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“Sou liberal e um bocadinho conservadora”

Depois da crónica polémica, o livro de textos, crónicas e ensaios que reúne o pensamento de Maria de Fátima Bonifácio.

11 de agosto de 2019 às 06:00

A entrevista seria só a propósito da publicação de ‘Fora   da   Circunstância’ porque a autora, Maria de Fátima Bonifácio, foi aconselhada a não falar sobre a crónica de 6 de julho, no jornal Público.

Ainda assim e porque o livro reúne os escritos da historiadora desde os anos 90, a entrevista era oportunidade para conhecer melhor quem escreveu que "as quotas para negros e ciganos não passam de uma farsa multicultural igualitarista" e que nem uns nem outros "fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade". O SOS Racismo apresentou queixa-crime.

Escreve "se há coisa apelativa na vida é compreender o Mundo em plena liberdade". Porque é que é ‘Proibido compreender’, o título desta crónica de 2018?

Essa crónica é uma espécie de réplica   encapotada   a   uma entrevista feita ao António Araújo [historiador] sobre a eleição   do   Bolsonaro,   em que   ele   dizia   que   atrás   de   compreender   vem   o   perdoar.   Não, a vontade de compreender deve-se sobrepor a tudo.

A vontade de compreender pode acarretar estigma?

E de que maneira! Porque se compreende é porque se aprova e isso é falso.   Eu   não   aprovo   Bolsonaro mas compreendo. Não concordo com Trump mas percebo porque foi eleito. Desde 2014, e em Portugal   também,   houve   uma   rutura emocional entre o eleitorado e o ‘establishment’.

Demérito dos partidos?

Não só. O que as redes sociais, a eletrónica computacional, põem ao dispor das pessoas está muito além do que um partido tradicional pode fazer. O Mundo está a andar mais depressa do que eles. Há uma massa muito grande de pessoas em países europeus que são os perdedores da globalização e que não se revêm   no   discurso   dos   partidos. Pessoas que não conseguem chegar ao fim do mês e para quem palavras como direitos, liberdades e garantias, fraternidade e igualdade são abstrações. Na base da pirâmide está uma pequena classe média, a burguesia dos serviços, da restauração ou dos porteiros dos ministérios, que está na iminência de   cair   na   proletarização,   e   que vive acossada.

Para onde caminhamos?

Não sei e acho que ninguém sabe. O que intuo é que daqui a dez anos já não vamos ter partidos como temos hoje.

Escreve ainda em ‘Proibido compreender’ que em Portugal a direita   está   colonizada   pela esquerda   e   que   se   submete   à chantagem político-ideológica da esquerda. Não estará a subestimar   uns   e   a   sobrevalorizar

outros?

Sim. A direita está na defensiva sob muitos aspetos e dou-lhe o exemplo gritante dessa submissão que foi a questão da contagem do tempo de carreira dos professores. A direita achou que ia ganhar votos aprovando   a   proposta   do   BE.   O António Costa ameaçou que se demitia e a direita negou tudo o que tinha dito. Assim não... Foi o meu corte emocional com a direita. Em Portugal, os jornalistas são predominantemente de esquerda, vê-se no   politicamente   correto   que   se impôs na comunicação social, até mesmo nas relações interpessoais. O politicamente correto é uma invenção da esquerda.

Em 2019 não é mais fácil dizer-se que se é de direita do que há 20, 30 anos?

Não.   Pensemos   em   Portugal:   no século XIX, no tempo da monarquia constitucional, que, como resultou de uma guerra civil entre miguelistas, absolutistas e liberais - em que o miguelismo foi irradiado e nunca mais apareceu -, toda a elite era republicana e progressista. O edifício monárquico constitucional estava inclinado para a esquerda porque a verdadeira direita, os conservadores, os miguelistas,   foram   irradiados.  

No   século XIX já só havia licença para ser de esquerda. Depois, na República, só havia licença para se ser afonsocostista e depois, no tempo do salazarismo, só havia licença para se ser de direita, a esquerda sumiu-se. Houve gente que lutou, mas foi uma   minoria   porque   quando   se abriu Caxias   em   74   estavam   lá   à volta de cem presos e isso não é nada se se comparar com outros regimes autocráticos com população parecida com Portugal.

Com o 25 de Abril, dá-se um fenómeno muito semelhante ao que aconteceu em 1834 com os miguelistas: os fascistas, que eram a verdadeira direita portuguesa, foram irradiados. Sá Carneiro levou cinco anos a levar a direita ao poder, mas era uma direita progressista adepta do estado social e que se confundia um bocado com o PS.

Nós ainda hoje temos uma constituição que vincula o País a adotar políticas conducentes ao socialismo. Isto é caricato. O fascismo foi proibido, acho mal. O comunismo não foi proibido, acho mal. Sou liberal, acho que todas as opiniões se devem exprimir.

Portugal não passou a ser de esquerda de um dia para o outro depois de 40 anos a conviver muito bem com Salazar, à exceção dos comunistas que lutavam pela liberdade deles e não pela dos outros, como se viu depois.

Que virtudes tem para si o Estado Novo?

Eu nasci em 1948.

Terá uma opinião...

Enquanto crescia era um dado de facto,   nunca   me   interessou;   fui criança, adolescente e depois fui para a Suíça, onde passei o Maio de 1968 e fiquei esquerdíssima. Não estudei grande coisa, mas aproveitei muito. Aos 15 anos já conhecia a Europa. Os meus pais viajavam muito.

Era uma privilegiada...

Sim. Aos 15 anos já passava as férias grandes em Londres. O fascismo não me marcou porque na idade em que tomei consciência do que era, já não vivia aqui. Em minha casa era proibido falar de política e de religião - os meus pais eram católicos mas nunca exibiram o seu catolicismo. Quando perceberam que não íamos à missa deixou de haver   a   pequena   oração  sempre que se almoçava ou jantava. O meu pai era um grande admirador de Salazar e isso só não compreende quem não tenha vivido a República.   Ele   achava   que   a   política   era uma coisa porca e suja e o Salazar libertava-nos do fardo de nós, pessoas decentes, termos de lidar com isso. Eu só sabia que ele era salazarista porque ele tinha uma secretária com um vidro em cima e por debaixo do vidro uma fotografia de Salazar.   Lá   fora   percebi   que   era uma ditadura. Eu sigo a escola do Manuel Lucena e acho que sim, que aquilo era fascismo.

Quem eram os seus pais, que deixavam naquela época a filha adolescente sozinha em Londres?

Eram pessoas muito conservadoras, mas ao mesmo tempo muito avançadas. Os meus pais não começaram a viajar comigo, até porque eu fui tardia, a minha mãe já tinha   40   quando   nasci.   Conheci tudo e depois, com 15 anos, fui passar férias a Londres, num colégio interno, donde fui expulsa ao fim de 15 dias, mas arranjei alternativa e o meu pai consentiu. Fiquei a viver num apartamento em Londres com mais três raparigas tailandesas, que estavam a aprender inglês para ingressarem na faculdade. Os meus pais tinham uma confiança ilimitada   em   mim,   que   não   era bem merecida porque não sonhavam que ia a boates à noite, mas eu também não tinha de lhes dizer...

Qual era a profissão do seu pai? 

Era industrial, tinha fábricas.

Na   página   212,   em   ‘A   cor   do poder’,   escreve   que   "vemo-los por   aí   a   rondar,   a   farejar   uma nova oportunidade. O fenómeno não   difere   dos   variados   vícios que   conhecemos,   como   fumar, beber, consumir erva, snifar coca ou injetar cocaína. (...) O que os motiva   é   "o   gozo   do   poder". Quem   é   que   se   encaixa   nesta

definição?

O primeiro que me ocorre é aquele que disse que ia andar por aí - o Pedro   Santana   Lopes.   Um   político pode cortar com a política tal como um fumador corta com o tabaco, mas anda sempre a ver se consegue regressar, o bichinho está lá. O poder vicia.

Como   vê   este   final   de   ciclo do governo?  

Acho que a solução da geringonça acabou por ter pés para andar. Durou uma legislatura, o que não é pouco, mas o País está em cacos. Este Governo impôs a austeridade através das cativações, os transportes estão em cacos, o Serviço Nacional de Saúde também e Justiça   seja   feita   aos   profissionais, pois ainda existe. Mas a Educação é o maior falhanço, o maior desde o 25 de Abril.

Porquê?

O fenómeno não é só português e tem que ver com a massificação do Ensino. De repente entram enxurradas de alunos, e felizmente que entram,   mas   não   quer   dizer   que isso   não   tenha   consequências, porque tem. São filhos de pais mais ou menos analfabetos, que não têm uma biblioteca em casa e que não têm capacidade de acompanhar o nível de Ensino que havia antigamente. Fui professora universitária muitos anos e apercebi-me da degradação do Ensino Liceal. Nos anos 80 tinha, em turmas de 50, 60 ou 80 alunos, sempre uns 14 bons alunos. E os que eram maus, comparados com os de hoje, eram ótimos. Depois, o número de bons foi diminuindo e já só tinha um ou dois e os restantes eram péssimos. Licenciei muitos alunos que não tinham qualidade ou aptidão para serem eles próprios professores de liceu. E isto é fruto das teorias do pós-25 de Abril, em que não é preciso saber coisas, preciso é saber pensar. Os professores do Secundário são maus. Já não há retenções nem exames. Às tantas percebi que não valia a pena.

Em ‘Ódio de classe’ fala de João Galamba   ou   de   Mariana   Mortágua dizendo por exemplo que a deputada do BE "começou a crescer e o crescimento subiu-lhe à cabeça".   Não   se   poupa   ao   confronto, pois não?

Não. A liberdade de expressão é a liberdade   mais   importante que existe. Eu nunca escrevi nada que incitasse ao ódio e ao conflito. Mas não   me   vergo   ao   politicamente correto que acaba por ser um enorme eufemismo para disfarçarmos a realidade, com nomes muito bonitos que a tornam doce, quando ela é muito amarga. Não me submeto, nem morta.

Escreve a certa altura que tem orgulho   de   classe.   Pode   explicar-nos o que é isso?

Eu   nasci   numa   classe   burguesa abastada onde o trabalho era sagrado, onde a honestidade era sagrada, onde a parasitagem era estigma   inapelável.   A   civilização burguesa foi a única no Mundo que dignificou o trabalho e isso começou nos burgos medievais da Europa. Foi em casa de meus pais que eu aprendi   o   valor   do   trabalho,   do respeito pelos outros, tudo isto é muito burguês.

Como vê casos como o das golas entregues   pela   Proteção   Civil, por exemplo?

Divirto-me muito. Sempre que há uma   crise,   o   Governo   sacode   a água do capote. Começa a haver uns casos em que revela uma certa desorientação, em que o Governo tem uma linha e o BE e o PCP outra para impedir votos no PS, mas nisso estou com eles. Não quero uma maioria   absoluta,   mas   também não voto no PSD nem no CDS. Vou votar numa coisa qualquer. Acho Rui Rio uma anedota e Assunção Cristas uma deceção - não era preciso ser político para perceber que não podia repetir os resultados das autárquicas. E depois anda nas redes sociais a perguntar se deve cortar o cabelo, o que é descer um bocadinho   de   mais   para   conseguir votos, mesmo que seja às donas de casa. Fiquei embaraçada. Gostaria que houvesse mais decência e menos endogamia. Como dizia o D. Carlos, isto transformou-se numa espécie de choldra.

Como vê atualmente Angola?

Estou   menos   pessimista.   Espero que este João Lourenço esteja respaldado pelos militares porque ele tem cometido agressões contra a dinastia de Santos que, se puder, retalia   e   espero   também   que   se aguente, que não seja ladrão, que consinta ao lado dele só os necessários e não continue a cleptocracia escandalosa, as populações miseráveis e a oligarquia rica, ostentatória. Sabe que nas lojas da avenida da Liberdade paravam à porta   carrões   com   seguranças   próprios   que   não   deixavam   entrar mais ninguém porque lá dentro estavam as madames? Não a deixavam entrar numa loja na sua terra.

Qual a responsabilidade de Portugal no rumo das ex-colónias?

Quando o País inteiro está a berrar nem mais um soldado para as colónias, quando o exército se recusa a combater, largámos as armas e a bagagem   e   veio-se   toda   a   gente embora. E os que lá ficaram, e porque o racismo existe, começaram a guerra civil logo a seguir. Como o Eduardo   Lourenço   chamou   à atenção logo em 1978: os portugueses largaram o império com a mesma facilidade com que mudam de   camisa.   Se   o   Exército   tem aguentado,   as   coisas   podiam   ter sido feitas doutra maneira.

Mencionou a palavra racista. Pode definir o conceito de racismo?

Não, não quero ir por aí. Não falo sobre isso. Escrevi um artigo que deu o estardalhaço que deu.

Politicamente como se define?

Liberal e um bocadinho conservadora. Tenho horror a revolucionários. As sociedades são delicadas e não podem ser revolvidas de um dia para outro. Como dizia [Edmund] Burke [1729-1797, político inglês], um   governo   que   não   tem   meios para ir evoluindo, não tem meios para governar.

Acredita no elevador social?

Muitos vivem hoje em dia melhor do que os pais viveram, felizmente.

Mas não gosta de revoluções?

Não, acabam sempre mal. Sempre com uma minoria que açambarca. As revoluções deixam marcas que levam muito tempo a apagar.

Uma última pergunta que poderá parecer fora de contexto: não tem Facebook   ou   outra   rede   social, pois não?

Credo! Não sei como lá se vai, se é de patins ou de bicicleta. Não entro na blogosfera, jamais. De vez em quando, tenho o amigo ou a amiga que   manda   alguma   coisa   de   um blog.   O   Facebook   jamais,   tenho medo de ficar agarrada.

Isso não é de alguma forma negar um   Mundo   que,   devido   ao   advento da internet, está cada vez mais ligado?                                                    

Sim.   Não   gosto   deste   Mundo. Gosto   do   Mundo   em   que   havia tempo   e   em   que   as   pessoas   não eram tiranizadas pelo telefone.

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