É ver para crer. Fazer para poder mostrar. Os jovens são protagonistas de vídeos violentos que os transformam em anti-heróis. E gostam
Ailusão é meteórica. A imagem não. Por isso, mais do que fazer, eles – a geração que cresceu na era da Comunicação - querem e precisam de mostrar. Divulgar, repetir até à exaustão, ser parte. Neste palco, chamado YouTube e na internet plantado, o objectivo de muitos dos jovens inscritos não é brilhar e seduzir. O contrário ganha força ao mesmo tempo que cresce a preocupação dos adultos: a ideia é chocar, fazer pasmar, levar a ver.
O portal de vídeos on-line assume, nestes casos, o papel de firmamento de anti-estrelas, para lá empurradas com a ajuda de um telemóvel e um computador com acesso à rede. E, mais do que tudo, com o desejo de pertença a um grupo, tão típico da adolescência, a atropelar a consciência. Nesta maratona em directo – sem a qual o episódio de violência na Escola Carolina Michaëlis, no Porto, não teria sido o que foi – os alvos destes (nada) heróis sem causa nem sempre são os professores. São eles próprios e os outros.
A cena que se vê é de bradar aos céus – não que se espere clemência divina. As protagonistas não terão mais de 16 anos. Num plano ainda afastado, em passo apressado, a morena Marília dirige-se à ruiva Catarina sem a sombra da hesitação que faz tardar os mais indecisos. Duas palavras trocadas e as estaladas fazem-se ouvir sem ter de esforçar a audição. Os insultos também. Ao redor, qual plateia em anfiteatro, junta-se um grupo que filma, aplaude e incentiva o rancor de Marília - animosidade que terá brotado de uma mensagem enviada pela colega de escola para o Hi5 do seu mais-que-tudo. Trata-se de um portal na internet semelhante ao YouTube, onde os mais novos se encontram, conhecem e trocam recados. É difícil conseguir perceber qual a primeira fonte que publicou o vídeo de Marília, já que foi divulgado à velocidade da luz. Quem o colocou terá sido quem filmou, mas há dezenas de cópias. Só num dos canais que o divulga, a conta de ‘gogas22’, 18 anos, teve mais de 639.192 visualizações desde Junho de 2007. Na de ‘JPPais’, outro membro, 104. 594 já viram o filme. Há até quem ofereça, nos comentários que sucedem o vídeo, alvíssaras aos que souberem como encontrar as personagens da inimaginável cena passada do lado de fora de um portão de uma escola em Portugal. São 04m47 segundos de um espectáculo infeliz, ampliado pela passividade da acusada que pouco ou nada se defendeu. Não há quem ajude, porque ninguém está disposto a que a cena termine. Aliás, quem tenta aproximar-se, só e apenas para ver melhor, é impedido pelo público, sedento de ‘sangue, suor e lágrimas’, em versão bem diferente daquela que Churchill debitou num discurso em plena II Guerra Mundial.
A ‘soldado’ Marília não faz por menos. Puxa cabelos, dá pontapés, empurra com uma agressividade que o chorrilho de palavrões que lhe desfilam da boca acompanha. A adolescente tornou-se assim, através de uma luta desigual, um fenómeno da internet, com múltiplos remakes a brotar como vírus – o fenómeno de imitação a tentar lucrar com a fama do filme original.
Há a versão ‘Basofe’, a ‘Flup’, a ‘Gabriel vs Rafaela’, a ‘Parvónia’, a ‘iscte’, a ‘Eh Marília’, e por aí fora, entre muitas, muitas outras. Adultos a imitar, crianças a gozar; todos a desempenhar papéis como se da sua série preferida se tratasse. Os comentários, aos milhares, dividem-se entre o 'divertido', 'vergonhoso', 'se fosse comigo a Marília levava um par de estalos', 'a ruiva é burra porque não faz nada e tem uma voz irritante.' Alguns criticam, a maioria faz verdadeiras ovações.
Mais recente e não menos agressivo – a diferença é que pouco se ouvem as intervenientes a insultarem-se verbalmente –, outro vídeo publicado por ‘JPPais’. À semelhança do ‘Caso Marília’ (como é conhecido na web) não foi ele o ‘realizador’, mas apanhou o vídeo e adicionou-o na sua conta. Duas raparigas agridem-se dentro de uma sala de aula, vêem-se as carteiras alinhadas, mas ao que parece a disputar uma cadeira e não um rapaz. Estranho? Para elas não. A turma parece nova demais para ser do Secundário – será, aparentemente, do Ensino Básico. 'É guerra, é guerra', grita um dos alunos que assiste, pavoneando-se à frente do telemóvel que vai captando a discussão. Quem filma afasta-se dele, o objectivo é a luta entre as raparigas. 'Dá-lhe Ana, ‘ganda’ chapada', exclama outro, exaltado de satisfação. À ‘festa’ junta--se mais uma miúda, que também aproveita para tentar arrancar cabelos a uma das que discute, incentivada por quem assiste. É então que alguém com mais juízo salta o perímetro dos observadores e tenta agarrar as que lideram a pancadaria, impedindo a mais indefesa de continuar a apanhar. Vê-se uma cadeira no ar e teme-se o pior, mas o filme termina sem mortos nem feridos. O que aconteceu a seguir é tarefa deixada para a imaginação dos espectadores. Em dois meses, mais de seis mil pessoas já assistiram ao vídeo com pouco mais de um minuto, e que, como todos os que envolvem violência (fenómeno que consegue aumentar quando se trata de raparigas) correram os e-mails, os sites e blogues dos adolescentes.
Sofia Nunes da Silva, psicóloga clínica, considera 'preocupantes' os contornos que esta nova ‘moda’ tem vindo a ganhar. 'Isto está relacionado com a sociedade mediática em que vivemos, em que os jovens cresceram nesta era do ‘tudo o que eu quero tenho’ e, por esse motivo, têm mais dificuldade em aceitar os próprios limites e os do outro, não respeitam as fronteiras', explica a especialista na área infanto-juvenil. Para a psicóloga, o facto de os actos transgressores 'serem aplaudidos pelo grupo de pares e idolatrados' também justifica a violação de limites.
Violam-se as regras com prazer. Quem é filmado olha para os lados, a ver de que direcção vem a câmara, afinal de contas o incentivo para continuar. Quem filma, antecipa o êxito. 'Já viste o ‘ganda’ filme que vai para o YouTube?', ouve-se de perto. Neste mundo, onde a internet abriu as portas, nem tudo é real; as simulações integram o mesmo menu com destaque garantido.
O cenário é exterior. Num banco que parece de escola, dois adolescentes simulam o acto sexual. Fingem gemidos, dão gritinhos, enquanto o grupo de amigos ri com a situação enquanto filma os dois em posição de ataque. Pouco antes de terminar, o rapaz levanta--se e baixa as calças para o telemóvel--câmara. ‘Muninabulaxa’, 16 anos, foi quem colocou o vídeo on-line - foi visto 184 vezes desde Fevereiro e partilha espaço com vídeos de samba, saídas com os amigos e excertos de programas de televisão.
Outra rapariga, Maria Mariana, divulgou no YouTube um vídeo em que tem (ou simula) um arrufo com o namorado. 'Deficiente larga-me, estás-me a bater', ouve-se a jovem de 17 anos, segundos antes de o voltar a procurar na cama, onde entretanto o rapaz se deitou. No YouTube Maria Mariana tem mais vídeos, desde declarações de amor musicadas a clips da banda Backstreet Boys (de longe muito menos vistos que o da suposta zanga).
O membro do YouTube ‘1234jebus’, deve saber disso. Num dos vídeos, um grupo finge chatear-se por causa de uma rapariga. Os socos e pontapés do vídeo com 31.529 visualizações, parecem a sério até que um dos rapazes pede para pararem porque lhe cai dinheiro do bolso das calças de ganga. As falas, forçadas e ajudadas pelos gestos, irritaram quem assistiu, a julgar pelos comentários deixados. 'Não tem piada nenhuma', 'vocês não têm nada para fazer', 'que malfeito', lê-se.
Outros, como ‘Kinipa’, 18 anos, utilizam os excessos de álcool como chamariz. A acção passa-se, ao que o título indica, nos Santos Populares. Um grupo de jovens, já bêbedos, insinua-se ao telemóvel com a voz entaramelada. No centro da cena, Cátia acusa, em tom de brincadeira, um dos amigos de lhe ter tocado no peito. Um outro pede para fazer o mesmo. 'Não abuses cegonha', diz a rapariga. 'Eu gosto muito do meu namorado mas ele está longe', conta para a ‘objectiva’ enquanto se abraça e ampara a outros dois rapazes. O tom arrastado não engana ninguém.
A chama no balneário de uma escola, no vídeo colocado on-line por ‘TvPorto’, também não. Aliás, os vestiários das escolas provaram ser um dos sítios predilectos pelos adolescentes para pisar o risco e fazer-se notar. Aqui, um miúdo do 9º ano é incentivado pelos rapazes da turma a derramar desodorizante na parede e incendiar com um isqueiro. Contente, o grupo aplaude e encoraja o afoito que segura no lume a aproximar-se mais da parede.
No YouTube as cenas sucedem-se a um ritmo alucinante. Velocidade excessiva, álcool e drogas, ataques gratuitos entre eles e aos outros. 'O mais preocupante nestes vídeos é que reflectem a violência pela violência, as agressões são feitas para serem filmadas', comenta Tito de Morais, fundador do site ‘miúdos seguros na net’. O especialista considera que 'a sociedade não está a saber lidar com este fenómeno.'
Os jovens não querem saber. Para eles, importante é fazer ‘gandas filmes’ e ser falado. Os vídeos são só uma ponte para isso. Mesmo que com violência. Mesmo que sejam eles a apanhar. Vai render comentários e visibilidade. 'Tens consciência que amanhã já estás no YouTube?'
CASOS MEDIÁTICOS
Em Janeiro de 2007 dois rapazes de 13 anos publicaram um vídeo no YouTube em que mostravam actos de vandalismo sobre automóveis. A PSP de Évora descobriu as imagens e participou ao Tribunal. Em Março de 2006 um jovem de 18 anos foi condenado a pagar uma coima depois de terem sido divulgadas imagens suas a atirar gatos do alto do castelo de Montemor-o-Novo. Mais recente, um vídeo de Bruno Pidá, suspeito dos homicídios dos empresários da noite do Porto, a conduzir um Porsche - o mesmo que usou na noite em que Ilídio Correia foi assassinado. No mesmo vídeo incita-se à utilização de armas.
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