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Hollywood perdida na tradução do Japão

Todos os meses, Matt Kauf-man, 36 anos, um norte-americano de Brooklyn, apresenta ‘Hollywood Japan File’ em Osaka, onde filmes estrangeiros esquecidos, incluindo uma extremamente rara cópia da ‘Madame Butterfly’ de 1915, são exibidos perante um público entusiasta.

28 de janeiro de 2006 às 00:00

Poucos estão igualmente bem preparados para historiar a forma como Hollywood olhou uma cultura tão distinta e peculiar. Um olhar que mudou de expressão várias vezes até hoje mas ainda não conseguiu fugir às críticas locais. Basta recordar o título de um artigo da ‘Newsweek Japan’ aquando da estreia de ‘Memórias de uma Gueixa’: “Nihon o goyaku suru Amerika” (basicamente, “Porque a América traduz mal o Japão?”)

Quando Sessue Hayakawa rumou à recém-nascida Meca do Cinema, nos anos 10, conquistou o público com as suas personagens de olhares perturbantes e gestos contidos e tornou-se no rosto de um país cuja imagem, no entanto, não sobreviveria ao ataque a Pearl Harbour. Hollywood aliou-se à propaganda militar, retratando os japoneses como fanáticos cruéis e suicidas que corriam de baioneta em punho aos gritos de “banzai”.

HIROSHIMA

O final da II Guerra Mundial trouxe nova estratégia da parte das forças de ocupação. Nos anos 50, ao mesmo tempo que Akira Kurosawa se tornava conhecido no Ocidente, cineastas como King Vidor e Samuel Fuller abordavam o Japão com olhos complacentes. Eram os efeitos das bombas atómicas, as imagens das vítimas, que pediam redenção. Mas seria um francês, Alain Resnais, a tocar na ferida aberta com ‘Hiroshima, Meu Amor’.

Esta parábola de um romance perdido pode ser transposta à relação entre a indústria de Hollywood e a cultura do Japão, que, nas décadas seguintes, evoluiu entre estereótipos de personalidade – mulheres submissas e homens cómicos –, encantamento pelos samurais, curiosidade com a máfia dos Yakuza e preocupação pela explosão da economia Oriental. Filmes como ‘Chuva Negra’ e ‘Sol Nascente’ são exemplos. Recentemente, tentou--se ir mais fundo na abordagem. ‘O Último Samurai’, com Tom Cruise, sublima o velho código do Bushido, mas não deixa de ser um espectáculo para fazer receita na bilheteira.

‘Memórias de uma Gueixa’ é baseado numa obra escrita por um norte-americano, realizado por outro norte-americano, filmado em estúdios na Califórnia e tem três chinesas nos principais papéis, cujas deficiências no domínio da língua inglesa são notórias… Como os personagens de Bill Murray e Scarlett Johansson, que vagueiam desenquadradas por Tóquio em ‘Lost in Translation’, Hollywood continua a traduzir mal o Japão.

O realizador Rob Marshall defendeu que não fez “um documentário”, mas sim “uma fábula” sobre o mundo das gueixas. Para quem conseguir ultrapassar os maneirismos ocidentais, quer nos diálogos como na acção, e se contentar com uma história convencional de Cinderela, poderá desfrutar do arrebatamento visual sem preconceitos.

Sayuri (Ziyi Zhang) dançando na sua apresentação à sociedade, sob uma dramática luz azul, neve falsa e envolta em belíssimos quimonos, mais parece estar numa cena de ‘Chicago’, o oscarizado musical de Rob Marshall, do que num teatro japonês dos anos 30. Todo o filme é uma estilizada ‘japanização’ de Hollywood, que não disfarça a falta de conteúdo.

A GUEIXA TRADICIONAL

ww Gueixa é, logo à partida, um termo mal compreendido no Ocidente, associado, ao nível do senso comum, à prostituição. Traduzido do japonês, significa ‘pessoa das artes’. Era muito comum nos séculos XVIII e XIX, e ainda existe na actualidade, embora em número restrito. Tradicionalmente, são oriundas de famílias pobres e entregam-se a anos de treino: começam por ser empregadas de limpeza, passam a assistentes de gueixas mais velhas e trabalham para ajudar nos custos da educação. Depois vêm as artes: aprendem a dançar, a tocar instrumentos, a cantar, poesia, literatura, arranjo de flores e a cerimónia do chá. Para entretenimento dos homens.

CRUZAMENTO DE CHINESAS

ww O enredo gira à volta de três mulheres. Para as representar, Rob Marshall escolheu um trio de actrizes orientais – Ziyi Zhang, Michelle Yeoh e Gong Li, todas chinesas – com rostos conhecidos no Ocidente e histórias cruzadas. Zhang deu a conhecer a cara de menina ao Ocidente em ‘O Tigre e o Dragão’, ao lado da veterana Yeoh, e ressurgiu em ‘Herói’ e ‘A Casa dos Punhais Voadores’. Yeoh, que também tem sangue malaio, já era famosa por ter sido ‘Bond girl’. Quanto a Gong Li, foi companheira na vida real do realizador Zhang Yimou (‘Herói’), actual namorado de Ziyi Zhang, que, por sua vez, contracenou com Li em ‘2046’, de Wong Kar Wai. Confuso?

SPIELBERG ESTEVE AQUI

Desde que se tornou um ‘best-seller’ em 1997, a obra de Arthur Golden, um escritor norte-americano nascido e criado em Boston – apesar do êxito estrondoso não voltou a publicar outro romance –, tornou-se fruto apetecido pelos realizadores. E o mais poderoso, Steven Spielberg, agarrou o projecto. Trabalhou no argumento com Ronald Bass e foi ao Japão procurar locais de filmagem, mas, pouco antes de iniciar a realização, em 2000, virou-se para ‘A.I. Inteligência Artificial’ e seguiu em frente com ‘Relatório Minoritário’ e ‘Apanha-me Se Puderes’. Os produtores não esperaram e decidiram-se por Rob Marshall após verem ‘Chicago’.

Título original: ‘Memoirs of a Gueisha’ (EUA)

Distribuidor: Columbia/DreamWorks

Realizador: Rob Marshall (foto)

Argumento: Robin Swicord, baseado na obra de Arthur Golden

Intérpretes: Ziyi Zhang (Sayuri), Gong Li (Hatsumomo), Michelle Yeoh (Mameha), Ken Watanabe (Charmain)

Os riquexós utilizados são os mesmos de ‘O Último Samurai’ (2003). Foram-lhes acrescentados ornamentos para os adaptar à época retratada.

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