ADEUS CAPITÃO

A bola sobe e desce e o mundo já mudou. O guarda-redes treina sozinho à entrada da grande área, os que faltam estão a meio-campo, em círculo, escutam o homem ao centro. O número 4 não vai voltar ao campo. A equipa perdeu o capitão, Norberto nunca mais será convocado: foi morto à facada

28 de novembro de 2004 às 00:00
ADEUS CAPITÃO Foto: Marta Vitorino
Partilhar

Falta aqui um, pois falta”. A folha da convocatória chega para escrever 16 nomes, mas não chega para todos os sentimentos de uma equipa que não sabe o que pensar. Há choro no balneário, saudade nas palavras e um cartão colado na parede. O primeiro treino do Outorela Futebol Clube depois do crime que tirou a vida a Norberto Dias, o rapaz de 17 anos assassinado à facada na Amadora há duas semanas, é na noite do velório. Estão lá todos, menos um. “Falta o capitão”, repete o treinador João ‘Pulga’ Boaventura.

O guarda-redes volta a chutar a bola para o céu. A noite está fria, a equipa corre devagar à volta do campo, como se tentasse parar o tempo. O treinador corre mais depressa, anda de um lado para o outro, anda dentro e fora do balneário. “Vamos agora colocar uma coroa de flores e a nossa bandeira junto ao caixão”, explica ‘Pulga’, enquanto apressa dois petizes equipados com o verde e branco da equipa de Carnaxide. A tremer de frio, os miúdos sobem a escada, entram no carro e alguém arranca.

Pub

É a última noite de Norberto Dias, e à hora do telejornal há centenas de jovens a caminho da Igreja de Nossa Senhora do Cabo, em Linda-a-Velha. Vestem calças largas, ténis, camisolas com capuz e avançam em silêncio vindos de todos os lados. Passam-se minutos e alguns saem a chorar. Os amigos hesitam, param, olham para trás e voltam a andar. Desaparecem nas ruas de candeeiros amarelos. Continuam calados. A noite está fria. Norberto está morto.

O crime – cujas ondas de choque abalaram uma família, um bairro, uma equipa e a Escola Secundária Azevedo Neves, na Damaia – ocorreu na segunda-feira ao final da tarde, dia 15 de Novembro. Norberto Dias saiu de casa com o irmão mais velho, Ricardo, ao encontro de uma amiga a quem, há uns meses, tinha emprestado um telemóvel. Entraram no carro às 19h00 e seguiram para a Amadora. À chegada, Ricardo não terá gostado de ver a rapariga acompanhada de quatro jovens e insistiu com o irmão para que não ficassem.

Norberto não quis e não partiram. Ficaram. Dois de um lado, quatro do outro, no centro da Amadora, com um telefone a separá-los. A Polícia Judiciária confirmou, apenas três dias depois do crime, que a morte de Norberto Dias foi motivada por uma desavença relacionada com um telemóvel. A faca responsável pelos dois golpes fatais – um nos pulmões, outro nos rins – tinha 20 centímetros de lâmina. O rapaz que a usou, estrangeiro, tinha 21 anos e tentou fugir quando a PJ o prendeu, na Margem Sul. Norberto morreu no hospital, trinta e nove minutos depois de sair de casa.

Pub

JUNTO AO OMBRO

A braçadeira de capitão ficou junto ao ombro no caixão. As flores que os petizes arrepiados levaram estão com todas as outras. A bandeira da equipa verde-e-branca de Carnaxide também lá está. Para que não se esqueça o jogador. “Era muito humilde e com grande visão de jogo”, recorda João Gaspar, que partilhava a idade e, por vezes, o centro da defesa com Norberto. “Era um jogador com grande espírito de equipa”, acrescenta. Falta dizer que era bom no jogo aéreo e precioso nos cantos.

O treinador, João ‘Pulga’, também não poupa elogios a Norberto. O jovem era uma garantia para equipa que, neste momento, ocupa o nono lugar da II. ª Divisão Distrital de Lisboa. Ao 1,80 m de altura, juntava a cultura táctica e o domínio de bola que o tornavam numa das estrelas do Outorela. “Era um verdadeiro patrão da defesa”, garante Pulga. Norberto nasceu portista, mas sonhava com o Benfica. “Nós sabíamos que havia aí ‘olheiros’ dos grandes.”

Pub

Os juniores vão entrando no balneário. O irmão de Norberto chegou há pouco. Um rapaz de calções e camisola branca aperta-lhe a mão e baixa os olhos vermelhos. Depois vem outro, mais um. Pequenos e grande. E vão ficar por ali depois de Ricardo ter saído, alguns a chorar, outros a pensar. “Era um rapaz impecável. Sempre que um colega precisava de ajuda, era o primeiro a oferecer-se”, recorda Pedro, um trinco que joga descaído para o lado direito. “Tão humilde, tão disponível...”

ESTRELA NO ESTRELA

Há pouco tempo Norberto esteve prestes a trocar o verde-e-branco de Carnaxide pelo verde-e-vermelho da Amadora. “Esteve quase a ir para o Estrela da Amadora, mas a transferência implicava que ele deixasse de estudar e se dedicasse a tempo inteiro. Ele preferiu ficar, ele sempre quis ser doutor”, revela João ‘Pulga’. Os colegas da Escola Secundária Azevedo Neves, na Damaia, teclaram na Internet uma homenagem ao jovem aluno do 11.º ano. “Disponível”, “bom companheiro”, “bem comportado”, estão lá todos os adjectivos, que os amigos do bairro subscrevem. “Não era pessoa de se meter em problemas, nunca.”

Pub

Norberto jogava como vivia. Estava há quatro épocas no Outorela Futebol Clube e mantinha uma folha quase limpa de sanções disciplinares. Apesar de ser capitão, de falar com os árbitros, de ser defesa central e de ter pela frente os juniores mais temidos dos pelados de Lisboa. “Nunca viu qualquer cartão. Só no último jogo”, diz o treinador. A equipa não esteve bem, perdeu 4-1 com o Bobadelense e Norberto foi expulso por protestar. “Mal expulso, digo-lhe já. Só disse ao árbitro que tinha sido empurrado e caído em cima do guarda-redes. O que era verdade.”

A bola sobe e desce e a vida já mudou. A memória é um cartão da Associação de Futebol de Lisboa colado num armário do Outorela Futebol Clube. O guarda-redes está na grande área, os outros no centro do campo. Por vontade do treinador, a camisola número 4 nunca será usada no clube. ‘Pulga’ fala depressa, depois devagar. Está perdido nas suas próprias emoções. “Agora... agora isto vai ser tudo diferente...”. A folha da convocatória tem 16 nomes, mas ainda falta um. Que não voltará a ser escrito.

O Outorela Futebol Clube nasceu em 1890 e, apesar das dificuldades, arrisca-se a ser uma das colectividades mais antigas de Portugal. João ‘Pulga’ anda pelos pelados a treinar miúdos há 25 anos. “Faço-o por carolice, porque gosto disto”. O seu amor ao futebol, e o tempo que dá ao clube ajudam centenas de jovens das redondezas a manter contacto com a prática desportiva. Equipam de verde e branco e jogam em casa, em Carnaxide.

Pub

É a vontade de uma equipa que não esquece o seu capitão. “Até ao fim da época vamos tentar ganhar. Era isso que ele queria”, assegura Pedro Ricardo. Há uma semana, o Outorela recebeu a Sanjoanense e não começou da melhor maneira, perdendo por 3-2. Esta semana, a jogar fora, os juniores do verde-e-branco prometem levar o espírito do capitão até à Póvoa de Santa Iria.

Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?

Envie para geral@cmjornal.pt

Partilhar