Operação feita à perna errada

António Pires estava em lista de espera para uma operação à perna direita, mas acabou por sair do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa com as costuras na esquerda. Acusa o médico de não ter dado ouvidos aos seus alertas para o alegado erro. “Ainda por cima, o risco da cirurgia era tão elevado que não estava disposto a corrê-lo. Como consequência, não tive mais descanso.”

05 de dezembro de 2005 às 13:00
Operação feita à perna errada Foto: Jorge Godinho
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“Já tinha sido anestesiado, mas ainda assim, enquanto o médico me fazia as marcações na perna, alertei-o”, recorda António, 68 anos. A resposta veio sem admitir réplica: “Não, é esta”.

Mas as surpresas daquela tarde, a 14 de Fevereiro, não ficaram por aqui. Horas depois, o doente teve alta hospitalar e foi-lhe entregue um relatório de diagnóstico do cirurgião vascular João Inocente, que descrevia uma operação ao membro inferior direito – aquele que nunca foi operado.

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Incomodado, António consultou a médica de família. “Abriu o tal relatório, riscou a indicação do outro médico e assinalou a operação à perna esquerda [como sucedeu]”, afirma. “Depois, receitou-me nova medicação. Mais nada.”

RISCO NA INTERVENÇÃO

A debilidade nas pernas de António teve origem numa trombose que há mais de 23 anos lhe afectou o lado direito do corpo. “Nessa data, os médicos desaconselharam qualquer cirurgia à perna direita. Traçaram três casos possíveis: A cura, a morte ainda na mesa de cirurgia ou a amputação.”

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Esta é a versão que António diz estar farto de repetir. Primeiro, ao médico do Hospital de Santa Marta que a 23 de Abril de 2004 o pôs em lista de espera para a cirurgia. Depois de ser chamado ao Hospital da Cruz Vermelha, repetiu-a a João Inocente na primeira consulta e antes da cirurgia. “Nunca faria a operação de livre vontade, nem assinei qualquer documento de consentimento.”

Se a dificuldade de movimentos era grande, o doente diz que aumentou agora a ponto de interromper as férias da Páscoa, em S. Martinho de Dume, para recorrer às urgências do Hospital de São Marcos (Braga). “As dores eram muitas. Mal podia andar.”

Segundo nota hospitalar, tomou uma injecção durante dez dias, para diminuir o inchaço, e foi-lhe receitada nova medicação, que mantém até hoje.

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HOSPITAL NÃO ESCLARECE

O CM questionou a administração do Hospital da Cruz Vermelha para saber se seria possível que o médico se enganasse duas vezes: primeiro, na perna a operar; e, depois, no relatório da cirurgia. A resposta veio por escrito.

“Não, quer pela prática de funcionamento instituída quer pela técnica utilizada. Se [o doente] tem dúvidas, deve solicitar o esclarecimento à direcção clínica do hospital ou ao cirurgião responsável. O que não sucedeu.”

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É certo que António Pires apenas alertou o clínico para o alegado engano antes da operação e nunca depois. Acontece que as marcas de costuras na perna esquerda são evidentes e o doente guarda o relatório do procedimento.

O hospital insiste que só tem gente cheia de boa vontade. “Tanto a direcção clínica como qualquer outro elemento do seu corpo clínico estão sempre disponíveis para esclarecer os doentes tratados.”

LEI RESPONDE A FALHAS CLÍNICAS

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“A lei dá resposta a todos os casos”, diz ao CM Manuel Costa Andrade, especialista em Direito Penal. Mas critica o sistema judicial português. “A prova é que se torna difícil, e os tribunais demoram demasiado tempo a julgar.”

O Código Penal prevê crimes de negligência ou erro grosseiro, o que nos casos clínicos implica procedimentos específicos. As queixas dos utentes devem ser formalizadas no livro de reclamações das unidade de saúde, Ordem dos Médicos, Inspecção-Geral de Saúde ou directamente na Provedoria de Justiça.

As reclamações são transformadas em processo, que passa a inquérito preliminar. A conduta clínica pode então encaixar em diferentes molduras penais, como ofensas à integridade física ou homicídio por negligência. “Só falta mais celeridade na Justiça e nos meios que implica.”

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BASTONÁRIO DEFENDE APOIO ÀS VÍTIMAS

“Não é possível comentar este caso pontual, mas o doente pode-nos sempre apresentar queixa”, afirma Pedro Nunes, bastonário da Ordem dos Médicos.

Sobre a sua concordância para o uso da expressão ‘negligência médica’ quando se fala de casos clínicos com desfecho que lese o utente, defende outra designação: “acidentes de saúde”. Podem ser fortuitos, por má prática dos profissionais, ou erros técnicos. “São casos complicados de se resolver, mas de facto, às vezes, consegue-se apurar se há ou não culpa.”

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Pedro Nunes critica o facto de, em Portugal, ainda não haver um mecanismo de apoio às vítimas de ‘acidentes de saúde’, sem que estes casos de prova de culpa se arrastem nos tribunais. Um exemplo que alguns países do Norte da Europa já têm em marcha.

MÉDICOS CONDENADOS

O Tribunal de Coimbra condenou, em Outubro, três médicos ao pagamento de 56 350 euros à família de Maria Bernardes – que morreu, em Junho de 2002, com 56 anos, vítima de cancro da mama –, provando a acusação do crime de ofensa à integridade física por negligência.

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QUEIXAS RECEBIDAS

Em Portugal, a maioria das queixas de negligência médica ou de erro médico são formalizadas por utentes dos serviços de urgência. Mas é a especialidade de ginecologia-obstetrícia que reúne mais reclamações. São estas referentes a partos complicados, restos de placentas não retirados, etc.

CANAL ODISSEIA

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O canal Odisseia, de TV por cabo, exibiu em Outubro um documentário sobre negligência médica. Em dois episódios, o trabalho australiano intitulado ‘Negligência ou Acidente?’ descrevia “descuidos cirúrgicos”. A maioria dos casos referia-se a objectos hospitalares esquecidos no interior do corpo de pacientes na sequência de cirurgias.

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