Estão bem vivas as memórias de Niklas Frank. O pai era advogado de Hitler e governador da Polónia ocupada.
Tentou o suicídio. E não teve pontaria. Tentou a segunda vez. E não logrou. Sabia que não sairia vivo da cadeia. Estava certo; saiu morto. O pescoço ficou quebrado na forca, em Nuremberga. A sentença de morte obedecida na quarta-feira 16 de outubro de 1946, e que fora justificada pela sua coautoria de crimes contra a humanidade, é ovacionada, e de pé, pelo filho, Niklas Frank.
As palmas eufóricas, contudo, não lhe trazem placidez. E não é por compaixão, porque esse substantivo fica de fora. É uma guerra centrada no afeto que nunca recebeu do progenitor assassino. Talvez também haja uma frustração gerada pela impossibilidade de eclipsar a herança biológica. Mas o que não lhe traz a serenidade, e de propósito, concentra-se na sua inabilidade em perdoar: "O meu pai cometeu delitos horríveis. Todas as imagens de horror estão vivas na minha cabeça. Não posso viver em paz com a lembrança do meu pai. Não quero. Porque encontrar a paz é de certa maneira encontrar uma maneira de perdoá-lo. E não posso perdoá-lo." A consciência encontra-se no estado da pomba, não obstante "o facto de ser alemão e de carregar alguma responsabilidade pelo que os alemães fizeram".
O PAI
Hans Frank, que havia sido advogado de Hitler, e seu ministro sem pasta, viu-se nomeado governador-geral da Polónia ocupada, em 26 de outubro de 1939. Supervisionava a segregação da população judaica nos guetos nas grandes cidades, mormente em Varsóvia, e o uso de civis polacos no trabalho obrigatório e forçado nas indústrias bélicas nazis.
Milhões de pessoas foram assassinadas sob a alçada daquele que consistiu num dos principais responsáveis pelo reino de terror alemão sobre a Polónia durante o Holocausto. A sua insensibilidade diante do sofrimento não conhecia limites. Lá no castelo real de Wawel, em Cracóvia, para onde se mudou com a família – mulher, Brigite, e os cinco filhos – ria-se das deportações de judeus para os campos de concentração e dos crimes impostos aos polacos. O choque que persegue Niklas remonta à descoberta de ser descendente direto de um criminoso: "Eu era criança… Vi fotografias de montões de corpos. Lia-se ‘Polónia’, nas legendas, e eu questionava qual era a relação entre aquelas horríveis fotos com a Polónia." Três das irmãs recusaram-se a reconhecer o que este tipo de foto mostrava. Diziam que não passava de propaganda russa e dos aliados. Niklas não seguiu a mesma rota. Doeu-lhe, continua a doer-lhe: "Eram corpos de crianças que tinham a minha idade!"
O último fruto do casal contava com seis meses quando o genitor comandava o terror. Um bebé crescido no luxo, rodeado de mordomias e de brinquedos. O irrepetível gesto a que se atreve a evocar carinho aconteceu, com dois ou três anos, na casa de banho. É isso mesmo, casa de banho. Foi nessa imensa divisão que Hans Frank brincou com o filho e lhe colocou um pouco de espuma da barba no nariz. "À parte disso, nada mais." Amor inexistente que trazia água no bico desde o seu nascimento.
A mãe compilava amantes do sexo masculino. E devia ser para não destoar do marido; Hans Frank experimentou todo o tipo de amores carnais. No meio desta salada de infidelidades colocou-se, na altura, a hipótese de Niklas ser consequência de uma ligação extramatrimonial: "Infelizmente, isso não é verdade. O meu pai é o Hans Frank. E ele sabia disso."
A notícia da sentença capital recebeu-a com naturalidade: "Eu já tinha visto fotografias de pessoas mortas na Polónia onde o nome do meu pai era sempre referido." Tinha sete anos, mas os anos com mágoa duplicam-se. A desilusão, essa então triplicou, na única vez que visitou o pai na prisão: "Disse-me que iríamos passar o Natal todos juntos. E eu pensei cá para mim: mas estás tu a mentir-me porquê?"
OS DIÁRIOS
A resolução do Tribunal Militar é repetida por si todos os dias, a todas as horas, sempre, sempre. Enforca-o metaforicamente com a obsessão capaz de surpreender teses psicanalíticas. Mata-o, de novo, ao espezinhar, com gosto, a sua podre memória.
O cadafalso da condenação vive nas palavras ditas e escritas, nas palavras que a autora deste texto ouviu de estômago fechado no último andar de um hotel em Lisboa: "O meu pai era um mentiroso. Tinha um caráter bárbaro. Era um grande, um grandíssimo covarde." Ao contrário de quem grava a conversa, Niklas não precisa de pausa para prosseguir: "Não encontrei nada que fizesse com que ele merecesse uma pena menor, como, por exemplo, a prisão perpétua. Sobre a vida do meu pai, eu tentei encontrar algo que ele pudesse ter feito contra Hitler ou para salvar vidas. Mas ele nunca fez algo assim. Tudo o que ele queria era ser amado por Hitler. Era a única coisa que importava para o meu pai. A única coisa!"
Nos diários que escreveu na cela em Nuremberga, continuava evidente a serventia prestada: "Pertenço, até à última fibra do meu ser, ao Führer e à gloriosa missão que ele comanda. Daqui a mil anos, a Alemanha ainda proclamará o mesmo. Servir a Alemanha é servir a Deus. Se Cristo reaparecesse na Terra, seria como um alemão. Nós guerreamos, em nome de Deus, contra os judeus e o bolchevismo."
Hans Frank perfilhava a fé católica romana. O papa Pio XII ainda tentou conceder-lhe perdão, mas a delegação polaca não consentiu. Anos mais tarde, Niklas encontrou-se com o padre que estivera com o pai na hora da execução. O relato consistiu no singular momento que o conseguiu comover: o padre disse-lhe que o pescoço partido do pai produziu um barulho brutal. A breve comoção não lhe trouxe piedade. Deu-lhe apenas a certeza do fim da vida de um carrasco.
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