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“Percebi o que é matar para não morrer”

Chamávamos ao nosso acampamento ‘campo de concentração’. Durante um ano só víamos o verde do mato e o azul do céu

06 de outubro de 2014 às 13:06

Entrei para a tropa em 1972, assustado com o que me esperava. Tinha bem presentes as histórias dos meus vizinhos, um que morreu em África, outro que regressou com uma perna amputada, e temia pela minha vida. Mas sabia que não podia escapar e tive de fazer a recruta e a especialidade como condutor auto. Aos 22 anos, recebi a ordem de mobilização para Moçambique, integrado no Batalhão de Cavalaria 8421, na terceira companhia. A despedida no aeroporto de Lisboa foi terrível. As famílias choravam e nós caminhávamos para o avião sem olhar para trás, para que o sofrimento não fosse ainda maior.

Acampados no mato  

Após uma longa viagem com escala em Angola, chegámos à cidade da Beira a 27 de agosto de 1973. O nosso destino era o norte de Moçambique. A minha companhia foi destacada para uma zona de mato perto de Cabo Delgado e junto à fronteira com a Tanzânia. Os ataques do inimigo eram a única certeza que tínhamos. Ali em Nazombe, o acampamento de barracões de chapa era cercado de arame farpado. Chamávamos-lhe campo de concentração. Não havia ali qualquer povoação, tudo o que víamos durante o ano que lá passámos foi o verde do mato e o azul do céu. Só de vez em quando aparecia o correio aéreo para nos aliviar do isolamento a que estávamos condenados.

À chegada, nós os maçaricos fomos brindados com uma canção entoada pelos que vínhamos render. Recordo ainda hoje aqueles funestos versos:

 

"Checa sejas bem-vindo

Às terras do Ultramar

Chegaste, agora vou indo

Não vale a pena chorar

 

Checa se fores para o mato

Tem cuidado com os trilhos

e picadas

Nas picadas há minas

Nos trilhos há emboscadas

 

Checa se tu fores ferido

Nunca percas a coragem

Serás sempre bem socorrido

No serviço de enfermagem

 

Checa se tu morreres

Lamento a tua morte

Confia nos camaradas

Que vingarão a tua morte"

 

E se a canção acaso tivesse deixado dúvidas a alguém, em breve soubemos o que era estar debaixo de fogo. O PAIGC atacava sempre as novas tropas que chegavam, até para testar a bravura dos novos recrutas. Ali estávamos, 150 homens, que rapidamente tiveram de se habituar a correr para as trincheiras quando os obuses começavam a chover sobre as novas cabeças e as balas rasgavam a escuridão da noite. No primeiro mês dormimos nas valas, só voltámos às camaratas quando fizemos grandes obras de reforço das defesas do acampamento. Mas o inimigo estavam melhor armado do que nós e fomos várias vezes atacados.

Na nossa companhia, perdemos três companheiros em combate. Os que sobreviveram não esquecem facilmente aqueles dias de terror. Quantas vezes escrevi cartas aos meus pais, à namorada e à madrinha de guerra dizendo que estava tudo bem quando não sabia se estaria vivo no dia seguinte? Quem nunca combateu não sabe o que é sofrer. Só aí percebemos o que significa matar para não morrer.

Soubemos do 25 de Abril de 1974 ainda no mato. Apesar dos apelos ao cessar-fogo, os combates continuaram no norte de Moçambique. Fomos deslocados para a sede da segunda companhia, em Negomane, junto ao rio Rovuma. Uma companhia de comandos veio lá buscar-nos ao fim de algumas semanas para nos levar para uma zona pacificada. Foi uma viagem de medo.

Passámos os últimos meses da comissão em Namialo, perto de Nampula e de Nacala, de onde embarcámos de avião  para Lisboa, a 1 de dezembro de 1974. À chegada, todos beijámos o chão.

José Azevedo

Comissão 1973-74

Moçambique

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