina cair na lareira”, diz Antónia, resignada, baixando os olhos, e inclinando a cabeça sobre a filha que palra e ri ao seu colo.

Emanuel ouviu o choro da irmã e viu a avó no chão desmaiada, a menina enrolada no cobertor já em chamas. Agarrou numa vasilha com água, deitou-lhe por cima, e agarrou no embrulho chamuscado e enegrecido que era a irmã pequenina e foi levá-la à mãe que já vinha para casa, vinda do tanque, ou porque já tinha lavado a roupa toda, ou porque tinha tido um daqueles pressentimentos de mãe que de vez em quando vão espreitar os filhos, estejam a dormir ou a brincar, para sossegar o coração.

Emanuel voltou a casa e puxou a avó Albina que já tinha as roupas a arder, porque estava deitada muito junto à lareira, que tinha as brasas acesas. Depois vieram os gritos e a ajuda e a menina foi para o Hospital Pediátrico de Coimbra, onde ficou três meses internada. A avó Albina teve apenas algumas escoriações e não fala sobre o assunto.

Na escola, depois do incidente, também ninguém falava no assunto. A mãe do Emanuel trouxe-o de Coimbra para a Festa de Natal na escola e ele, embora não soubesse muito bem, disse o seu poema e até nem se saiu mal. Depois disso, fez--se um longo silêncio. Na escola. Na aldeia. E todos esperaram que Emanuel falasse.

Os pais ficaram em Coimbra com a menina, sem terem dinheiro para deslocações nem estadia: uma tia emprestou o carro e outra deu guarida na cidade. A Ana Cláudia esteve em perigo de vida. Os três meses em Coimbra, não deixaram que o pai trabalhasse e o sustento da casa passou a fazer parte da solidariedade da aldeia.

Depois de Ana Claúdia regressar a casa, Emanuel começou lentamente a falar da irmã. E do incidente. Diz que quando tirou a irmã do fogo e a entregou à mãe sentiu-se triste. Entre o acto heróico e o desespero de ver a bebé queimada, Emanuel ainda não conseguiu distinguir muito bem o que lhe vai na alma. Nem agora sabe exprimir bem o que sente. É visível o amor e o carinho que sente pela irmã, que o reconhece muito bem e gosta de lhe dar beijinhos. “Até já faz malandrices!” diz ele baixinho e com o seu jeito calmo. “Como no outro dia em que a Ana Claúdia puxou a toalha e entornou uma pichorra de vinho e todos se riram lá em casa!” Mas nem Emanuel, nem a família têm tido acompanhamento psicológico e a Professora Dalinda não nota diferença no seu comportamento: “Sabe-se lá que fantasmas se escondem naquela cabecinha!”, diz preocupada!

Quanto à menina, agora já só anda nas consultas em Coimbra e talvez lá para Agosto volte a ser internada para começar a fazer as intervenções cirúrgicas que a vão compor. As queimaduras foram essencialmente na cara e na cabeça e ainda vai demorar muito até ficar melhor.

Na aldeia do Seixo e em toda a freguesia e até mesmo em todo o concelho de Sernancelhe, Emanuel é um herói e como diz o Presidente da Câmara, José Mário Cardoso: “Espero que o Emanuel seja um exemplo para todos de coragem, bravura e ajude a recuperar valores que muitas vezes andam esquecidos na juventude. Por isso temos um grande orgulho nele e esperamos que continue a ser a criança destemida e responsável que mostrou ser.”

Emanuel é um herói. Mesmo que o acto heróico tenha sido um acto de desespero e todas as manifestações de solidariedade sejam bem-vindas – a Câmara Municipal abriu uma conta em nome da Ana Cláudia, a Segurança Social está a fazer obras de remodelação na casa onde vivem – Emanuel e a família ainda têm um longo caminho a percorrer até que os vestígios da tragédia não passem disso mesmo, vestígios. A Ana Cláudia ainda nem tem idade para as inúmeras operações a que tem de ser submetida, para se deslocarem precisam de um automóvel que não têm, e o ordenado de calceteiro do pai, Eusébio, mal chega para comerem e para comprar os medicamentos.

Emanuel é um herói. Mas a Ana Cláudia não pode ficar à espera que ele seja médico para a poder tratar e mesmo que pudesse esperar, ninguém pode afirmar que o Emanuel venha a conseguir concretizar o seu sonho.

A aldeia do Seixo fica muito longe de Lisboa. Muito longe do poder central, onde as grandes decisões são tomadas. Mas na aldeia do Seixo existem crianças que têm sonhos, e aprendem a ler e gostam de brincar. E até gostam de desenhar o mar, e os peixes e os caranguejos e os cavalos marinhos mesmo que isso não passe de um sonho pois quase nenhum viu o mar.

O Emanuel é um herói. Tem seis anos e quer ser médico. É do Benfica e gosta de touradas e dos toiros e de desenhos animados. Era bom que o Emanuel e todos os meninos do Seixo e do mundo pudessem ser apenas crianças! E que o caso de Emanuel não passasse apenas de um exemplo. Um exemplo que não tivesse nunca mais de se repetir.

Há festa na escola! viva o emanuel!

A Câmara Municipal de Sernancelhe, em colaboração com a Delegação Escolar, organizou no Estádio Municipal da Pedreira a Festa de Encerramento do Ano Escolar dos alunos das escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico e Jardins de Infância de Sernancelhe, no passado dia 28 de Junho. Do vasto programa destacaram-se os jogos tradicionais, o almoço convívio, a actuação do Teatro Filandorra com a peça Maria da Silva Pastora e Rainha e actividades culturais realizadas por todos os alunos participantes. Mas o momento alto da Festa foi sem dúvida a Homenagem a Emanuel Amante Sobral, o pequeno grande herói que salvou a irmã de morrer queimada na lareira. Apesar da grande onda de solidariedade desencadeada desde o trágico acidente, a Câmara Municipal quis prestar oficialmente homenagem ao pequeno Emanuel, oferecendo-lhe um equipamento completo do Clube Benfiquista, do qual é um grande adepto, assim como reforçar a existência da conta aberta em nome da irmã que neste momento já apresenta uma quantia relevante, embora continue a contar com a participação de todos a nível nacional.

Emanuel, com o seu ar dócil e meigo, já não se admira que lhe chamem herói. Também não sabe bem o que significa a sua candidatura, apresentada pela Câmara, ao Prémio Vale Flor, promovido pela Fundação Montepio Geral.

O que ele sabe é que gosta muito da irmã e adorou ter vindo a Lisboa, ver a Casa da Moeda e que quando crescer quer ser médico.

Uma das surpresas para este dia inesquecível era a presença de Eusébio, o Pantera Negra, convidado para entregar a Medalha de Honra a Emanuel. Até à data de fecho desta emissão, Eusébio ainda não tinha confirmado se estaria ou não por causa da Final do Mundial de Futebol. Mas como a intenção é que conta, o Emanuel com ou sem Eusébio, teve um dia memorável. Com os amigos da escola, do Concelho e com a família: a avó Albina, a avó Maria Fresta, a irmã Ana Cláudia, a mãe Antónia e o pai que por força do destino, ou talvez não, também se chama Eusébio. Parabéns Emanuel! E que sejas muito feliz!

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