Livro de intervenção política permite a Menezes contar as incríveis tensões vividas no Congresso do PSD de 1995
"Jantámos em conjunto. À mesa estavam todos aqueles que constituíam o estado maior de Fernando Nogueira - Marques Mendes, Pedro Pinto, Carlos Coelho, Torres Pereira e António Capucho. Foi aprazado o contra-ataque que devia anestesiar o efeito de uma tarde profundamente negativa.
(...) A mim tinha-me ficado destinado combater, palavra por palavra, a lógica argumentativa do José Pacheco Pereira.
Com toda aquela tensão praticamente não jantei. Recordo-me de sair a correr do restaurante, porque fiquei incumbido de estar ao lado da Mesa no momento de abertura dos trabalhos. A ordem das intervenções era a chave do sucesso da nossa resposta.
Estava arrasado. Há mais de 15 dias que não dormia mais do que duas, três horas por noite. Nas duas últimas não tinha pregado olho. Cumpri com a minha missão junto da Mesa do Congresso e subi para os balneários que serviam de secretariado improvisado à candidatura de Fernando Nogueira. Isolei-me e procurei construir mentalmente o discurso que sabia que poderia decidir tudo e que, segundo o meu cálculo, devia ocorrer pouco mais de uma hora mais tarde.
(...) Desci apressadamente as escadas que conduziam ao palco. Mal o pisei começaram os apupos, magistralmente orquestrados, um pouco por todo o primeiro balcão. Mais tarde soube que nesse momento foram fechadas por fora as portas de acesso às diferentes galerias! Não fosse algum dos instrumentistas querer sair por um momento para refrescar a garganta!
A MULHER DE UM EX-MINISTRO
Dirigi-me ao púlpito. Tirei o relógio e coloquei-o sobre a mesa. Coloquei sobre a mesma uma pequena folha com notas avulsas. Olhei de forma provocadora para o sector, minoritário, que se estava a exceder. Consegui, apesar dos holofotes e da distância, visionar a agitação histeriforme de uma militante que conhecia muito bem. Mulher de um conhecido ex-Ministro. Uma pessoa calma e educada por quem tinha consideração. (...)
Fiz um silêncio prolongado, como vem nos livros. Estava a conseguir o primeiro objectivo. Criar expectativa e amedrontar os meus companheiros, encarniçados adversários de circunstância.
MARCAR PACHECO PEREIRA
Comecei forte e em crescendo. Quando olhei para o relógio a primeira vez já haviam passado sete minutos. Na sala não bulia uma mosca e eu estava consciente que estava a fazer um dos discursos mais conseguidos da minha vida. Sei que nesse momento um dos vips da candidatura nogueirista começara a bater palmas em frente à televisão do staff de apoio. Lembro-me deste pormenor, a que assistiu a minha mulher, porque meia hora depois, o mesmo personagem comandava o coro dos que pediam a minha cabeça.
Entrei na fase mais complexa da desmontagem do discurso de Pacheco Pereira. Tive a noção que ia correr sobre o fio da navalha, mas mesmo assim decidi arriscar.
Dizia então: "tu sabes Zé que o PSD é um partido nacional, com representatividade, do Minho ao Algarve, do Interior às ilhas dos Açores e da Madeira; tu sabes Zé que o PSD é um partido interclassista, onde cabem as elites urbanas, mas também os trabalhadores por contra de outrem, os profissionais liberais e os operários com ambição e vontade de subir na vida; tu sabes Zé que o PSD é uma frente eleitoral onde coexistem, em equilíbrio, liberais, mas também social democratas e social cristãos".
E continuei: "tu que és lúcido e sabes tudo isto, não temes que, apesar de não ser esse o seu propósito, Durão Barroso, face às escolhas concretas que realizou, possa vir a ser acusado de só ter optado por uma parte do partido. Tu sabes que a constituição da Comissão Política de Durão Barroso exacerbou a presença de quadros de Lisboa, esquecendo o resto do País, preferiu os quadros representativos das elites intelectuais ignorando os quadros intermédios, preferiu uma ala assumidamente liberal esquecendo outras visões da realidade do PPD/PSD. Tu que sabes tudo isto não temes que amanhã o País diga que o PSD de Durão Barroso é só uma parte do partido, um PSD sulista, elitista e liberal…".
Nesse momento, com a sala rendida, perante a exaltação insultuosa de um único congressista que se levantou como possuído por um espírito maligno, distraí-me, hesitei e silenciei-me por dois ou três segundos. Estava muito cansado e cometi esse erro fatal. Por aquela fresta, a reboque do tal congressista, um ex-vereador da Câmara de Lisboa, entraram em cena, com igual registo, as galerias e logo de seguida quase todos os apoiantes de Durão Barroso.
Não passaram mais de uma dúzia de segundos até que se levantassem em meu apoio os "soldados" de Nogueira. Contra os insultos, que vinham principalmente do balcão de convidados, respondiam com gritos de PSD, PSD, PSD!
NÃO SAIR CORRIDO
(...) Naquele turbilhão fixei-me num objectivo que, não sei porquê, intuí como determinante a qualquer saída que preservasse o mínimo da minha dignidade e uma remota possibilidade de sucesso do meu amigo.
Decidi que não sairia daquele púlpito até que me deixassem formalmente terminar. Nunca sairia corrido por aquela multidão ululante. Achei que seria uma capitulação e o princípio de uma derrota inevitável. (...)
Agarrei-me com força às beiras laterais e salientes do púlpito. Lembro- -me de as apertar até sentir dor. Essa dor foi um bálsamo que fez com que, por exemplo, resistisse às pressões "benévolas" de alguns apoiantes de Durão Barroso para que saísse de cena. Da mesma forma que eu percebi que tinha que vencer aquela prova de resistência física e psicológica, havia "do outro lado" gente inteligente que entendia que era vital que eu atirasse a toalha ao tapete. O mais insistente foi António Pinto Leite.
Nesse momento crucial houve uma visão que me deu um suplemento de alento. Ao olhar para o Congresso dividido, apercebi-me que havia uma ligeira vantagem dos que se manifestavam a meu favor. Nessa altura fiz um juízo da situação. Valia a pena aguentar. Já tínhamos vencido. Aquele psicodrama tinha fracturado definitiva e irreversivelmente os diferentes apoios. Depois do que aconteceu já não existiam condições para flutuações de voto. Quem tinha optado já não tinha condições para arrepiar caminho. E, aparentemente, a maioria, apesar de tangencial, estava connosco.
(...) Dada a minha teimosa resistência fez-se o silêncio possível. Alinhavei umas frases soltas para terminar a intervenção. Tinha conseguido resistir a toda aquela pressão. Pouco depois soube que o tinha feito sob o olhar atento de mais de três milhões de portugueses.
NO CHÃO A CHORAR
Subi a correr para os bastidores, entrei no tal balneário/secretariado e refugiei-me num dos muitos chuveiros individuais que lá existiam. Tranquei a porta. Sentei-me no chão e comecei a chorar convulsivamente.
Foram duas horas em que só sonhava com um atol isolado nos confins do Pacífico. Não me sentia com coragem para encarar ninguém e achava que a vida política tinha terminado para mim. Como é que ia enfrentar os amigos e, principalmente, um terço do País que tinha seguido, a par e passo, aqueles minutos infernais. Após várias tentativas a que resisti, lá aceitei trocar umas palavras com alguns amigos que me queriam confortar. A minha mulher, Pedro Pinto, Pedro Vinha, Marques Mendes, Eurico de Melo, Fernando Alberto Ribeiro da Silva, Fernando Nogueira e poucos mais.
(...).Fernando Nogueira esteve comigo bastante tempo, até ao momento em que foi fazer o seu discurso final. Insistiu de forma veemente no sentido de eu não resignar ao lugar de vice- -presidente. Recusei-o radicalmente. Sabia que a meia dúzia de "amigos" que pediam o meu sacrifício poderia ser a gota de água que faltava para a vitória e não aceitava ficar com esse peso na consciência. Nos dias seguintes, a comunicação social atacou Fernando Nogueira por me ter deixado cair. É falso. Ele tentou, até ao último instante convencer-me a continuar.
O CHUVEIRO E A SAÍDA
O início da intervenção de Fernando Nogueira deu-me a energia necessária para começar a reagir. Pus a cabeça debaixo do chuveiro, refresquei-me e saí para o hall onde estavam as televisões ligadas nos diferentes canais. Nogueira teve uma grande prestação. Barroso ia, entretanto, iniciar a sua última tentativa de inverter o que já parecia inevitável. Achei que era o bom momento para ir para casa. Com todas as atenções centradas no interior da sala mãe, podia escapar-me sem ser confrontado com ninguém.
Peguei na mão da minha mulher e saí a passo acelerado. Desci até ao corredor de acesso à plateia. Estava deserto e as portas de entrada no recinto estavam fechadas. Continuamos até às escadas centrais que terminam na porta de entrada em plena Rua de S. José. Aí tive a primeira surpresa, das muitas com que convivi nos dias subsequentes. Um grupo de militantes gritava pelo meu nome e repetia, "parabéns pela sua coragem".
A ÚLTIMA AJUDA
Aquela algazarra alertou os jornalistas que seguiam o discurso de Barroso. Em poucos segundos, mas já em plena rua, vi-me rodeado de blocos de apontamentos e de câmaras de televisão. O primeiro a abordar-me foi o jornalista Ricardo Costa da SIC. Lembro-me de lhe ter implorado que me deixassem em paz, que me deixassem ir para casa, para perto da minha família.
Ricardo Costa guardou o microfone e mandou o seu colega desligar a câmara, ao mesmo tempo que fazia barreira aos seus camaradas que o seguiam. Nunca esquecerei aquela atitude humana e de grande ética e dignidade profissional.
(...) Mal cheguei ao meu apartamento de Carnaxide tocou o telefone. Fernando Nogueira pedia-me uma derradeira ajuda. A "malta" do Porto não acreditava que eu tivesse abdicado voluntariamente da vice-presidência e ameaçava abster-se, regressando de imediato a casa.
Para os tranquilizar era obrigatório substituir-me por alguém da minha confiança, com uma identificação inquestionável comigo. Já passava das quatro da madrugada quando acordei o meu vice, Paulo Mendo, que não hesitou um segundo em face da minha solicitação. Comuniquei-o a Fernando Nogueira. Nunca soube como àquela hora recolheram, no Porto, a sua assinatura para boletim de aceitação de candidatura…"
(Subtítulos e destaques da responsabilidade do Correio da Manhã)
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