O corpo de Amália Rodrigues deixou-nos faz este domingo precisamente 20 anos, mas a sua voz – e a sua alma – continuam presentes na nossa vida coletiva.
A cantora que mudou a História do Fado em Portugal e que o elevou, definitivamente, à categoria de grande arte, fazendo-se aplaudir em todos os cantos do Mundo, inspira um ciclo de atividades em sua homenagem que incluem concertos, duas exposições itinerantes, uma grande gala e uma emissão especial de selos. Tudo com a coordenação da Fundação Amália Rodrigues, que tem como missão preservar a memória da artista.
Enquanto o espetáculo ‘Amar Amália’ continua em digressão (passa em novembro pelo Multiusos de Guimarães e pelo Pavilhão Rosa Mota, no Porto, depois de uma passagem, ontem, pela Altice Arena, em Lisboa), no dia 12 (sábado) haverá visitas à casa de férias de Amália, seguida de uma missa campal cantada e da projeção do filme ‘Amália’, no Centro Sociocultural do Brejão.
Em janeiro (a 14), será inaugurada uma grande exposição evocativa da fadista no Centro Colombo, em Lisboa – uma mostra que posteriormente deverá passar por outros centros comerciais do grupo Sonae.
Em 2020 haverá ainda outra exposição dedicada à diva, que vai mostrar "uma Amália menos vista, a pessoa que toda a gente conhece mas ainda tem segredos para todas as pessoas", garante Rui Órfão.
Uma das iniciativas mais aguardadas é, ainda, a emissão de selos dedicada a Amália Rodrigues, que será concretizada em parceria com os CTT. A fundação prevê ainda disponibilizar merchandising: um relógio, um vinho e uma coleção de óculos de sol.
Viva nos nossos corações
Vinte anos após a sua morte, a vida e a obra de Amália Rodrigues continuam a inspirar outros artistas e além dos muitos discos de tributo a que já deu azo há artistas de outras áreas que têm dedicado o seu tempo a evocar o talento da maior fadista portuguesa, cujo corpo descansa no Panteão Nacional, ao lado de Almeida Garrett, Sidónio Pais e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Filipe La Féria fez um musical em sua honra, os artista
s urbanos Vhils e Sérgio Odeith decoraram cidades com a imagem da cantora. Entretanto, o Ministério da Cultura criou um grupo de trabalho – presidido pelo musicólogo Rui Vieira Nery – e encarregou-o de elaborar um "programa adequado à evocação de Amália Rodrigues no âmbito do centenário do seu nascimento", que se assinala precisamente no dia 1 de julho de 2020.
DepoimentosAntónio Manuel Ribeiro, vocalista dos UHF
-Cresci numa casa onde se ouvia o fado, Amália, Hermínia, Tony de Matos, e também o Mário Lanza, do que me recordo.

O meu pai adorava cantar, era tenor, e integrava o Orfeão da Academia Almadense. Por vezes, ia com ele a saraus. Mas também cantava na igreja e eu aprendi com ele a colocar a voz. Em casa tínhamos um pequeno giradiscos e havia muitos EPs, vinis com quatro canções, duas de cada lado.
Comecei a ouvir a Amália no rádio e nesses pequenos discos que rodavam e enchiam a casa de música.
Tenho uma história muito engraçada com a Amália. Estávamos a gravar nos estúdios da editora Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, com o técnico Hugo Ribeiro, o único com quem a Amália gravava. E havia uma regra para a sessão da tarde.
Ela andava a gravar coisas novas, chegava normalmente ao cair da noite, e para tanto nós tínhamos que libertar o estúdio aí pelas 18 horas. Sem problema. Mas houve um dia que a nossa diva chegou mais cedo, eu estava no meio do enorme estúdio a gravar, era impossível perceber à distância o que acontecia por detrás do aquário, nome que dávamos ao vidro que nos separava da régie.
Ela entrou, o Hugo ficou aflito, os outros músicos dos UHF congelados e eu a pedir instruções à cabine. A sessão durou mais uns minutos, gravei a voz da canção e quando entrei na sala deparei com um séquito à volta da Amália.
Contaram-me depois que ela impediu que interrompessem a mi
nha gravação desabafando para o Hugo Ribeiro qualquer coisa como isto: Não é a minha música, mas este rapaz tem qualquer coisa que nos toca cá dentro. Guadarei para sempre esse momento.
O maior legado da Amália é a sua voz/corpo/alma, algo que não se explica, que se ouve e arrepia. Há umas semanas, a Antena 1 convidou 20 intérpretes para fazer ao seu jeito versões de 20 fados dela, agora que passamos o vigésimo aniversário do seu desaparecimento físico. Escolhi 'Povo Que lavas no Rio' e quando fui rever a sua interpretação assustei-me com o impacto do desempenho, voz, poema e melodia.
Além fronteiras, como por exemplo no Japão, onde tinha um mercad
o discográfico forte e seguro, pouco importava ninguém perceber patavina de português: a sua voz tocava quem a ouvia e até canções popularuchas ganhavam outro estatuto na sua interpretação.
O meu fado obrigatório é 'Povo Que Lavas no Rio', só depois é que percebi no sarilho em que me meti. Foi a pensar nela, e no meu pai, que o gravei.
"A sua voz/corpo/alma é algo que não se explica"
Marco Paulo, cantor"Havia nela qualquer coisa de intocável"
- A primeira vez que ouvi Amália, era muito miúdo. Coincidiu com a altura em que apareceu a televisão. Recordo-me que vê-la foi qualquer coisa de mágico e
emocionante.
A maneira como ela se apresentava e a voz brilhante com que cantava, fazia-me acreditar que ela não era uma pessoa igual a nós. Havia nela qualquer coisa de intocável.
Quando eu sabia que a Amália ia cantar à televisão, ficava petrificado em frente ao ecrã, agarrado às expressões dela, à voz e aos fados. Nessa altura ainda não me passava pela cabeça que um dia viesse a ser amigo da Amália ou a cantar os seus fados.
Conhecia-a no solar do Vinho do Porto, no Bairro Alto, no lançamento de um disco dela para o qual eu fui convidado. Estava eu no começo da minha carreira, mas nasceu ali uma amizade de respeito e admiração. Pelos aniversários, enviava-lhe sempre um ramo de flores.
A Amália, foi e continuará a ser o meu grande ídolo, a minha grande referência. Ela irá sempre prepetuar-se. Aliás, para mim Amália não morreu porque ela continua a ser única no mundo. Portugal foi privilegiado por ter tido uma das vozes mais grandiosas do mundo.
Ao longo da vida, gravei três fados dela, o 'Amália', 'O Grito' e mais recentemente o 'Com que Voz'. Para mim são os seus fados mais representativos.
Cuca Roseta, fadista
"Herança imensa à nova geração de fadistas"
-Nunca ouvi a Amália ao vivo, infelizmente, mas ouvia a Amália pela cidade e pelas notícias. Era uma personalidade respeitada quando eu era nova.
Sempre me despertou enorme curiosidade. Ela deixou uma imensa herança à nova geração de fadistas, tornando-se umas das maiores embaixadoras de sempre do País.
O fado tornou-se património imaterial da humanidade, sem dúvida porque ela deu lá fora o primeiro passo. Não era só a voz e a pessoa, era um conjunto de muitas coisas difíceis de se ter que de repente encaixam na perfeição como um puzzle desenhado pelo divino.
Por exemplo, a inteligência, a sensibilidade, a coragem, o bom gosto, a escolha dos músicos, a escolha do repertório, a escolha dos poemas e dos poetas, dos compositores, a coragem, a personalidade forte, a poeta.
São muitas peças e ela tinha todas!
Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell"Os seus versos de mulher esmagam-nos"
-Vi a Amália ao vivo uma só vez na Aula Magna. Já metaleiro. Nunca a conheci pessoalmente mas a minha avó lavava o chão da casa a trautear a 'Formiga Bossa Nova'.
Foi a primeira vez que ouvi a Amália. Depois calhou-me a mim cantá-la no projecto Hoje. Curioso. O seu maior legado para mim é a minha família pois conheci a minha mulher numa homenagem à Amália. A Dona Amália é a madrinha espiritual do meu filho e do meu casamento.
Para quem não sabe, a Amália era poeta publicada. Os seus versos de mulher esmagam-nos. Cantados por si são obrigatórios.
'O Medo', 'o Grito', aí se vê uma alma única e Portuguesa, para o bem e para o mal, haja o que houver.
Mísia, cantora"Tinha inteligência e conhecimento da mágoa"
-Não consigo localizar no tempo a primeira vez que ouvi Amália, certamente num vinil, na infância, na minha casa do Porto, onde morávamos a minha mãe, a minha avó de Barcelona e eu.
Elas que eram artistas, foram as que me mostraram Amália, não a minha família portuguesa que não gostava de fado. O seu maior legado é a liberdade e independência do seu critério artístico, o que permitiu a construção de uma nova tradição, que gerou o fado que hoje se canta.
Na minha opinião ela tinha uma inteligência, uma intuição e um conhecimento pessoal da mágoa, que por sua vez alimentavam uma voz superlativa. Ela tinha tudo e por isso tinha também uma dicção inteligente. Por essa razão, os nossos maiores poetas lhe confiaram as suas palavras.
Eu tinha uma enorme timidez em relação a conhecer a grande Amália, não queria dirigir-me a ela, no meio da corte que naturalmente a rodeava. Procurava a melhor situação.
Mas um dia, inesperadamente, um amigo comum apresentou-nos, o mesmo que me contou que quando eu aparecia na televisão ela dizia: ao menos esta não imita ninguém.
Então nessa apresentação eu balbuciei: "Amália desculpe, eu até hoje nunca a fui cumprimentar a sua casa por timidez".
E ela respondeu: por timidez ou por altivez? (dizia-se tanta coisa de mim naquele tempo!). Depois, mudando de conversa, ela queixou-se do calor e como eu tinha um leque disse-lhe enquanto o usava: "Ó Amália (já sem nenhuma timidez) mas então se eu fosse altiva estava para aqui a abaná-la?" E ela riu-se. Ficou tudo esclarecido. Soube depois que ela sussurrou ao meu amigo: Afinal ela é muito simpática!
É difícil escolher um fado obrigatório para ficar a conhecer a Amália, mas talvez escolha o 'Com que Voz', de Camões e Alain Oulmain. Quem pode fazer melhor?