Luis Sepulveda: "Um escritor é a soma do que leu"
Luis Sepúlveda está em Lisboa para promover o seu mais recente livro e falou ao CM sobre uma vida dedicada às letras e ao ativismo político
Correio da Manhã – Sempre quis escrever? Nunca lhe passou pela cabeça ser cozinheiro, como o seu pai e o seu avô?
Luis Sepúlveda – Sou cozinheiro aficionado. Gosto muito de cozinhar para os amigos e para a família, quando nos reunimos todos. Mas tenho muito respeito pela profissão de cozinheiro. É uma profissão muito séria. E os bons cozinheiros, admiro-os muito.
- Mas escrever era a sua vocação? Disse em tempos que sempre foi um grande leitor, e que um grande leitor acaba por querer contar as suas próprias histórias…
- Creio que sim. Como todas as pessoas, um escritor é também a soma dos livros que leu. É impossível ser escritor sem ter lido. Mas eu considero-me mais leitor do que escritor. A leitura é uma grande paixão e só tenho pena que não seja uma profissão reconhecida. Que ninguém nos pague para ler.
- Reconhece influências de outros autores na sua obra?
- Claro que há influências, mas quando se começa a trabalhar tudo isso fica de lado, na procura de uma voz própria. O que fica é o sentimento de gratidão para com todos os escritores que te ensinaram alguma coisa. Que te deram coisas. Felizmente, tive a sorte de conhecer alguns pessoalmente. Fui amigo de verdadeiros mestres. Para mim, Saramago é inesquecível. As conversas com ele eram sempre enriquecedoras. Ele era pouco pedagogo, era muito direto a falar, mas todas as suas reflexões sobre literatura eram profundas. E isso tenho de lhe agradecer, assim que puder. Outro amigo a quem muito devo é ao Assis Pacheco.
- O que lhe ensinou Fernando Assis Pacheco?
- Eu tinha informação muito fragmentada sobre a literatura portuguesa e um dia, o Assis Pacheco, amigo muito querido que muita falta me faz, fez-me uma síntese de 500 anos de literatura portuguesa. Lembro-me muito disso.
- Em si, o ato de escrever é sempre um ato político? Na sua obra não se ouve apenas o artista, mas também o cidadão empenhado.
- Em primeiro lugar, sou um cidadão. Só depois sou escritor. Sou um cidadão que participa socialmente na vida, e que participa na política. Sinto que é um dever participar na política, que é a arte de tornar as coisas possíveis de uma forma civilizada, dialogada, cordial, coerente. Pacífica. A política não é essa coisa triste em que a vemos transformada pelos corruptos do mundo. Os corruptos que estão a exercer o poder em todos os parlamentos do Mundo. Não. A política é outra coisa. E sinto que, como cidadão, tenho o dever de ter uma posição ética muito rigorosa. Naturalmente, quando escrevo, essa posição está presente.
- Fazia parte da guarda pessoal de Salvador Allende quando se deu o golpe militar no Chile. Este ano assinala-se o 40º aniversário desses acontecimentos. Todas as feridas já estão saradas?
- É uma recordação muito complexa. Por um lado, é uma memória dolorosa, por outro, enche-me de orgulho. Ter conhecido Allende, ter privado com ele numa relação tão pessoal, é um dos grandes orgulhos da minha vida. Ter feito parte do seu corpo de segurança pessoal. E sempre quis contar as suas últimas horas. Mas do ponto de vista dos companheiros que estavam comigo no Palácio da Moeda, onde tudo aconteceu. É um projeto que alimento há muito tempo e que não sei quando levarei a cabo. De cada vez que vou ao Chile, faço uma reunião com o GAP (Grupo de Amigos Pessoais) de Allende. Reunimo-nos em volta da mesa, para comer e falar dos nossos filhos e dos nossos netos. De cada vez que isso acontece, surge algo de novo. Algum detalhe sobre o qual ainda ninguém tinha falado. Na verdade, fomos todos muito discretos quando tudo se deu. Agora, 40 anos depois, há mais liberdade. Mas encaro este projecto como o pagamento de uma dívida que tenho para com Allende e para com os companheiros que estavam comigo, no Palácio da Moeda.
- Porque escolheu viver em Espanha, depois de viver em Hamburgo, na Alemanha, e em Paris, França? Porquê Gijón? Tem alguma coisa a ver com o facto de se considerar um escritor Cervantino?
- Não. Depois de viver tantos anos na Alemanha e na França – e a minha esposa passou grande parte do seu exílio na Suécia –, queríamos viver num país que falasse a nossa língua. Não por razões literárias, mas pelo puro prazer de me levantar de manhã e de ir comprar um jornal na minha língua. E mais do que Espanha, encantaram-me as Astúrias, zona com a qual tinha uma relação sentimental muito forte.
- Porquê as Astúrias?
- Os meus avós paternos eram espanhóis. A minha avó era basca e o meu avô era andaluz. A casa dos meus avós, em Santiago, era uma casa que acolhia exilados republicanos. A maior parte dos velhos que lá iam eram das Astúrias. Por isso, eu tinha uma grande nostalgia pelas Astúrias, nunca lá tendo estado. A primeira vez que viajei até lá, em 1980, fui primeiro à Andaluzia, depois à aldeia basca da minha avó. Mas quando ia de carro, caiu-me uma tempestade terrível em cima e decidi parar para procurar abrigo. Num lugar que não conhecia. Perguntei: “Como se chama este lugar?”. “Estás nas Astúrias”, foi a resposta. Decidi ficar, para conhecer, e apaixonei-me. Por essa gente rude, que à primeira vista parece hostil, pouco simpática. Que é direta e brutal. Mas depois, quando a conheces bem, é hospitaleira e cordial. Uma maneira de ser que me agrada. E decidi que, se tivesse de viver em algum lugar, era ali. Em Gijón, que é uma cidade feia. Industrial, com o mar à frente, mas sem praia. O mar era para onde iam todos os resíduos da indústria... Agora não, foi tratada. O espírito de Gijón é forte. Um espírito de resistência que me agrada. Não queria nada viver numa cidade rica como Barcelona ou numa cidade presunçosa como Madrid.
- Disse que o mais importante de ser escritor é a disciplina, o trabalho. E que quem quer escrever para ficar rico deve renunciar à literatura. Mas há cada vez mais pessoas a pensar que podem enriquecer a escrever. Como lida com o lado comercial do mundo editorial?
- Sinto-me muito afastado de tudo isso. Eu levo a literatura muito a sério e não admito qualquer concessão. Porque não sou masoquista, escrevo quando me sinto bem. Não escrevo como forma de terapia. Escrevo quando estou muito bem. E como não vivo no centro, como vivo na periferia, posso ficar alheio a esse tipo de influências. Já me chegaram a telefonar, dizendo: “Olha, há este prémio que queremos que ganhes…” Não. Digo que não. Isso é roubar. Eu não quero prémios que não tenha ganho. Não quero que o meu nome sirva para que a editora venda mais livros. Há um amigo meu que diz que a minha atitude é de um ‘sniper’. De um franco atirador… Talvez. Oculto, a escrever.
- Há muitos jornalistas a quererem passar-se para a literatura. Cada vez mais. Porque acha que isso acontece tanto?
- No meu caso, comecei a escrever para a rádio. Pequenas histórias, que contava, aos 16 anos. Histórias de teatro. Com 17 anos, entrei para um jornal diário – uma grande escola. O director era amigo do meu pai, que tinha um restaurante onde iam comer todos os jornalistas de esquerda. Um dia, perguntou-lhe se não podia levar-me para lá e pôr-me a escrever. O director perguntou-me onde é que eu queria escrever, e eu respondi, com toda a arrogância do mundo, na cultura. Ele disse-me não. A cultura é uma recompensa. Vais fazer crónica policial. Tinha de ir todos os dias ao quartel da polícia de homicídios, ver mortos e assassinados. Mas foi aí, no jornal diário, que conheci um mito do jornalismo chileno, um homem que ninguém sabia quantos anos tinha, nem onde morava… Dizia-se que dormia no jornal, em cima dos rolos de papel, perto das rotativas. Chamava-se Suritas. Era o nome dele. E parecia que só se alimentava de tabaco e café. Era ele quem me corrigia os textos. Riscava, riscava. Deitava para o lixo. E dizia-me: “Não. Isto é literatura. Escreve como um jornalista e usa apenas metade das palavras!” Fazia-me sempre reescrever as crónicas duas ou três vezes e com esse homem aprendi muitíssimo. Aprendi a ser sintético na linguagem. A dizer as coisas bem, mas com economia. Depois estudei dramaturgia e ciências da comunicação. Sempre combinei as duas coisas – ser escritor e ser jornalista – mas nunca esqueço o que esse senhor em ensinou. A síntese é a arma principal de um bom jornalista.
- E de um bom escritor?
- Também. Não usar palavras em demasia. É muito fácil encher páginas. O difícil é encontrar as palavras justas e precisas. Todos os meus livros são cortados. Os que saem com 120 ou 130 páginas começaram por ter 300. Antes de corrigidos. É preciso cortar, cortar, limpar. Tirar o “eu”, do autor, que me é odioso, e deixar apenas a história. A história conta-se a si própria. Para mim, essa é a frescura que a literatura tem de ter.
- Tem um livro novo, dedicado aos netos. Não é difícil escrever para crianças?
- Muito difícil. Terrivelmente difícil, porque os pequenos são muito exigentes. Primeiro, querem que contes uma história sem ambiguidade. E sobretudo exigem-te diálogos breves e precisos. Neste caso, queria partilhar com os leitores mais jovens algo que para mim é fundamental. A amizade. Este livro é uma homenagem à amizade. Mostra como é possível ser amigo de alguém que é muito diferente de ti. Como podem ser um gato e um rato. Os miúdos têm dito que gostam da história. Para mim, é um grande prémio. Quando me dizem que acreditaram no que eu escrevi.
- Quais são os seus autores preferidos de língua portuguesa?
- Muitos. De Saramago já falei. É um autor a que regresso sempre com um prazer muito grande. É um autor para ler com calma, porque tem muita substância. Miguel Sousa Tavares, gosto muito dele como escritor. Depois, o meu amigo Francisco José Viegas, que tem uns romances policiais muito bons. Há uma mulher maravilhosa, a Ana Luísa Amaral. Dos moçambicanos, gosto do Mia Couto, de quem sou amigo. Dos angolanos, Pepetela. Brasileiros: Moacyr Scliar, João Ubaldo Ribeiro. A lista é enorme… A mim interessa-me a mestiçagem que existe atualmente na literatura de língua portuguesa. Gosto quando escritores africanos te contam algo sobre Lisboa, ou quando um português, como o João de Melo, escreve sobre África. Africaniza-se para te contar a história. Essa mestiçagem é maravilhosa. E universaliza uma língua tão poderosa como é a língua portuguesa, património do Mundo.
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