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Actores de biografias pactuam com o diabo

Ver como Philip Seymour Hoffman, de cabeça enorme, figura corpulenta, voz grave e poderosa, se transforma em Truman Capote, de rosto pequeno, corpo frágil, estranha voz de bebé algo afeminada, é um regalo para quem concebe as interpretações de figuras biográficas como as mais exigentes e ao mesmo tempo recompensadoras para os actores.

25 de fevereiro de 2006 às 00:00

Hoffman vai para lá do vestir a pele de um famoso escritor num dado período da sua conturbada vida. “É muito fácil voltar a fazer este filme e mostrar Capote de uma forma mais agradável, mas creio que a única maneira de o público se identificar com ele era sermos o mais duros possível. Quanto mais benigno é o retrato que se pinta de alguém, menos sincero se está a ser”, disse o actor.

A interpretação em ‘biopics’ – abreviatura para filmes biográficos – começou por ser, em Hollywood, uma forma de elevar ao estatuto de mito figuras históricas e só a partir dos anos 80 se popularizou, muito por culpa da redefinição dos alvos – figuras mais contemporâneas – e da abordagem, focando o lado mais mundano.

ROUBAR A ALMA

Com ‘Capote’, Hoffman está na ‘pole position’ para arrecadar o Óscar de Actor Principal, juntando-o ao Globo de Ouro e ao Bafta. Poderá ser o 15.º vencedor com interpretações de papéis biográficos, depois de George Arliss (Disraeli), Charles Laughton (Henrique VIII), Paul Muni (Louis Pasteur), Gary Cooper (Alvin York), James Cagney (George M. Cohan), Paul Scofield (Sir Thomas Moore), George C. Scott (Patton), Robert de Niro (Jake La Motta), Ben Kingsley (Gandhi), F. Murray Abraham (Salieri), Daniel Day-Lewis (Christy Brown), Geoffrey Rush (David Helfgott), Adrien Brody (Wladyslaw Szpilman) e Jammie Foxx, no ano passado, com Ray Charles.

Da mesma forma que Foxx bateu outras biografias (Leonardo Di Caprio/Howard Hughes; Johnny Depp/J.M. Barrie; Don Cheadle/Paul Rusesabagina), Hoffman vai à guerra com Joaquin Phoenix/Johnny Cash e David Strathairn/ Edward R. Murrow.

Decididamente, o actor de ‘biopic’ está na moda. Porque é um trabalho que oferece, à partida, promessa de prémios. Incluindo na versão feminina, mas fiquemos só pelo último exemplo: a composição do ex-modelo Charlize Theron em ‘Monster’. E este ano volta a ser candidata ao Óscar com a mesma fórmula, em ‘Terra Fria’.

Hoffman tem a sua teoria para o fenómeno: “Fazemos um pacto com o diabo. Para encarnar alguém que existiu mesmo, cometemos o pecado de lhe roubar a alma. Só assim podemos abrir a boca e dar um passo em frente. Pelos vistos, em troca recebemos fama.”

Desde as primeiras cenas, o filme diz-nos ao que vai: o choque de dois mundos, com um horroroso assassinato a servir de inspiração para uma obra-prima da literatura. Ao contrário de ‘Walk The Line’, ‘Capote’ não se dispersa nem procura explicar com traumas passados a personalidade polémica do escritor. Philip Seymour Hoffman dá credibilidade à composição.

Fruto também da baixa produção (‘Capote’ custou sete milhões de dólares), a austeridade notória na encenação torna-se, aqui e ali, rotineira, mas acaba por servir ao argumento. Capote gabava-se de recordar 94 por cento de qualquer conversa. Talvez o filme perca seis por cento na relação entre o escritor e o assassino Perry Smith, que carece de maior profundidade.

CARREIRA SECUNDÁRIA

O primeiro papel visível de Philip Seymour Hoffman, nova-iorquino nascido a 23 de Julho de 1967, surgiu em ‘Perfume de Mulher’ (1992), mas foram as personagens ‘doentias’ em ‘Jogos de Prazer’ e ‘Felicidade’ que lhe deram notoriedade. Participou nos quatro filme de Paul T. Anderson, incluindo ‘Magnolia’ (pelo qual foi candidato ao Óscar de actor secundário) e apareceu em ‘Dragão Vermelho’, ‘A Última Hora’ e ‘Cold Mountain’, até se juntar aos amigos de infância Bennett Miller (realizador) e Dan Futterman (argumentista) em ‘Capote’, como actor principal e produtor. De seguida será o vilão no terceiro capítulo de ‘Missão: Impossível’.

INSPIRADOR E INVEJOSO

O filme percorre a lenta criação do livro ‘A Sangue Frio’. Para tal, ‘Capote’ contou com a ajuda de Harper Lee, amiga de infância e também escritora, que serviu de assistente na recolha de material e investigações no Kansas. No início deste processo lançou o romance ‘To Kill a Mockingbird’ (1960), que acabou por ser um ‘best-seller’, receber o prémio Pulitzer e derivar no filme ‘Na Sombra e no Silêncio’ que, por sua vez deu a Gregory Peck o Óscar para Actor Principal. Uma das personagens da obra, Dill, foi inspirada em Truman Capote. O filme dá mais uma achega à personalidade do autor. “Não vejo o porquê de tanto aparato”, diz, referindo-se ao sucesso da amiga.

A publicação de ‘A Sangue Frio’ (1966) encerra o filme, mas a vida de Truman Capote esticou-se até 26 de Agosto de 1984, quando faleceu em Los Angeles, vítima de uma inflamação no fígado, complicada pelo alcoolismo. Pela mesma altura do sucesso do primeiro ‘romance de não-ficção’, surgiu ‘Memória de Natal’, seguido de um longo vazio de histórias inacabadas e projectos que não saíram da gaveta. A sua mente, ocupada com a toxicodependência e conflitos com outros autores como Gore Vidal, não voltou a ter espaço para a criatividade artística. ‘Música para Camaleões’ (1981), colectânea de contos, foi o último sopro.

Título original: ‘Capote’

Distribuidor: Columbia TriStar Warner

Realizador: Bennett Miller

Argumento: Dan Futterman, baseado no livro de Gerald Clarke.

Intérpretes: Philip Seymour Hoffman (Capote), Catherine Keener (Harper), Clifton Collins Jr. (Perry), Chris Cooper (Alvin).

Philip Seymour Hoffman tem problemas em controlar o peso, mas viu-se obrigado a perder 15 quilos. Sorte a dele as filmagens demorarem apenas 36 dias.

Lisboa – Colombo Warner, Millenium Alvaláxia, Monumental, El Corte Inglés, Fórum Almada, CascaiShopping, LoureShopping

Faro – Fórum Algarve

Porto – Cidade do Porto, Dolce Vita, NorteShopping, AMC.

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