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Académicos lamentam não ser ouvidos e criticam "esquizofrenia" das políticas sobre migrações

Governo "exige aos imigrantes o contrário do que promove na emigração".

03 de dezembro de 2025 às 22:24

Académicos que trabalham com o tema das migrações lamentaram, esta quarta-feira, que os governantes decidam políticas sem base científica e criticaram a "esquizofrenia" no modo como Portugal lida com os seus emigrantes e imigrantes.

"O Estado português promove ativamente a sobrevivência de costumes e vivências nos seus emigrantes, tem até um dia das comunidades portuguesas", ao mesmo tempo que exige a "integração plena" dos imigrantes, afirmou à Lusa Rui Pena Pires, do Observatório da Emigração.

Há "uma esquizofrenia" nas políticas públicas sobre migrações: o Governo "exige aos imigrantes o contrário do que promove na emigração", afirmou o investigador, à margem de um encontro evocativo dos 10 anos dos Encontros sobre Experiências Migratórias, organizada pelo Iscte -- Instituto Universitário de Lisboa, Universidade Nova e Observatório da Emigração.

Liliana Azevedo, uma das coordenadoras dos encontros, concordou com esta análise, salientando que as "migrações não são tratadas da mesma forma, quando se trata de portugueses [no exterior] ou de estrangeiros" em Portugal.

"Há uma narrativa dominante relativamente aos portugueses lá fora, que os apresenta como embaixadores de Portugal, bons trabalhadores que se integram bem, preservam a língua e as tradições", mas isso "é uma imagem superficial, acontece com uns, mas não com outros", salientou.

E esta quarta-feira, o discurso sobre os imigrantes em Portugal coloca-os como alguém que se está "a aproveitar do sistema e dos subsídios", mas esquece-se a história da emigração portuguesa.

Ainda esta quarta-feira "há muitos portugueses que vivem problemas na habitação, acesso à saúde, integração e estigmatização" nos seus países de acolhimento, pelo que "apontar o dedo a imigrantes que vêm de outros continentes e não olhar para as migrações portuguesas lá fora é, de facto, hipócrita", considerou a investigadora, que lamentou a falta de comunicação entre a academia e os governantes.

"Não está criado um canal de diálogo entre a academia e quem decide", reconheceu a investigadora, salientando que os políticos pouco comparecem nos encontros científicos, apesar de convidados, e os analistas "raramente são chamados à mesa de diálogo".

Quando se elaboram políticas migratórias, referem-se "números e elementos económicos", mas "não se trazem ao debate sociólogos, antropólogos ou geógrafos" que estudam um tema já estudado.

"Não é um problema de não haver dados, é um problema de falta de vontade política em encontrar soluções baseadas em dados científicos", explicou Liliana Azevedo.

Uma das responsáveis presentes no encontro, a investigadora do Iscte e ex-secretária de Estado das Migrações Cláudia Pereira reconheceu que a ponte entre a academia e os políticos nem sempre é fácil.

"Não foi no meu caso, tive uma ministra que era socióloga e um primeiro-ministro [António Costa] que sabia do tema e lia os artigos sobre migrações, nalguns casos antes de nós", recordou a investigadora, salientando que muitas das medidas para o setor "se basearam em estudos".

A "verdade é que a maioria dos políticos não se orienta pelas recomendações dos académicos", mas "uma coisa que o Covid nos ensinou é que precisamos da ciência e de dados para construir melhores políticas e agir no terreno", reconheceu Cláudia Pereira.

Esta quarta-feira, o país vive num "clima político que é muito exigente e desafiante" e "Portugal é um dos epicentros do discurso de ódio na Europa", pelo que o tema está capturado por "mitos e falsidades".

"Em termos comparativos, Portugal tem menos imigrantes que os outros países europeus" e os "refugiados na Europa são menos de 1%, mas adquiriram uma visibilidade que os tornaram no centro das atenções", exemplificou a investigadora, considerando que é errado adotar políticas restritivas na entrada de estrangeiros num contexto de crescimento económico.

O que regula os fluxos são o mercado laboral: "Há trabalho, as pessoas migram, não há trabalho, as pessoas não migram", explicou Cláudia Pereira.

"De uma forma muito provocatória, a melhor forma de afastar imigrantes é criar uma crise económica", disse a antiga governante socialista, recordando o início dos encontros migratórios, que celebram agora 10 anos: "estávamos num contexto de crise da dívida soberana" e "assistiu-se a nova emigração", porque "havia pouco emprego em Portugal e muito no Reino Unido, por exemplo".

Então, "aumentou muito o desemprego jovem e essas pessoas não tendo emprego em Portugal", procuraram outros destinos, principalmente na Europa.

"Portugal nunca deixou de ter emigrantes, saem cerca de 65 mil portugueses por ano", explicou a investigadora do Observatório de Emigração.

Liliana Azevedo admitiu que o tema mais mediático agora é a imigração, numa tendência global. Portugal foi um país "que atraiu pessoas e houve mudanças legislativas, em termos das leis da imigração, que constituíram um fator de atração, os media falaram sobre o assunto e o Chega aproveitou-se disso e utilizou os imigrantes como bode expiatório" dos "problemas que entretanto surgiram".

Rui Pena Pires concordou que o "contexto político mudou" e existe "em rédea solta um discurso e uma prática política sobre a imigração que era inimaginável há uns anos", num processo "perigoso porque cria divisões e ódios e cria, a prazo, conflitos".

"Se normalizamos a xenofobia sobre a imigração, aceitamos que outros processos do mesmo tipo aconteçam sobre outros" e há o risco de repetir a história: "num tempo são os judeus, noutro tempo são os ciganos e noutros são os imigrantes", concluiu.

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