"É sobre o abuso de quem tem sobre quem nada tem", diz Sérgio Tréfaut
Realizador habitual de documentários regressa com a adaptação do livro de Manuel da Fonseca ‘Seara de Vento’.
Manuel da Fonseca escreveu em 1958 ‘Seara de Vento’, o livro que conta um caso real passado no Alentejo dos anos 30 em que um homem entrou na casa de uma família abastada para matar, a tiros de caçadeira, um pai e um filho. O olhar de Sérgio Tréfaut, realizador habitual de documentários, transformou esta mesma história num filme a preto e branco, de muitos silêncios, intitulado ‘Raiva’. Talvez porque, entre outras razões, tal sentimento não precise de grande alarido. Estreia nos cinemas a 31 de outubro.
Porque é que no ecrã o romance de Manuel da Fonseca se passou a chamar ‘Raiva’?
‘Raiva’ é o sentimento que anima a história, que fala de injustiça e de abuso de poder, num momento em que não se pode falar ainda de luta de classes. Há um abuso de pessoas que podem sobre outras que nada podem, e isso gera raiva. O Alentejo dos anos 50, onde Manuel da Fonseca adapta uma história dos anos 30, é um Alentejo em que quem tinha terra mandava.
Como chegou ao livro?
Quando realizava o documentário ‘Alentejo, Alentejo’, sobre o cante alentejano, perguntei a amigos o que poderia ler para compreender melhor a história da região, pois embora tenha realizado vários filmes sobre o Alentejo, o meu pai seja alentejano e eu tenha ido ao Alentejo repetidas vezes, não conhecia um livro que condensasse esta ancestralidade das dificuldades na cara de um camponês, que é uma história de séculos, pois a vida dele foi a do pai dele, a do avô dele.
Depois, quando li o livro, imediatamente vi uma personagem que se destacava: a de Amanda Carrusca, que é uma velha, uma avó que tem toda a força telúrica da terra, mas também tortuosidade, pois bate no neto, e percebi que tinha de ser a Isabel Ruth. Escrevi para alguém que é um monumento da interpretação em Portugal e depois tive de compor o filme inteiro. Havia ainda a personagem fundamental, o eixo do filme, o Palma, para o qual não tinha pensado em ninguém. Num determinado momento, tentei o Javier Bardem. Fui a Madrid, namorei o agente, falei com o Javier e isso demorou muitos meses.
Embora gostassem do guião do filme, que teria de ser falado em inglês ou espanhol, cheguei à conclusão de que o orçamento inteiro do filme não chegaria para os pequenos-almoços do Javier Bardem. Embora existam atores extraordinários em Portugal, sabia que não encontraria alguém que tivesse o perfil e o orgulho, o amor àquela história, que suspeitei que o Hugo Bentes teria. O Bentes, que não é ator profissional, foi o cartaz do ‘Alentejo, Alentejo’ porque exprimia orgulho.
Quando viu o Hugo Bentes naquele papel, se calhar pensou que nem o Javier Bardem teria aquela cara...
Além de extraordinariamente fotogénico, o Hugo tem uma verdade. Na primeira apresentação do filme, o rei dos atores em Portugal, D. Miguel Cintra, disse-lhe: "Tu és o melhor de nós todos."
Como foi filmar no Alentejo?
Foi filmar em casa, foi ter uma colaboração extraordinária dos locais. A história que se chama a ‘Tragédia de Beja’ foi noticiada na época pelos jornais de uma maneira muito forte, contando que um louco tinha entrado em casa de uns senhores para assassinar pai e filho, tendo fugido durante dois dias antes de ser cercado, e que, durante o tiroteio que se seguiu, assassinou ainda o chefe da guarda. A única coisa que os jornais não explicavam era a razão do funeral deste bandido monstruoso ter tido tanta gente a assistir.
A história transformou-se num mito no Alentejo. Quem for à freguesia da Trindade, a um lugar chamado Cantinho da Ribeira, está lá uma placa relativa a isto. Há uma memória coletiva relativa à história, que foi retratada pelo Manuel da Fonseca, mas também pelo José Rodrigues Miguéis em ‘O Pão Não Cai do Céu’. Por isso, as câmaras municipais e as pessoas tiveram uma enorme vontade em colaborar.
Tenho um orgulho sem fim numa cena no cemitério em que os figurantes são mais verdadeiros que os atores. A participação de Beja foi enorme, pois além de cama, mesa e roupa lavada, deram-nos os materiais para construir o monte; que procurámos durante meses. O que encontrávamos estava contaminado com postes de eletricidade, ao lado de alguma autoestrada ou era de dimensões exíguas. Até que uma vez fomos ter com uma das pessoas que nos estava a ajudar. Ele estava a semear grão e nós percebemos que era ali.
Encontraram com certeza pessoas que ainda se relacionavam com aquela realidade?
E não só durante as filmagens. Quando o filme foi apresentado em Beja, no final houve muitas pessoas a chorar, o que para mim é difícil de compreender, pois este é um filme muito seco. Quando, por exemplo, falámos com o comendador Nabeiro, ele disse: "Isso fez parte da minha história pessoal."
Seis dos seus filmes foram rodados no Alentejo. É uma inevitabilidade? O seu pai é Miguel Tavares Rodrigues, que era de Moura…
Eu tenho uma relação com o Alentejo carinhosa. A relação é mais forte quando se filma documentário, por exemplo quando estava nas tabernas a filmar o cante alentejano, acontecia muitas vezes começar a chorar. A dimensão deste filme ultrapassa o Alentejo, é compreensível para um grego, um italiano, um sírio, um arménio. Há uma dimensão mediterrânica. Quando o filme foi apresentado em Moscovo, houve um sírio louco que disse: "Mas isto é a Síria..."
O que é que o seu pai lhe disse quando soube que ia fazer este filme?
O meu pai leu o guião várias vezes. Ele gostava muito do livro e conheceu o Manuel da Fonseca; eu próprio conheci o Manuel da Fonseca quando devia ter uns 12 anos. Ele era um fanfarrão simpático, com arte para contar histórias, que passava pelas redações - e eu também lá ia porque o meu pai era jornalista.
O meu pai já tinha ficado tocado quando fiz o ‘Alentejo, Alentejo’. Este filme foi marcado por duas mortes, a do Nicolau Breyner, na véspera das filmagens, e a do meu pai, pouco depois da montagem. Sempre que havia uma projeção, dizia-lhe "ainda não" e por isso, acabou por nunca ver o filme. Eu fiquei com um sentimento de dor por ele não ter visto aquilo porque tanto esperava. Dediquei o filme ao meu pai.
Ele relacionava-se com aquela realidade...
O meu pai escreveu sobre a sua infância em Moura. Ele era filho de famílias burguesas - pai alentejano e mãe beirã - o pai dele foi chefe de gabinete de Afonso Costa, ajudou a implantar a República, foi diretor de um jornal republicano e depois tornou-se salazarista e assim por diante. O meu pai cresceu com uma consciência das diferenças sociais, viveu os seus primeiros dez anos numa quinta. Só mais tarde tomou consciência política e se tornou num militante comunista no Brasil, para onde foi em confronto com a ditadura em Portugal. Fecharam o jornal ‘Diário Ilustrado’, no qual trabalhava. Ele foi um dos comandantes do assalto ao Santa Maria. Ele era uma pessoa ‘non grata’ em Portugal, País a que regressou depois do 25 de abril para se transformar num defensor acérrimo da reforma agrária, que tem tudo a ver com este romance.
O seu pai era militante do PCP e do partido comunista brasileiro, foi jornalista, escritor, deputado e pensador. Quando percebeu quem ele era?
Perceber quem são os pais... O meu pai morreu faz um ano. As imagens que fazemos dos nossos pais não são uma coisa... Nós sempre tivemos uma relação de carinho muito forte, mas entendê-lo era muito difícil. Apesar de ser visto por alguma ‘intelligentsia’ em Portugal como um estalinista, se foi coisa que nunca lhe faltou foi liberdade de espírito. Mas era uma pessoa muito contraditória. Por exemplo quando apoiava as FARC. Eu nunca tive militância política, por isso, para mim, o que caracterizava em primeiro lugar o meu pai era ser um romântico, no sentido, de alguém que dizia "se for necessário pegar em armas, eu pego". Os ídolos dele eram gente como o Simón Bolívar. Tinha o universo da dimensão romântica da transformação do Mundo, a distribuição da pobreza e da riqueza.
Qual foi o legado que ele lhe deixou em termos de formação pessoal?
Um pai é uma figura da qual nos aproximamos e distanciamos. Não sei responder. Não estou habilitado.
Mas adaptou um romance militante, marcado por "um certo romantismo político" - são palavras suas...
O ‘Seara de Vento’ termina com a frase: "Um homem só não vale nada." Quando Manuel da Fonseca escreve isso nos anos 50, para passar pela censura, o que ele está a dizer é que unidos podemos mudar o Mundo. Quando, em 1985, Manuel da Fonseca faz adaptação para teatro da mesma história, em ‘Casa Cercada’, o texto é militante. As palavras são gritos, que é o contrário do que eu fiz.
O romantismo político, essas causas apaixonadas, ainda é possível nos dias de hoje?
Eu acho que a paixão é possível. As pessoas empenhadas são aquelas que eu quero conhecer. As pessoas apaixonadas são as mais interessantes, mesmo que ‘o mudar o Mundo’ seja a lavar pratos; ou seja, interessam-me as pessoas que têm paixão naquilo que fazem.
A história do legado ideológico não me diz nada. Se há uma coisa em que eu divirjo do meu legado familiar é o facto de achar que ideologia é das palavras mais imundas da história. E que manipulação ideológica é o que está a acontecer no Brasil, para minha grande infelicidade. Os meninos que foram matar pessoas na Síria eram militantes do Daesh e tiveram uma lavagem ideológica.
A religião é também um instrumento para fazer essa lavagem ideológica. O Bolsonaro dizer "peguem nas armas, peguem nas armas" é uma lavagem ideológica. Eu sou conotado por causa daquilo que faço como sendo de esquerda, mas se há criatura a que eu tenho horror é o Che Guevara, que era uma pessoa da manipulação ideológica, que levava as pessoas à morte, que era um monstro sanguinário.
Porque é que acha que é conotado com a esquerda?
Porque quando faço ‘Outro País’, que fala da vontade das pessoas mudarem o Mundo, quando faço ‘Lisboetas’ e luto pela legalização dos estrangeiros que se instalam no País para trabalhar, são causas tradicionais da esquerda e que fazem parte do ideário. Quando me perguntam se sou de esquerda ou de direita respondo que, irremediavelmente, sou de esquerda porque tenho vergonha da esquerda, da direita eu não tenho. Não tenho vergonha daquilo que não sou. Eu nasci no Brasil porque o meu pai fugiu de Portugal. Fui depois para França e voltei para Portugal porque o meu irmão foi quase assassinado pela polícia no Brasil e, então, há essa história, que faz parte de mim.
Como vê a atual situação no Brasil e o facto de Lula da Silva estar preso?
Manipulação ideológica. Houve uma série de governos em que a corrupção existiu com toda a certeza, mas não foi mais do que antes, só foram menos hábeis. As provas contra Lula são ridículas. Há uma vontade política de o destruir. Se há alguém que é impoluto é Dilma. O Sérgio Cabral do PMDB (que está preso), bem como Paulo Maluf, são ricos à custa de corrupção. O enriquecimento de Bolsonaro não é claro. Mas quem disser que impõe a ordem, que os brasileiros tanto esperam, quem tiver o discurso militarista, de salvador da pátria, leva as pessoas ao voto. Foi o que fez judeus votar no Hitler.
"‘Raiva’ fala da impossibilidade de sair de um buraco: falta de dinheiro, falta de comida, falta de casa, falta de estudos." Isto é uma frase sua. O cenário perpetua-se e também no Brasil...
O cenário é o mesmo de sempre. Há pessoas que gostam de contar as histórias exemplares. "Ah, a Margaret Thatcher era pobre, teve uma bolsa, foi quem foi, porque teve vontade", só que a realidade da Thatcher corresponde a muitos zeros um por cento da população. A realidade é que as pessoas que têm a vida tramada continuam a ter a vida tramada.
O facto de as pessoas nascerem e morrerem no "buraco" é o que dá origem às transformações sociais que nos preocupam?
Gera raiva, desconforto. Este filme fala do quão é insuportável o abuso. O Alentejo, passados tantos anos sobre a escrita do ‘Seara de Vento’, ainda é uma terra em desertificação. O problema do trabalho, o problema do jovem que pergunta "o que vou fazer da minha vida" mantém-se, mas de uma maneira diferente.
Ficou com a ideia de que quem visse o filme podia acabar por gostar muito do Palma, o assassino?
Eu espero que quem veja o filme respeite muito o Palma. O próprio ator quando apresentou o filme em Mértola e falou das razões pelas quais se identificava com a personagem, que cometeu os assassinatos, disse: "Eu faria pior."
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