Palestinianos de Belém gratos pelo reconhecimento português mas não chega

Moradores sentem-se cada vez mais oprimidos e asfixiados e alertam que só o isolamento de Israel pode forçar mudanças.

20 de setembro de 2025 às 20:03
"Gaza luta sozinha", lê-se num muro em Gaza Foto: MOHAMMED SABER
Gaza Foto: MOHAMMED SABER

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Palestinianos de Belém, na Cisjordânia ocupada, expressaram este sábado gratidão pelo reconhecimento do Estado da Palestina, a anunciar por Portugal no domingo, mas sentem-se cada vez mais oprimidos e asfixiados e alertam que só o isolamento de Israel pode forçar mudanças.

Sahev, 35 anos, dedica os seus dias à contemplação a partir do alpendre do Walled off Hotel, que tem a merecida reputação da "pior vista do mundo" para o muro de betão que separa a cidade dos territórios ocupados por Israel.

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Dantes era rececionista desta unidade financiada pelo artista britânico Banksy e os seus nove quartos estariam habitualmente ocupados por turistas dos roteiros bíblicos. Mas agora ficou remetido à condição de segurança por metade do salário de um negócio fechado por tempo incerto.

Os ataques liderados pelos islamitas do Hamas, a partir do enclave da Faixa de Gaza no sul de Israel em 7 de outubro de 2023, marcam um antes e depois na vida do Walled Off Hotel, de Sahev e de toda a cidade de 40 mil habitantes e quatro vezes maior com os seus arredores.

Os turistas desapareceram, os rendimentos encolheram e os controlos israelitas aumentaram, em suma, "tudo aquilo que já era miserável, ficou uma completa desgraça depois da guerra".

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É neste contexto que coloca o reconhecimento que Portugal anunciou para domingo do Estado Palestiniano, a que se juntarão outros nove países, incluindo França e Reino Unido, que o rececionista desocupado agradece mas "não vai mudar o facto de já se ter rebentado com a cidade toda".

A panorâmica de Sahev tem um alcance de uns cinco metros até à barreira de betão e suas sete torres e câmaras de vigilância, ladeada por uma rua estreita e maltratada que conduz ao campo de refugiados de Aida, estabelecido em 1950 após a independência de Israel, para acolher milhares de pessoas de 27 localidades de Jerusalém ocupada e Hebron.

Ao longo do muro, erguido a partir de 2000 com a justificação da proteção do território de Israel, os palestinianos foram deixando centenas de mensagens e 'graffitis' dirigidos à ocupação -- "Será que paguei por isto?", "Ninguém tem o poder de abusar", "façam judeus, não a guerra" -- destacando-se pelo estilo e sátira uma obra de Banksy com uma coroa britânica acompanhada pela palavra "Desculpem".

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Ali cresceu no campo de Aida e também descobriu a veia artística após experimentar 18 meses numa cadeia israelita, onde ainda permanece o mais velho dos seus quatro filhos, e agora dedica-se à venda de colares feitos à mão para uma clientela ausente.

"Só quero que a guerra acabe, que as pessoas voltem ao trabalho e que a Palestina tenha paz", manifesta o homem de 37 anos, que integra um contingente de cerca de um terço de desempregados na Cisjordânia, o triplo do valor pré-guerra.

Mas em Belém poderá ser ainda maior, até porque, desde os ataques de 07 de outubro de 2023 e imediata retaliação israelita na Faixa de Gaza, os palestinianos estão proibidos de entrar em Israel e perderam-se milhares de postos de trabalho na vizinha Jerusalém.

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A entrada do campo de refugiados de Aida, que atualmente acolhe cerca de cinco mil pessoas, é assinalada por uma instalação artística de uma chave e uma fechadura gigante, "A Chave do Retorno", simbolizando o sonho do regresso aos territórios ocupados após a Nakba, que a partir de 1947 desalojou milhares de palestinianos das suas terras.

Foi junto desta obra de nove metros em altura, entalada entre as primeiras edificações do campo e o muro israelita, que também se estabeleceu, nos primórdios de Aida, o seu principal centro de juventude a partir de uma equipa de futebol e hoje desenvolve também atividades artísticas e musicais, educativas e apoio social.

Said, um dos responsáveis deste centro que se tornou numa forma de unir os refugiados com algo mais construtivo do que "o sentimento de miséria, humilhação e perda das suas terras", é um filho do campo de Aida e, como todos os outros, cresceu rodeado por um ambiente de violência e uma sensação de asfixia progressiva, que ficou agravada pelo muro da Cisjordânia e instalação de dois colonatos ilegais nas proximidades.

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O próprio centro foi destruído em 2005 e reconstruído cinco anos depois, recorda o palestiniano de 29 anos, para quem o conflito tem muitas faces e uma delas é "a guerra das mentalidades", perante a progressiva ocupação de terras e com planos de expansão que, na prática, significam separar a Cisjordânia em dois e torná-la inviável como Estado. Ou mesmo a sua total anexação, como pretende a ala radical do Governo israelita.

"A guerra de mentalidades é quererem fazer-nos acreditar que cercarem-nos como galinhas é normal, que faz parte da nossa vida. Se aceitarmos isto, estamos definitivamente perdidos", adverte, num exemplo inverso do lema que faz lei no campo de refugiados: "Ontem melhor do que hoje".

Quando se aponta a Palestina como "a maior prisão do mundo", Said avisa que "até a prisão está cada vez mais pequena" e receia que os reconhecimentos ocidentais do Estado palestiniano, apesar de bem-vindos, vão ter como resultado imediato apenas "a punição como ato de vingança" contra os seus habitantes: "Estão a reconhecer o quê? O gueto de Belém?"

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Em alternativa, sugere "que se faça justiça" e que Israel seja alvo de isolamento internacional e de pesadas sanções, à semelhança do que os países ocidentais com a Rússia quando invadiu a Ucrânia em 2022, e que também se contrarie a narrativa israelita de que o reconhecimento da Palestina é uma recompensa para o Hamas.

"Deve ser o único Estado do mundo que se apresenta como opressor e como vítima", ironiza o responsável do centro de juventude, ao frisar "repetidos comportamentos de 'bullying' de um país que já nem se preocupa sequer com a sua reputação", mas que ao mesmo tempo "pratica um genocídio em toda a linha, que será também o seu suicídio".

O cansaço da guerra e da radicalização crescente desde os ataques de 07 de outubro está na ponta da língua dos habitantes de Belém, que adicionam o desejo do regresso aos dias vibrantes da cidade, onde o turismo representava mais de dois terços das suas receitas e nos últimos desapareceu, tal como já se tinha eclipsado na pandemia de covid-19.

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Enquanto prepara a próxima missa na Igreja da Natividade, o padre Spiridon aponta para os escassos do templo erguido sobre a gruta onde a história cristã atribui o nascimento de Jesus: "O normal seria uma fila a perder de vista e um mínimo de três horas para entrar".

O líder ortodoxo compreende "o medo que as pessoas sentem em tempos de guerra", mas, mesmo para um palestiniano nascido em Belém, evita pronunciamentos políticos e faz um apelo universal para "o regresso à paz e prosperidade" em todos os lugares da Terra Santa: "É por isso que rezo em cada momento, na esperança de que vai acontecer. Aliás, tem de acontecer".

A chave do problema está na Faixa de Gaza, defende Issa, um guia turístico de Belém que perdeu praticamente toda a sua clientela, num elo de uma cadeia que abrange hotéis, restaurantes e empresas especializadas, atualmente fechados ou quase, e, com eles, uma legião de trabalhadores mais as suas famílias.

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Para o guia de 60 anos, Israel e Estados Unidos têm de ser pressionados a encontrar uma solução para o enclave palestiniano, "que é neste momento a fonte de todos os problemas e só então a guerra terá um fim", tal como a crise em Belém e no resto da Cisjordânia ocupada.

"O Hamas cometeu um erro enorme e estamos todos a pagá-lo bem caro", comenta Issa, que agradece muito os reconhecimentos diplomáticos dos países ocidentais, embora acredite que apenas poderão ter um impacto real num futuro ainda distante.

É o mesmo que sugere Nidal, um homem de negócios do turismo de 56 anos, ao referir-se a "uma loucura do Hamas e já não é preciso mais nenhum palestiniano a dizê-lo".

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Na manhã de 07 de outubro de 2023, preparava a excursão de um grupo de turistas internacionais em Belém, mas foi de imediato avisado que tinha de o fechar no hotel até novas ordens. Foi o último: "Subitamente, num par de horas, tudo acabou".

Desde então, ficou confinado a uma loja de artesanato que possui nas proximidades da Igreja da Natividade, e que só permanece aberta com o recurso às poupanças acumuladas desde que fez de uma árvore o "primeiro escritório" de angariação de clientes e que tinha reservadas para o que julgava ser a sua reforma.

"Basta de sangue!", desabafa o comerciante, para quem "já não é importante a bandeira" que o representa se isso significar a desistência do direito à paz e ao trabalho, do mesmo modo que os iminentes reconhecimentos internacionais do Estado Palestiniano serão "apenas uma anedota" se não forem acompanhadas de mudanças que possa sentir.

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De resto, Nidal compara estas iniciativas diplomáticas a uma oferta de "dinheiro falso", mas, ainda que as ache genuinamente bem intencionadas, apela: "Só peço uma vida".

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