A prova maior entre marido e mulher
Foram quatro anos à espera de um rim, que nunca veio. Até que a lei mudou e permitiu a doação entre pessoas sem relação de consanguinidade. Maria não hesitou e doou um rim a manuel, o seu marido. Esta é a sua história.
A data ficou-lhe gravada na memória: 14 de Maio de 2005. Foi a partir desse dia que a vida de Manuel passou a estar dependente de uma máquina. Durante quatro anos, todas as terças, quintas e sábados, Manuel foi obrigado a cumprir o ritual: passava quatro horas, numa clínica de Abrantes, ligado a uma máquina de hemodiálise que lhe depurava o sangue, o que o impedia de morrer. Mas que, por outro lado, também o impedia de viver, de levar uma vida normal. 'Depois da primeira diálise disse: ‘Já não estou inchado, já estou bom, já posso ir para casa!’ Alguma vez achava que ia ter de fazer isto?!'
‘Isto’ é o transplante que Manuel Nunes, de 53 anos de idade, vai fazer daqui a menos de 24 horas – e a única possibilidade que tem de voltar a levar uma vida o mais perto possível do que tinha antes de ser um dos 14 mil portugueses que sofrem de insuficiência renal crónica. 'Vai correr tudo bem!', diz quem lhe vai doar um dos seus rins: a mulher, Maria de Fátima Fernandes, de 51 anos. Apesar do discurso optimista, o nervosismo dos dois é impossível de disfarçar e nos dois rostos mora um ar apreensivo: 'Ele está com medo. Por mim...'
Foi num programa das manhãs da TV que Maria de Fátima soube da mudança da legislação, que passou a permitir a doação de órgãos entre pessoas sem relação de consanguinidade. No pequeno ecrã, uma professora, também insuficiente renal, contava o acto de amor do marido, que não hesitou em doar-lhe um rim assim que a lei o permitiu. Foi a 13 de Fevereiro de 2008 e é considerado o primeiro transplante de dador vivo entre pessoas sem relação de consanguinidade em Portugal. Em Dezembro passado, Maria de Fátima correu aos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), uma das duas unidades hospitalares onde o marido estava inscrito à espera de um transplante, e informou-se sobre todo o processo. Ficou marcada uma consulta.
Casados há 32 anos, Manuel e Maria vivem na pequena freguesia de Troviscal, perto da Sertã. Juntamente com o irmão, Manuel geria uma firma de lubrificantes e distribuição de óleos, gás e electrodomésticos. Andou sempre bem, até aos 47 anos. 'A partir daí começaram as tensões altas, os inchaços das mãos, dos braços, dos pés e das pernas. E os desmaios.' No Hospital de Castelo Branco não se achava a causa do problema. Até que um médico conhecido lhe mandou fazer um exame aos rins no Hospital dos Covões, em Coimbra. Descobriu-se o que não se estava à espera: os rins estavam a falhar. Ainda se tentou a recuperação com medicamentos mas já era tarde de mais. A hemodiálise era então a única solução. 'Foi quando me caiu tudo em cima.' Meteu baixa e reformou-se. A empresa ficou a cargo do irmão, depois de fazer uma escritura. A vida nunca mais foi a mesma para este homem, que pegava ao trabalho logo pela manhãzinha e só chegava a casa já depois das 23 horas: 'Gosto de trabalhar. Mas já não tenho aquela força que tinha antigamente. Tinha uma força maluca, mas a partir dali parou...'
Aliás, não foi apenas a vida de Manuel que mudou. Também a família, que esteve sempre ao lado dele, partilhou as dificuldades. 'Quando havia festa fazia-se para todos apenas o que ele podia comer. Só cozidos ou grelhados, e nada de comer frutas', explica a mulher. Para ele, o sacrifício foi grande: 'Sentia falta de tudo. E ela fazia lá uma feijoada! Isto é mau para tudo, até para comer e para beber...'
A mobilidade foi outro aspecto em que a sua vida ficou seriamente afectada. A dependência da máquina de hemodiálise não permite grandes viagens. Para Maria de Fátima, esta parte foi mesmo 'um bocado mais complicada. Podíamos ir a um lado ou a outro, mas não dava. Não é fácil... É raro sair de casa. Para quê? Mas depois começamos a habituar-nos'.
Longa se torna a espera, ainda para mais quando disso depende a vida de alguém. Maria de Fátima avançou logo com a solução: dava-lhe um rim. Mas à data a lei não o permitia. Só em Junho de 2007 uma alteração legislativa veio mudar a situação. Antes a doação só era possível quando entre dador e receptor houvesse um nível de parentesco até ao 3º grau. Sem poder receber um rim da mulher, restou a Manuel inscrever-se para um transplante. E esperar. 'Estava sempre à espera da chamada em que diziam que tinham um rim para mim. Mas a chamada não veio. Passa um ano, passa outro, é muito tempo. É claro que desanimamos. É tudo uma questão de sorte!', desabafa Manuel. Quatro anos e um mês foi quanto esperou. 'Graças a Deus que sou compatível com ele. Então porque não hei--de ajudá-lo a ser feliz?!', refere a mulher.
Maria de Fátima fez as necessárias avaliações cardiológicas e clínicas e exames de compatibilidade. O último passo foi o parecer favorável da Entidade de Verificação da Admissibilidade da Colheita para Transplante (EVA), que controla todos os transplantes feitos a partir de dador vivo – e cujo objectivo é evitar o tráfico de órgãos. Todo o processo demora, em média, dois a três meses.
UM PRESENTE MUITO ESPECIAL
É numa manhã quente de uma segunda-feira de Junho que Manuel Nunes e Maria de Fátima dão, finalmente, entrada no Serviço de Urologia e Transplantação dos HUC, no 7º piso, depois de uma noite em que pouco ou nada dormiram. A acompanhá-los estão o irmão de Manuel e uma das duas filhas. Apesar de ser considerada, efectivamente, uma cirurgia muito segura, o nervosismo é visível. São recebidos por um médico do serviço e a despedida da família é rápida, embora dolorosa, como o provam as lágrimas da filha e os olhos húmidos da mãe.
'Prontos para a guerra?', pergunta uma auxiliar de passagem no corredor, pouco antes de um cirurgião vir conversar com eles sobre a operação. 'Então, já sabe como é que lhe vou retirar o rim?' A resposta hesitante da mulher leva o médico a guiar o casal até uma sala privada, onde lhes explicará de novo todos os procedimentos clínicos aos quais vão ser submetidos. E os riscos, apesar de mínimos, que podem vir a correr. 'A responsabilidade de operar uma pessoa sã e uma doente é completamente diferente. Numa pessoa sã, se algo correr mal, não há como voltar atrás', explica o médico pouco depois.
A manhã é passada em jejum, pois há que voltar a repetir os exames ao sangue. 'Eu estou um bocadinho nervoso', acaba por confessar Manuel. Mas, como diz, 'quem já esperou quatro anos também espera três ou quatro horas!'. De tarde, Maria de Fátima volta a fazer o exame cardiológico e Manuel sujeita-se, se tudo correr bem, às últimas quatro longas horas de hemodiálise, após as quais voltam a tirar-lhe sangue para análises. Ao fim do dia, o grande receio de Maria de Fátima continua a ser a possibilidade de o organismo do marido rejeitar o novo órgão.
A operação tem lugar no dia seguinte. Depois de passarem a noite juntos, num dos quartos duplos do Serviço de Urologia, são transportados para dois blocos operatórios contíguos.
Às 9h30, a primeira equipa médica começa a operar. Vão retirar o rim esquerdo de Maria de Fátima, através de uma cirurgia laparoscópica, método menos invasivo do que a cirurgia normal e que, em Portugal, apenas é utilizado nos HUC. No abdómen, são feitos três furos, nos quais são colocados dois longos e finos braços de metal que o cirurgião vai utilizar para cortar e desviar os tecidos necessários para chegar ao rim. O terceiro furo, situado no meio dos outros dois, é apenas utilizado para inserir uma pequena câmara de vídeo, que é manejada por um segundo cirurgião. Grande parte da operação é visualizada através de um ecrã. Cerca de hora e meia depois, o médico alcança o rim. Na sala ao lado, a outra equipa coloca-se a postos. É agora 'a parte de maior ansiedade', confessa o cirurgião, que vai interromper a irrigação de sangue ao rim através da colocação de uns agrafos especiais, feitos de titânio, na veia e na artéria do órgão. Logo de seguida, é feita uma pequena incisão abaixo da cintura, através da qual é inserido um saco especial onde o rim é acomodado e retirado. Nesta fase, toda a rapidez é necessária e todo o tempo gasto é contabilizado. 'Três minutos e 55 segundos', dispara alguém da equipa. 'Já fizemos melhor!'
Já cá fora, o rim é metido numa pequena bacia metálica com gelo esterilizado e é limpo com soro. Só depois de concluído este passo é que é levado para a sala ao lado, onde Manuel Nunes já foi aberto. A inserção do rim na fossa ilíaca, pelo cirurgião Alfredo Mota, vai demorar mais hora e meia. Há que voltar a ligar a artéria, a veia e o uréter do rim ao novo dono.
Já passa da uma hora da tarde quando o casal sai do bloco. A operação correu bem. Maria de Fátima Fernandes acaba por sair ao fim de três dias, enquanto o marido, Manuel, terá de permanecer mais algum tempo. Habituado a realizar transplantes – mais de quatrocentos –, Alfredo Mota só espera agora que os seus pacientes tenham a noção de que 'um rim não é um direito. É um privilégio, um totoloto, um euromilhões, e um presente muito especial de que é preciso cuidar muitíssimo bem'.
REGISTO DE NÃO DADORES
Segundo a legislação portuguesa, somos todos potenciais dadores de órgãos e tecidos em caso de morte. Para não se ser dador é necessária a inscrição numa base de dados específica, o Registo Nacional de Não Dadores. Este registo é electrónico e é sempre consultado pela unidade hospitalar aonde chega um cadáver. Cerca de 35 mil portugueses estão inscritos, segundo os últimos dados.
TRANSPLANTE CUSTA 250 MIL EUROS
O custo de um transplante renal, só no primeiro ano, ronda, segundo Alfredo Mota, especialista dos HUC, os 250 mil euros, suportados pelo Serviço Nacional de Saúde. Por isso se insurge contra os que não cumprem as medidas terapêuticas com rigor, acabando por perder o rim: 'A taxa de doentes que não cumprem é muito elevada, cerca de 25 por cento.'
'ESTAMOS NO LIMITE DE DADORES CADÁVER'
Alfredo Mota, de 62 anos,é director do Serviço de Urologia e Transplantação Renal dos HUC. Já fez mais de 400 transplantes
- Quais os riscos que comporta este tipo de intervenção cirurgica?
- O risco de vida que corre um dador é idêntico ao risco que corre um indivíduo que tem de conduzir o seu automóvel vinte quilómetros por dia a caminho do emprego. O que quer dizer que em termos percentuais, contabiliza-se em 0,03 por cento o risco de um dador morrer numa operação destas.
- Há muitas pessoas à espera de um rim?
- Há. Temos cerca de 1500 doentes no País à espera de receber um rim e só são transplantados à volta de 500 por ano. Há mais doentes à espera do que rins para transplante. É um processo que não vejo maneira de resolver, porque estamos no limite de dadores cadáver. Já estamos a transplantar rins de dadores com 80 anos, algo impensável há alguns anos. Não são os melhores mas é o que há.
- Qual é o tempo de espera médio?
- Três e meio a quatro anos é a média neste momento. Durante este tempo, os doentes têm de fazer o tratamento de diálise para não morrerem.
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