Já foram 400, hoje são 30 cauteleiros a dar esperança a Lisboa.
Há pouco mais de duas décadas eram 400, mas agora restam apenas 30 cauteleiros na cidade de Lisboa. A profissão faz parte da paisagem da capital, mas está em vias de extinção, levando consigo um dos mais conhecidos pregões da cidade.
Artur Loureiro tem pouso fixo na rua do Amparo, entre o Rossio e a praça da Figueira. No entanto, na rua é mais conhecido pela alcunha do ‘19’, porque nestas coisas do jogo o que mais importa são os números.Até porque esse também já conheceu dias melhores. "Numa semana boa tiro 200 euros, mas de uma forma geral vende-se muito menos lotaria do que há alguns anos. A culpa é terem transformado o País num casino… Há tanto jogo, todos os dias, que as pessoas não têm carteira para tudo", explica, referindo-se obviamente às raspadinhas, onde a sorte se anuncia de imediato, ou aos lotos.
"Acho que já nem sabia vender jogo se não tivesse o 19 porque é por ele que muitos dos meus cientes fixos procuram. E foi por causa disso que os meus colegas me puseram esse nome. Mas também há outros que saem muito, como o 13, o 29, o 27, o 18. São crenças que as pessoas têm…", remata num jeito que deixa adivinhar que a ele tanto lhe faz, desde que o negócio vá correndo de feição.
Até porque esse também já conheceu dias melhores. "Numa semana boa tiro 200 euros, mas de uma forma geral vende-se muito menos lotaria do que há alguns anos. A culpa é terem transformado o País num casino… Há tanto jogo, todos os dias, que as pessoas não têm carteira para tudo", explica, referindo-se obviamente às raspadinhas, onde a sorte se anuncia de imediato, ou aos lotos.
A Artur, 55 anos, o dinheiro da venda vai dando para os gastos. Não tem mulher, nem filhos. Vive em casa arrendada na Pontinha, onde todos os dias se mete no metro para chegar à Baixa, faça chuva ou faça sol. Tinha outros planos profissionais. Licenciado em Comunicação Social, nunca conseguiu arranjar trabalho na área, tarefa provavelmente dificultada pela deficiência visual que traz desde a nascença, e há 31 anos, farto de estar debaixo do tecto familiar, fez-se à vida das cautelas.
Desde então, conheceu de tudo um pouco: "Artistas, políticos, médicos, advogados… mas o que nos garante o negócio são as pessoas mais humildes, os clientes fixos. Tenho pessoas que me compram a sorte todas as semanas há 30 anos", descreve.
Já deu três primeiros prémios, mas nunca voltou a rever os premiados. "Sinais dos tempos. As pessoas hoje em dia têm ordenados magros e um dinheirito que se ganha no jogo muitas vezes só vem dar para tapar um buraquito, pagar um pouco da casa… e muitas vezes esquecem-se de agradecer ao cauteleiro. Mas isso não é o mais importante. Estamos cá é para vender e se possível premiar as pessoas, não para receber agradecimentos".
Ironicamente, a sorte ao jogo nunca quis nada com ele. E na rua onde trabalha todos os dias e todos o conhecem já foi assaltado "duas ou três" vezes. "Uma vergonha. Depois passam amarelos, passam vermelhos, passam tudo e nunca ninguém os consegue agarrar", lamenta.
O TENOR DAS CAUTELAS
No mercado de Benfica há um som inconfundível. Uma voz que sai colocada e metálica a cantar números, como já poucos sabem fazer. "Já nem na Santa Casa cantam assim, menina…", diz de peito cheio Elídio Ferreira, 73 anos, no ofício há mais de 40 e tal, embora já tenha perdido o rumo à conta certa. A sua voz atrai todos os habituais do mercado e da zona velha de Benfica, onde tem muitos clientes fixos. "Muita gente que me compra o mesmo número há décadas. Às vezes nem é tanto para tentar ganhar, é mais para ajudar o cauteleiro. E muitas vezes até sou eu que lhes digo: ‘olhe, traga lá o bilhetinho, que tem pelo menos a terminação…’"
Elídio, que é dos mais velhos nestas andanças, sabe que há cada vez menos gente nesta profissão e a geração mais jovem praticamente nem quer ouvir falar dela. "Sabe qual é o problema? São os subsídios! Antigamente, se não havia moedas para o pão e para o vinho, as pessoas tinham de vir para a rua vender. Mas agora não vale a pena o esforço, porque não trabalhando também há de vir um subsídio."
A ele, as cautelas sempre serviram para complementar o ordenado de serralheiro e agora engrossam a magra reforma de 300 euros. Meteu-
-se no jogo porque era preciso "fazer as coisas como deve de ser", ou seja "ganhar 10 para gastar nove". Conhecem-no por ‘Vila Franca’, embora tenha nascido às portas do estádio de Alvalade. "Mas isso é porque gosto muito de touros. As cautelas também serviam para pagar esse ‘vício’. "Ia para as largadas em Vila Franca, Samora ou para o Campo Pequeno, vendia o jogo e depois, no fim, juntava-me à festa", confessa.
Também na fé que passa pelas mãos de Elídio há números preferidos que a razão não explica: "Os meus clientes gostam de zeros. Não posso pôr zeros à frente que voam logo. E, no entanto, há muitos colegas meus que se queixam de que os zeros não se vendem…", comenta. Só lhe custa que nem todos o encarem com bons olhos. "Há pessoas que quando veem aproximar-se um cauteleiro agarraram-se as malas… Ora, se quiséssemos roubar carteiras não andávamos a vender. O pior são as instituições sociais, desportivas, tauromáquicas, que são subsidiadas pela Santa Casa mas que depois não autorizam que o cauteleiro venda jogo lá dentro… como se eles não vivessem também do jogo!", resmunga.
Agruras aparte, Elídio diz-se satisfeito com o ofício, até porque também é acarinhado por muitos dos que moram nos bairros e que até estranham quando estão uns dias sem lhe ouvir o pregão. "Atualmente os cauteleiros saíram quase todos da Baixa. Já só há turistas…. Eles até podem achar piada aos pregões, mas não compram. O negócio agora faz-se onde as pessoas vivem", justifica.
Por isso, aos 73 anos vai calcorreando Benfica, Alvalade, Lumiar e Ameixoeira todos os dias, apesar de as pernas já não terem a energia de outrora: "Não se andam tantas horas… paciência! E à noite, deito-me mais cedo, para ter energia para no dia seguinte voltar."
Mas Elídio também sabe que não conhecerá outra profissão, por isso vai continuando a apregoar a sorte dos outros, com a resistência de quem aceita a sua de bom grado. E é na Baixa da cidade, ao Bairro Alto, no largo da Misericórdia, que está a estátua de bronze que homenageia Elídio, Artur e outros mais. Foi inaugurada em 1987, no largo da Misericórdia, por ocasião dos 204 anos da lotaria nacional; em bronze, a peça da autoria de Fernanda Assis foi esculpida após uma pesquisa fotográfica e diversos contactos com os cauteleiros de Lisboa. Resultou uma representação humanizada – 1,78 de altura, boné com chapinha, o cigarro no canto da boca, numa das mãos uma cautela e na outra o bilhete inteiro com a inscrição ‘Homenagem da Santa Casa da Misericórdia. Lotaria Nacional. Ao cauteleiro’ – o bilhete inteiro foi, entretanto, retirado.
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