Os descendentes da irmã Lúcia recordam estórias da vida da vidente de Fátima. Ela nunca os esqueceu e eles crêem que assim continuará a ser. Retribuem-lhe em orações e perpetuando a sua memória
Os familiares da irmã Lúcia perderam uma amiga no mundo dos vivos, mas ganharam uma protectora especial no universo espiritual. Enclausurada em conventos religiosos desde os 18 anos, a vidente viveu quase toda a sua vida longe da terra, para ficar mais perto do céu. Mas nunca esqueceu a família. E sempre que algum sobrinho a visitava no Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra, os primeiros minutos de conversa eram para a pôr ao corrente das últimas novidades sobre os descendentes da sua linhagem.
“Ela gostava muito da família e esteve sempre presente, nas horas boas e más”, afiança José Maria Vieira, um dos sobrinhos que mais privou com a vidente de Fátima.
Lúcia de Jesus Rosa dos Santos foi a última de sete irmãos. Nasceu a 28 de Março de 1907, mas por questões de conveniência pessoal os pais declararam que veio ao Mundo seis dias antes. Sendo a mais nova, coube-lhe a tarefa de cuidar do rebanho de ovelhas, o que fazia na companhia dos primos Francisco e Jacinta Marto. Aos 10 anos, disse ter visto, pela primeira vez, Nossa Senhora na Cova da Iria. Numa primeira fase, as visões dos três primos causaram turbulência na hierarquia da Igreja Católica. E só depois de muitos interrogatórios e contra-interrogatórios as aparições de Fátima foram reconhecidas pela estrutura religiosa.
A Cova da Iria começava então a ganhar dimensão internacional, enquanto a irmã Lúcia escolhia viver de forma cada vez mais recatada. Apesar deste afastamento da vida terrena, a religiosa, que passou a ser conhecida por irmã Maria Lúcia do Coração Imaculado, manteve-se permanentemente ligada à família. “Quando a visitava, queria saber como estavam todos, até falava dos vizinhos. Depois, perguntava pelo Poço [do Arneiro onde ocorreu uma aparição] e pela Eira”, recorda com saudade Maria dos Anjos, que aos 85 anos é uma das sobrinhas mais velhas da vidente.
NOVIDADES
Lúcia foi levada em 1921 para o Colégio das Irmãs Doroteias, no Porto, passando depois por Espanha, antes de ingressar no Carmelo de Santa Teresa. Esta entrega à vida contemplativa acabou por afastá-la de Aljustrel, a pequena aldeia onde nasceu, perto da Cova da Iria. Por isso, aproveitava as visitas dos sobrinhos para ficar a par das notícias da terra.
Sabedor das saudades que a tia tinha da casa dos pais, José Maria Vieira aproveitou uma das poucas saídas da vidente para lhe preparar uma surpresa. Não foi fácil convencer a Madre Prioreza do Convento, muito menos a hierarquia da Igreja. Mas após muita persistência, a autorização viria a materializar-se em Maio de 2000, aquando a terceira visita do Papa João Paulo II ao Santuário de Fátima.
“Há 54 anos que ela não ia a Aljustrel”, relembra o sobrinho, com um brilhozinho nos olhos. Sem dizer nada à tia, José Maria preparou a visita ao milímetro. Fez o reconhecimento de todos os caminhos alternativos para o caso de haver uma emergência e no dia em que era suposto efectuar o regresso a Coimbra, contornou a Rotunda Sul de Fátima em direcção a Aljustrel. A vidente ainda perguntou se não estava a enganar-se no caminho. Ele respondeu que ia fazer um desvio porque “as portagens estavam em obras”. Minutos depois, a tia estava em Aljustrel, encantada com a surpresa.
“Senti um peso em cima dos ombros como nunca tinha sentido, mas valeu a pena”, relembra José Maria, orgulhoso pelo facto de ter contribuído para satisfazer um desejo antigo da tia.
Aproveitando uma fuga de informação no restrito grupo de pessoas que sabiam da visita, um canal de televisão conseguiu o exclusivo da deslocação e registou para a posteridade as pequenas histórias contadas pela vidente, junto à estátua do Anjo e ao Poço do Arneiro. “Foi como escrever mais uma página na história de Fátima”, afirma o sobrinho.
CONSELHOS
A influência da irmã Lúcia nos destinos da família é visível e inegável. Com mais ou menos frequência, todos gostavam de a visitar e os que tiveram a felicidade de a abraçar, recordam esse momento como um dos mais marcantes da sua vida. Em seguida, vinham os pedidos e os conselhos espirituais. “O pouco que somos hoje, não o seríamos sem ela”, reconhece a sobrinha Maria Rosa Oliveira, de 75 anos.
O último escrivão da Junta de Freguesia de Fátima, agora reformado, era presença pouco habitual no locutório “pela distância e pela falta de assunto”. No entanto, sempre que precisou de apoio, foi a Coimbra que se dirigiu. Cabisbaixo, José dos Santos Pereira, 68 anos, recorda ainda as duas vezes que esteve no Convento das Carmelitas a pedir à tia que intercedesse pela saúde da mulher e de um filho. “Recorria a ela porque tinha confiança na sua oração”, confessa, elevando os olhos para o céu. Os momentos de silêncio que se seguem são esclarecedores. José Pereira acredita que uma súplica feita directamente à vidente chegava com maior rapidez a Deus.
Noutra altura, José Maria Vieira sentiu dificuldades em encontrar cura para as maleitas de um filho e recorreu também à caridade da tia. Ela ordenou-lhe que levasse a criança a Coimbra no dia seguinte. Quando chegou à cidade dos estudantes, tinha à sua espera um médico, que o encaminhou para uma clínica. O miúdo foi operado e recuperou. No final, ninguém quis receber nada pelos tratamentos.
A irmã Maria de Belém, 72 anos, conta outra história que ilustra bem da importância que todos davam aos conselhos da tia Lúcia. Numa das visitas que fez a Portugal durante o período de 18 anos de missão em Moçambique, a religiosa deparou-se com uma mudança provocada pelo Concílio Vaticano II. As freiras estavam dispensadas de usar o hábito e muitas das irmãs do Sagrado Coração de Maria começavam a mudar as vestes. Indecisa quanto à melhor atitude a adoptar, Maria de Belém pediu uma opinião à tia. A resposta saiu rápida e esclarecedora. “Fez-me ver que não era o hábito que fazia o monge.”
APARIÇÕES
Ao longo de muitos anos de confissões e pedidos de ajuda, os familiares da irmã Lúcia evitaram quase todos abordar o tema das Aparições de Fátima. José Santos Pereira esteve várias vezes com a pergunta atravessada na garganta. Mas ficou-se por aí. “Parece que não tinha coragem de fazer certas perguntas”, diz com arrependimento.
A sua prima Maria dos Anjos foi mais corajosa. Das muitas conversas que teve com a tia, reserva para si grande parte do conteúdo. Mas aceita abrir uma excepção para nos revelar um dos diálogos que manteve com a Vidente, a propósito das visões. “Ela dizia-me que nunca tinha visto uma senhora tão bonita. A imagem actual é bonita, mas não tão bela como a Nossa Senhora que lhe apareceu.”
A Irmã Lúcia era lúcida, alegre e sarcástica. Sem necessidade das opiniões dos familiares, revelava-se uma mulher culta e informada sobre os problemas do Mundo em geral e de Portugal em particular. Quando havia eleições, pedia ao sobrinho José Maria para a levar à mesa de voto, no Liceu José Falcão, em Coimbra. Exercia o seu dever cívico e retornava ao Carmelo. Sem falar de política.
Nas deslocações de automóvel, a irmã Lúcia seguia ao lado do condutor. “Um dia, virou-se para mim e disse: ‘Zé, se quiseres andar mais depressa anda que eu não tenho medo’, conta o sobrinho.
As novas tecnologias também nunca meteram medo à vidente, apesar do seu afastamento prematuro do contacto com o mundo exterior. Primeiro, teve uma máquina de escrever mecânica, que usou para imortalizar as suas memórias. Quando esta começou a dar sinais de cansaço, manifestou-se desgostosa a um sobrinho que estava emigrado no Brasil e este, sem dar tempo para mais lamentações, ofereceu-lhe uma máquina de escrever automática. Bastaram pequenas explicações para que a vidente se familiarizasse com o seu funcionamento.
COMPUTADOR
Há poucos anos, a mais nova dos Três Pastorinhos substituiu esta máquina por um moderno computador. Mais uma vez, não foram necessárias grandes explicações para que começasse a trabalhar.
A juntar à forma esclarecida como sempre ultrapassou as dificuldades, a irmã Lúcia evidenciava uma postura divertida, com grandes doses de ironia. E nem a doença afastou dela o sentido de humor. Antes pelo contrário. Poucos meses antes de falecer, entretinha-se a brincar com a morte. “Quando morrer, os primos vêm-me buscar”, confidenciou ao sobrinho José Maria.
Sem esconder o desejo de partir para junto dos beatos Francisco e Jacinta Marto, a vidente chegou a gracejar igualmente, com a sua entrada no mundo celestial. “Como o S. Pedro já está cansado, quando lá chegar, sento-o numa cadeira e deixo entrar toda a gente no Ceú”, disse em tom de brincadeira.
Com a morte da última vidente, encerra-se um ciclo na história de Fátima. Para os familiares, abre-se um novo capítulo. Apesar de um pouco surpreendidos por a tia ter ficado sepultada em Coimbra, não se mostram preocupados em saber quando será feita a trasladação do corpo para a Cova da Iria, para junto dos primos.
Os responsáveis pelo Santuário dizem que nunca será feita antes de um ano. José Maria Vieira preferia ver este prazo alargado, alegando que será complicado para um eventual processo de beatificação, ou canonização, se começar a ser venerada pelos fiéis antes de um reconhecimento oficial do Vaticano. Em último caso, o sobrinho da irmã Lúcia gostava de ver os restos mortais trasladados para Fátima em Maio de 2007, quando está prevista a inauguração da nova Igreja da Santíssima Trindade.
A partida da última testemunha das Aparições é, simbolicamente, o começo de uma nova fase na história de Fátima. E um marco indelével na memória daqueles que com ela conviveram, com um lugar especial reservado para os seus familiares.
Os pais da irmã Lúcia, Maria Rosa e António dos Santos, casaram na Igreja Paroquial de Fátima, a 19 de Novembro de 1890. Tiveram sete filhos, seis raparigas e um rapaz. A vidente foi a última a nascer, em Aljustrel, Fátima, a 28 de Março de 1907. Os pais registaram-na como tendo nascido a 22 de Março.
A penúltima filha do casal, Maria Rosa, faleceu ao nascer. Os outros irmãos casaram e tiveram 36 filhos, cinco dos quais morreram ainda pequenos. O irmão, Manuel Rosa dos Santos, construiu a primeira moradia que existiu na Cova da Iria, emigrando depois para o Brasil, onde viria a falecer. Deixou onze filhos.
Maria dos Anjos, a irmã mais velha, trabalhava como tecedeira na casa dos pais, casou e teve oito filhos (dois morreram em crianças). Teresa de Jesus Rosa dos Santos trabalhou como costureira, casou e teve seis filhos. Glória de Jesus Rosa dos Santos, doméstica, teve cinco filhos. Carolina de Jesus Rosa dos Santos, doméstica, aprendeu também a trabalhar no tear, costura e croché. Teve seis filhos (um morreu pequeno).
Dos 31 sobrinhos da irmã Lúcia, três homens entregaram-se ao sacerdócio e duas mulheres abraçaram a vida religiosa.
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