Marquês de Sade morreu há 200 anos. A obra continua a chocar uns e a inspirar muitos.
homem que advogava a liberdade individual levada ao extremo; o filósofo anarquista que acusava a Igreja e as leis de manterem o ser humano sob um jugo inaceitável; o escritor excêntrico que descreveu pormenorizadamente as práticas sexuais mais ousadas e violentas morreu há duzentos anos. A memória do Marquês de Sade, também conhecido por ‘Divino Marquês’ (epíteto com que foi batizado pelos surrealistas franceses na primeira metade do século XX), está a ser celebrada por todo o lado.
Em França, inaugurou-se no Musée d’Orsay, em Paris, uma exposição retrospetiva que coloca em confronto os escritos de Sade e as obras de pintura e escultura que entram em diálogo com as suas temáticas. No Brasil, a companhia de teatro Satyros está a levar à cena três textos do autor: ‘A Filosofia na Alcova’; ‘Os 120 Dias de Sodoma’ e ‘Justine’.
É, recorde-se, a mesma companhia que no início dos anos 90 se instalou em Lisboa e surpreendeu o público com interpretações de Sade que colocavam os atores nus em cena a dizer – e a fazer – obscenidades. Em Portugal, o último livro do poeta Nuno Júdice é, no dizer do próprio, "uma homenagem a Sade" e à obra ‘A Filosofia na Alcova’. Sem sexo.
"Antecipei-me às comemorações com uma evocação de uma figura que foi, para a minha geração, um exemplo de contestação", explica o docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que já foi à capital francesa ver a exposição comissariada por Annie Le Brun.
"Lembro-me bem quando o Fernando Ribeiro de Mello editou ‘A Filosofia na Alcova’ em Portugal, em 1966, e o livro foi imediatamente apreendido pela censura", conta. "Nessa altura, como agora, o inconformismo, a rejeição dos valores e a afirmação da liberdade absoluta foram as grandes lições a retirar da obra. Continuam a ser o grande testamento de Sade para os nossos dias."
ARISTOCRATA REBELDE
Donatien Alphonse François de Sade nasceu a 2 de junho de 1740 num meio aristocrático, mas apesar de ter estudado num colégio de jesuítas, ou talvez por causa disso, cedo se tornou um rebelde indomável, sujeitando a família a situações embaraçosas.
Conhecido por perseguir criados de ambos os sexos, protagonizou o primeiro escândalo aos 28 anos, quando uma mulher fugiu do seu castelo de Arcueil por uma janela e gritou aos quatro ventos que ele a tinha tentado envenenar (com afrodisíaco) e a tinha sujeitado a todo o tipo de sevícias sexuais.
Tendo passado cerca de 30 anos na prisão, intermitentemente, foi aí que Sade escreveu a maior parte de uma obra polémica, onde se misturam filosofia e pornografia, ideias políticas revolucionárias com cenas de grande violência e crueldade. O sociólogo Jorge Sá diz que, acima de tudo, o Marquês de Sade "foi um homem da Revolução Francesa" e que o seu trabalho "procurou demonstrar as dificuldades de concretização da tríade revolucionária: Liberdade, Igualdade e Fraternidade".
"No fundo, o que nos diz Sade é que a revolução só triunfará quando o último carrasco morrer às mãos da última vítima", afirma.
Também o professor universitário Daniel Cardoso – que tem artigos publicados sobre Bondage e Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo – diz que o mais importante no autor francês é a forma como concilia o que parece inconciliável. A saber: política, religião e sexualidade. "Os escritos de Sade foram publicados como tratados de filosofia e essa é a questão principal. É fundamental perceber que as práticas corporais excessivas, muitas das quais só possíveis de executar por acrobatas do Cirque du Soleil, estão indelevelmente associadas à filosofia política que advogava."
INSPIRAÇÃO PERPÉTUA
Romances, peças de teatro, performances, filmes, canções – as palavras de Sade têm inspirado centenas de criadores em todo o Mundo. Mishima, Buñuel, Pasolini, Peter Weiss e Adolfo Luxúria Canibal (que escreveu o tema ‘Divino Marquês’ em 1991 e o incluiu no álbum ‘O.D., Rainha do Rock & Crawl’) são apenas alguns dos que se deixaram seduzir por uma obra que continua a ser transgressora.
A sexóloga Vânia Beliz diz que, mesmo passados duzentos anos, há barreiras que a sociedade não conseguiu transpor. "Continuamos presos ao convencional e o que explica o fascínio pela obra do Marquês de Sade é o mesmo que justifica, por exemplo, o sucesso de ‘As 50 Sombras de Grey’, de E.L. James", sublinha. "Tudo o que foge à rotina desperta sempre a curiosidade das pessoas", afirma.
Mas além das obras artísticas produzidas sob a égide do Marquês, também houve horrores praticados em nome dele. O serial killer britânico Ian Brady (que, aos 76 anos, está, segundo relatos próximos, "muito doente" na cadeia), dizia-se influenciado pelo escritor enquanto torturava e matava as vítimas. O advogado apressou-se a desmenti-lo: Brady tinha um conhecimento pouco profundo da obra de Sade, possuindo apenas um livro de citações do autor.
Em Portugal, o caso mais conhecido é o de António Roxo, um funcionário camarário de Braga que, há dez anos, foi preso e acusado de violar um jovem deficiente mental. Roxo era presidente de um clube gay denominado ‘Marquês de Sade’. Novamente, o filósofo está inocente nesta história.
Pedro Eiras, professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e autor do livro ‘Tentações – Ensaios sobre Sade e Raul Brandão’, propôs-se a analisar a escrita do autor para concluir que o mal não é uma doença literariamente transmissível.
"Da mesma forma que um tratado de moral não nos tornará bons, os retratos do mal também não nos transformarão em monstros", diz ele, lembrando que o assassino de John Lennon andava a ler o "pacífico" Salinger quando cometeu o assassinato.
MORTE E ETERNIDADE
Após desempenhar cargos políticos na França pós-revolucionária, Sade caiu em desgraça e passou os últimos anos num asilo para loucos.
Aos 70 anos iniciou uma ligação com uma jovem de 14, filha de um funcionário da instituição. Morreu em 1814 e o filho fez destruir grande parte dos seus escritos. Ainda assim, restou o bastante para ser redescoberto no século XX e reabilitado por intelectuais como Simone de Beauvoir, Michel Foucault ou Camille Paglia. Hoje, mesmo sem conhecer a obra de Sade, todos sabem o que significa sadismo, termo que inspirou e que, a acreditar nos relatos que nos chegam, praticou.
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