A Comporta antes de estar na moda
Numa altura em que a herdade vai voltar a mudar de mãos, recuámos aos anos 50, quando ninguém brincava aos pobrezinhos.
Eram homens e mulheres debruçados sobre os arrozais de sol a sol – diz até que foi à sombra desta cultura, e das gentes que ali se instalaram à custa de um trabalho sempre certo, que se fez a Comporta, (ainda) a maior propriedade nacional nas mãos de privados, onde cabe uma Lisboa e meia. Eram homens, mulheres e também crianças, que acabando a 4ª classe ou nem isso tinham no arrozal um dos destinos. De um lado, os campos onde trabalhavam, do outro, o sapal e o rio, depois Setúbal. Estradas não havia, os caminhos eram de pó e poeira, e em lugar das casas como hoje as conhecemos havia cabanas de caniço e colmo, com colchões de palha enchidos todos os anos pela mesma altura, para amortecer a noite depois de uma jornada dura.
Se este ‘postal’ tivesse data seria a do final dos anos cinquenta, pouco depois da Herdade da Comporta ter sido comprada (em 1955) pela família Espírito Santo à inglesa Atlantic Company. Está agora, 60 anos depois, novamente no ‘mercado’. O fundo de investimento que concentra os principais ativos imobiliários e de desenvolvimento turístico da Herdade da Comporta já está à venda. Investidores chineses e norte-americanos são os potencias compradores.
O avio na cantina
"Naquele tempo, a herdade era um mundo isolado, era como uma ilha onde existia toda uma economia de subsistência, com uma estratificação social muito grande. Tudo girava à volta dos patrões. Por exemplo, os habitantes daquele tempo tinham uma chapinha com o nome e quando iam à cantina (o supermercado dos dias de hoje) esse avio era assente num livro. E quando recebiam o ordenado era-lhes retirado esse dinheiro das compras, não se podiam esticar muito senão já não recebiam nada. Era tudo controlado, mas, por outro lado, tinham a parteira, a professora, o padre, a costureira, funcionava como uma sociedade em ponto pequeno", explica a investigadora Ana Duarte, programadora do Museu do Arroz.
"Quando chegávamos a casa da escola, no verão, já íamos meio despidos de tanto subir e descer, monte acima e monte abaixo. A primeira estrada foi feita já eu tinha os meus 14 anos", recorda Dina Coelho, hoje com 56 anos, a maioria deles na Comporta.
"E quando estava a chover íamos a um celeiro onde estava um funcionário da herdade, que nos emprestava uma saca de arroz para pormos pelas costas para não nos molharmos. Ao outro dia tínhamos de a ir entregar", lembra Fernando João, 65 anos de vida para contar naquela terra. "Os meus pais trabalhavam no campo, os horários primeiro eram de sol a sol, desde que nascia até que desaparecia, depois, quando veio o horário das oito horas, as coisas ficaram melhores. Antes disso havia uma escravidão, era preciso obedecer a quem mandava, senão as pessoas eram espezinhadas", acrescenta. E todas as semanas, à quinta-feira era dia de pagamento, filas de trabalhadores a receber o dinheiro do trabalho da semana. Tal como a mãe, também Dina chegou a trabalhar no arroz, "Era fazer tudo, desde as mondas, arranjar a terra e as valas, semear, queimar a palha depois da apanha. O meu pai era o jardineiro e tratador de cães dos Espírito Santo, não se queixava deles. Os capatazes é que eram os maus da fita, tinham poder a mais e exploravam as pessoas. A minha mãe conta que eu nasci com problemas e os senhores deram muito apoio de transporte para me levar para os tratamentos. E tinham uma costureira a trabalhar para eles que fazia camisolas para a gente. Para os mais necessitados fazia uma muda inteira", conta Dina.
Os poucos que se lembram de como era a herdade no tempo dos ingleses dizem, por isso, que apesar da dureza da vida, os Espírito Santo não eram tão difíceis como os ingleses que os antecederam. "Eram muito rigorosos, um dos últimos diretores ingleses era casado com uma polaca e quando ela ia de cavalo passear para a praia, ninguém podia estar na praia na mesma altura. E se algum trabalhador cometia o erro de namoriscar, sendo casado, uma outra mulher, era posto na extrema, a parte final da herdade, de castigo. Havia camionetas onde a polaca levava os trabalhadores a Fátima e se eles não fossem, sofriam retaliações de certeza. Por outro lado, havia elementos Espírito Santo que foram extraordinariamente interessantes, por isso não é de estranhar a ‘preferência’. Manuel Ricardo Espírito Santo teve, por exemplo, a ideia de ceder talhões aos habitantes da aldeia para eles poderem produzir o seu prato de arroz, o que agradou bastante", conta Ana Duarte.
Uma coisa aproximava os ‘ingleses’ dos ‘Espírito Santo’: "um conhecimento de tudo o que havia de mais moderno. Assim se explica que nos anos cinquenta os habitantes da ‘ilha’ da Comporta já tinham acesso a cinema, onde podiam trocar beijos e por isso era uma animação", continua a investigadora. As festas do São João eram as mais aguardadas. "Pagavam a artistas para virem atuar, enfeitavam o celeiro com balões e faziam o baile, era quando a gente estreava roupa", recorda Graciete, que tem tantos anos de vida como a aquisição da Comporta pela família Espírito Santo – uma terra construída à custa de gente simples que nos últimos anos ganhou o título de paraíso eco-chique, longe dos arrozais e dos sapais, perto das praias e dos restaurantes da moda.
Casas "a sério"
"Nós vivíamos numa cabanita de mato que só tinha um quarto de duas camas onde eu dormia mais o meu irmão e os meus pais", recorda Graciete – um modelo de habitação entretanto recuperado como casa de férias para "brincar aos pobrezinhos", frase polémica de uma das Espírito Santo ao ‘Expresso’ no verão de 2013.
"Não tínhamos água em casa, primeiro íamos ao poço, depois puseram umas torneiras na rua. Pegávamos na roupa e íamos lavar aqui rente à estrada de alcatrão que vai de Troia para Grândola, os Espírito Santo fizeram uns tanques grandes onde se podia lavar a roupa", lembra também Graciete, cujo pai, Joaquim, guardava durante a semana o gado dos patrões. "Davam-lhe uma manta e ele dormia ao relento, junto ao gado. A minha mãe trabalhava no rancho, a carregar o arroz. Lembro-me da minha mãe fazer um buraco na terra, que era o chão da nossa casa, para tirar a areia mais amarelinha, para espalhar e dar aspeto de que tinha sido limpa. Depois, começaram a construir umas casas ‘a sério’ e a atribuir aos trabalhadores deles, primeiro aos das oficinas." "Tinham um estatuto económico melhor porque eram eles que garantiam o funcionamento da herdade", confere a investigadora do Museu do Arroz.
Os bairros novos – ainda hoje chamados bairro da GNR e da Baixa – não foram bem vistos por todos, apesar das casas serem de pedra e cal e, a pouco e pouco, terem chegado para todos. "Tiraram as pessoas das barraquitas mas pelo menos as cabanas eram da gente, podiam ser fracas mas não eram emprestadas", critica Fernando João, que ali nasceu e cresceu.
Além das gentes que por lá viviam (e trabalhavam) todo o ano, a Herdade da Comporta recebia ‘ranchos’ de fora, maioritariamente em junho e em setembro, à procura do sustento que não encontravam nas terras de origem .
O historiador João Madeira escreveu que eram "algarvios de fala cantada, vindos da serra e das aldeias pobres da costa sudoeste; ‘ratinhos’ e ‘caramelos’ de entoações rumorosas vindos da dureza da montanha; mas também gente de mais perto, camponeses sem terra das periferias de Alcácer; filhos e filhas de pequenos agricultores das freguesias serranas de Santiago do Cacém, mulheres de pescadores da costa de Santo André tornadas mondinas e ceifeiras". Ficavam alojados em barracões com várias camas, todas a eito, separadas umas das outras por cortinas ou malas. Por ali não trabalhavam apenas: dançavam, namoriscavam e ainda se banhavam no mar da Comporta, talvez o único bem que será impossível vender.
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