Shakespeare, sempre
O mais recente filme de Kenneth Branagh mergulha na biografia do velho Will
Sabemos pouco sobre Shakespeare. Aliás, nem sequer sabemos se Shakespeare era Shakespeare. Isso interessa? Para os estudiosos, talvez. Para nós, leigos, amantes, entusiastas, as peças chegam e sobram.
Kenneth Branagh, que deve a sua carreira de actor e realizador às palavras do bardo, não se contenta com tão pouco. E no seu mais recente filme, ‘Toda a Verdade’, decide mergulhar na biografia do velho Will.
Estamos em 1613. O Globe Theatre, onde Shakespeare deslumbrou plateias com as suas comédias e tragédias, foi consumido pelas chamas. Mas a destruição do teatro é apenas o menor dos males. O maior de todos é que Shakespeare não voltou a escrever uma nova peça. Terá regressado a Stratford-upon-Avon para "cultivar o próprio jardim" nos últimos três anos de vida. Não apenas no sentido literal da expressão; também no sentido filosófico de que falava a personagem de Voltaire – aquele momento em que nos retiramos do mundo para cultivar as alegrias prosaicas e revisitar as memórias da vida.
O filme de Branagh e o excepcional argumento de Ben Elton são um exercício elegante de metaliteratura em imagens, permitindo revisitar os velhos temas do cânone: a erudição sobre-humana de Shakespeare; o seu alegado criptocatolicismo; a pulsão homoerótica presente na poesia.
Mas o filme permite igualmente conjecturar sobre temas mais vastos, que nos são próximos pela sua intemporalidade. Que lugar existe para o mérito numa sociedade aristocrática? Será possível conciliar harmoniosamente a "loucura da arte" e as obrigações familiares?
Por último, Branagh e Elton colocam no centro da história a morte do único filho rapaz de Shakespeare. O seu nome era Hamnet (as ressonâncias onomásticas com o famoso príncipe da Dinamarca são evidentes) e é também como fantasma que ele aparece a seu pai. Como se exigisse "toda a verdade" sobre o seu funesto destino – uma verdade que, como acontece nas peças de Shakespeare, está sempre ocultada por um exército de máscaras e enganos.
Encontrar essa verdade, por mais dolorosa que seja, permitirá ao autor o que de mais precioso existe para um ser humano: a possibilidade de (se) perdoar e de regressar verdadeiramente a casa.
LIVRO
Um bálsamo de inteligência
A liberdade de expressão já conheceu melhores dias. Que o diga Camille Paglia, a decana das feministas libertárias, que denuncia como poucos o clima opressivo e mentecapto que deseja calar as melhores vozes. Estes ensaios são um bálsamo de inteligência e coragem contra a "correcção" fascista.
DVD
Um filme de matiné sobre o terrorismo islamita
Coisa rara: um filme de matiné sobre o terrorismo islamita que não tem medo de apresentar os terroristas por aquilo que são. Criminosos selvagens para quem a vida humana não passa de um pormenor. E, sobre a relação abusiva entre "terrorismo" e "Islão", um esclarecimento: é estabelecida pelos terroristas, não pelas vítimas.
FILME
O crime que enterrou a 'velha Hollywood'
Seria bom que o cinema pudesse interferir na história para a corrigir nos seus aspectos mais sombrios. Depois de se entregar a esse exercício em ‘Sacanas sem Lei’, Tarantino ocupa-se agora do assassinato de Sharon Tate em 1969. O crime enterrou a ‘velha Hollywood’ por que Tarantino suspira em cada fotograma.
Texto escrito na antiga ortografia
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