Entre o hábito e o vestido
O mundo hibernou quando o portão abriu. O mosteiro do Imaculado Coração contrasta com o hálito urbano. No número 17 da rua da Estrela há silêncio. Chão lavado. Regras.
Sorrir é o primeiro gesto de Maria José Reis, 49 anos, natural de Câmara de Lobos, Ilha da Madeira, madre superiora, que há 11 anos saiu do claustro madeirense e veio para o de Lisboa.
Na Ordem religiosa onde vivem sete freiras com voto de clausura, as grades, que dantes representavam esse desejo, são inexistentes. “Na corrente franciscana vale o simbolismo”. Entenda-se a metáfora. Todos os caminhos vão dar a Roma, e aqui nem todas as pessoas seguem pelo mesmo atalho. Para chegar à sala das visitas os leigos viram à esquerda. Sobem uma escada. As religiosas as irmãs – seguem à direita. O resto do mapa não se vê. Não importa. Chega-se ao mesmo tempo a uma mesa oval, ampla, de mármore, com a devida assimetria: a visitante senta-se junto à porta e a madre fica do lado cujo acesso se destina às monjas residentes, a elementos do clero, ou em casos excepcionais, médicos e técnicos estão autorizados a transpor a limitação.
Seria impensável, antes de a vida ter dado a volta de um ângulo recto, que a então jovem vestisse o hábito da Santa Clara de Assis.
Maria José foi criada no seio de uma família praticante, frequentou a catequese, ia à missa, mas aos treze anos “isso começou a rarear”. A adolescência desatou a insistir que essa conduta não fazia sentido.
Aos quinze anos, quando eclode o 25 de Abril de 1974, outra revolução, sem cravos e sem tanques, vem afincar as dúvidas: “As ideologias trouxeram novas perguntas e uma nova visão do Mundo”. A novidade, que afigurava a política, teve consequências imediatas: “Eu não praticava a religião e punha em causa a existência de Deus”. Agora parece básico, mas a juventude exigia provas evidentes quanto à presença divina: “Eu não via Deus”. Via a frase de Karl Marx, que lhe assegurava que a Religião é o Ópio do Povo. O filósofo alemão e a corrente da esquerda nacional encarregaram-se de a afastar da doutrina católica.
A ENTRADA NO MUNDO CRISTÃO
“Nunca fui a um comício”, nunca foi dada a aglomerações e, além do mais, o dinheiro escasseava para viagens. A mãe enviuvara, e as economias, a custo, davam para o liceu. Só aos Domingos havia o luxo de ir ao café do bairro, e foi ai, que duas amigas a convidaram para ir a uma reunião na paróquia.
Apesar de 1975 ter sido o ano do acalorado PREC, o bispo Dom Francisco Santana não aterrara na Ilha da Madeira para demagogias. Intentava fundar um movimento de jovens cristãos.
Maria José refutou o convite. Queria desfrutar da liberdade juvenil, mas a insistência das colegas acabou por prevalecer. “Fui por mera cortesia”. No final do encontro foram distribuídas tarefas. Não se lembra qual foi o encargo que lhe calhou, mas recorda a sua reacção: “Se me pedem ajuda não sou capaz de negar”.
Na semana seguinte voltou. E na outra também. Os ideais marxistas-leninistas, que já tinham esmorecido, vão caindo. A madre superiora sempre gostou de reflectir. Nunca aplaudiu o copiar sensações e ideias. “Gosto de saber o que estou a fazer”.
No terceiro Domingo quis perceber a engrenagem. Arruma a obra ‘O Capital’ e os olhos só lêem volumes que falem da figura de Jesus Cristo. Entre os 18 e os 20 anos dá-se a sua caminhada espiritual tendo o Evangelho como epicentro. Após um mini congresso vocacional, iniciativa do bispo, sentiu que seria mais livre e útil se optasse pela dedicação no serviço gratuito. Por outras palavras, “senti o chamamento”. Embora a decisão já estivesse tomada, a letra de uma música terá sido crucial. Decorreram duas décadas, mas Maria José canta-a como se fosse pela primeira vez: “Por causa de um certo reino, estradas eu caminhei... o filho de carpinteiro que veio de Nazaré, tornou-se bem verdadeiro e pôs vida na minha fé....”.
ORDEM DAS IRMÃS CLARISSAS
A mãe reagiu de mal a péssimo ao sonho da filha: “Pensou que era uma loucura”. A senhora acreditava que as enxaquecas tinham terminado, quando, anos antes, lhe vetara a profissão de jornalista. E, para assanhar o panorama, as línguas na vila iriam falar.
O único escopo que motivaria uma rapariga a eleger o convento intitulava-se desgosto o que não se enquadrava: “Eu era uma pessoa muito feliz”. Tinha namorado. Como é que alguém que namora quer ser freira? Escusado crer que é uma boa pergunta. “Há coisas que não se explicam com palavras”.
Com a decisão assente, só faltava encontrar a congregação. Decidiu-se pela Ordem das Irmãs Clarissas e elegeu a clausura “por saber que a oração não tem fronteiras”.
Em 1978 entra no mosteiro da Nossa Senhora da Piedade, e, após duas semanas, o rapaz apanhou um Boeing. Foi embora e para longe. Só casou quando a ex-namorada fez a última confissão. Até lá, aguardava que fosse cumprida a promessa: no caso de desistir da senda religiosa, “eu não iria buscar outro homem senão ele”. O rapaz esperou, e Deus queira que tenha sido sentado.
Decorridos os seis anos de formação, Maria José fazia os três votos evangélicos. Castidade. Obediência. Pobreza. “Nunca senti dúvida na minha escolha”. Não deu à luz, mas sente a consolação de ser “Mãe dos filhos de ninguém”. Acredita que o instinto maternal é algo que nasce com a mulher e que ninguém consegue tirar.
“Os muros da clausura não significam muros de prisão, mas de libertação”. Ela, como todas as freiras que optam por essa via, só pode sair do mosteiro em função do trabalho para o próprio mosteiro. Concertos, festas, exposições, são programas que ficam de fora. E a praia, sim, o mar, com ou sem ondas “foi o que mais me custou”. O lugar onde nasceu é à beira da beira-mar, quando habitava no claustro na Ilha da Madeira, ainda contemplava o oceano à distância, mas na Estrela nem se espreita o rio. É proibido abrir as portas para matar saudades da imensidão azul, mas quando tem algo a fazer no exterior, e se nesse trajecto, o mar estiver à sua frente, a anatomia reflecte o júbilo: “Os meus olhos brilham logo!”. A ligação é tamanha, que quando os fechar para sempre, quer que o seu nome seja escrito na água.
NO MOSTEIRO DA NOSSA SENHORA DAS MERCÊS
Dizem que a terra de Maria Gabriela Palma é o estrado mais azulado do Atlântico. São Miguel, Ribeira Grande, Calhetas. Açores. Conheceu Maria José através da escrita, no tempo em que era freira e fazia o que é usual entre as comunidades: escrever cartas. Quis o acaso, ou o destino, que as duas só se conhecessem quando Gabriela optou pela vida secular. Treze anos passaram, mas há coisas, tal como a praxe preferida das mulheres mudar de mala, sapatos e de roupa “parece que não fazem parte de mim”.
Descendente de família bastante religiosa, e uma pessoa desde sempre ligada “a afazeres de igreja”, Gabriela, 45 anos, quis ser enfermeira, mas o pai nunca lhe fez a vontade. Com onze irmãos para serem criados, a escola restringia-se em cuidar dos mais novos. Sair, nem que fosse à distância da esquina, o chefe da casa não consentia. Só a deixava ir à missa.
Uma manhã a filha deu-lhe a maior alegria A data gravou-a. Mesmo que perca a memória, nunca esquecerá 2 de Fevereiro de 1980 – o dia em que entrou para o mosteiro da Nossa Senhora das Mercês. Razões que levam uma jovem de 18 anos a adoptar vestes de monja e a jurar votos, como o de castidade e o de clausura, ligam-se a vários factores. “A minha irmã tinha entrado no convento, e eu via-a muito feliz”, no entanto, não era só a felicidade exposta que a influenciou a ingressar na direcção religiosa. Tão pouco consistia numa forma de escapar à dureza paterna. “Queria ser religiosa e ajudar os outros”.
Os cépticos apostam que uma moça que pisa o convento vai de íris chorosa. Teriam perdido a aposta: “Eu entrei muito feliz e de livre vontade”.
A ideia de ajudar o próximo e o seguinte ganha prática depressa. Duas freiras adoecem e a Gabriela foi a criatura quem, durante dez anos, as acolitou. Em Hospitais. Nas sessões bárbaras de quimioterapia. Quando as doentes regressavam ao mosteiro a enfermeira de serviço chamava-se Gabriela. Uma amiga que era técnica de saúde, ensinou-lhe a medir a tensão arterial, dar injecção, fazer curativos. “Tratar delas deu-me vida”.
Uma vida que esvaece ao ver derrotado o corpo das freiras pelo cancro, e, mais ainda, quando um brutal acidente de motorizada mata o seu irmão. Não obstante a tristeza da ausência prematura, Gabriela contou com outra mágoa: “Não me deixaram ir ao funeral”. Embora as normas tenham mudado, e hoje já seja permitido às freiras irem ao enterro dos seus familiares, confessa que a atitude esfriou a vocação. Sim. Questionou. Falou com Deus, embora nunca se tenha zangado. “Por que razão tinha levado o meu irmão, que acabara de ser pai, e não me levou a mim que estava livre?”. Fechada num convento, deprimida, começou a vasculhar novas expectativas; Voluntariado. Acompanhar doentes. Mas a clausura não consentia.
Durante quatro meses faz a experiência junto de uma outra congregação, mas sentiu que devia voltar ao mosteiro.
A SAÍDA DO MOSTEIRO
Uma enxurrada de perguntas recai na sua almofada: “Será que é vontade de Deus?” e para além desse desígnio, interrogava-se como é que iria viver financeiramente. Apesar de estar consciente que tinha sido ali que a sua vida se fizera, “pedi a Deus que me abrisse a porta”. Após o pedido de renúncia dos votos definitivos ter sido aceite pela Santa Sé, o portal do mosteiro escancarou-se a 7 de Outubro de 1994.
O único sítio que a esperava era a sua casa, vazia, sem ninguém. A família mudara-se para os E.U.A. A mãe nunca lhe fechou os braços, ao contrário do pai que dizia ter enlutado, anos mais tarde, passou-lhe o mau feito, mas nessa altura, valeram-lhe as amigas. “Deram-me comida e roupa”. Durante 14 anos o guarda-fato resumia-se ao trajo franciscano e os pés apenas calçaram as mesmas sandálias. Sem medo e com fé cuida do avô que se encontrava em fase terminal. Quando ele morre, pensou “A minha missão acabou”. Mas não. Ainda não.
No dia de Natal um vizinho pediu-lhe um favor irrecusável: Na impossibilidade de deixar as filhas menores sozinhas, perguntou-lhe se ela podia acompanhar a esposa ao Instituto de Oncologia (IPO). “Vi que o pedido vinha das mãos de Deus”. Chamou-lhe o sinal para largar a terra.
Em Janeiro de 1995 seguia com a doente para Lisboa. Ficou hospedada numa pensão próximo do hospital. Uma amiga – que mais tarde viria a ser a cunhada – ao ver as precárias condições da hospedaria, disse-lhe que, embora ela não tivesse condições para a receber em sua casa, falaria com o irmão. O problema protocolar impunha-se. Uma mulher e um homem; um só tecto. A solução estava mais perto do que os dedos estão das mãos: num velho amigo.
Gabriela deu a bússola ao irmão daquela amiga. Disse-lhe que viesse com ela. Casou. A ajudante de acção directa de uma paróquia sente-se bem. Em paz. Garante que a experiência de ter vivido em comunidade é maravilhosa: “Nada é meu. Tudo é nosso”.
‘O amor acontece’ é um título de um filme e pode ser real. Em Maio de 1995, em Lisboa, Gabriela Palma apaixonou-se pelo irmão de uma amiga. Tal como na tela do cinema, a protagonista era correspondida. “Foi um namoro adulto”. Em 2000 casou, nos Açores, claro. Pelo facto de o marido já ter sido casado, o casamento contou com a cerimónia civil, mas um padre açoriano adivinhou o desejo de Gabriela : “Fez o ritual, deu-nos a bênção, comungou-nos, e as alianças foram benzidas”.
Só não assinaram o livro de registo da Igreja. Não faz mal.
ESTATÍSTICA SOBRE AS FREIRAS PORTUGUESAS
Os dados deste ano indicam haver mais de seis mil freiras portuguesas, repartidas entre aquelas que residem em solo nacional, no estrangeiro ou estão destacadas em missões nos países do Terceiro Mundo. Actualmente, mais de duas centenas de mulheres preparam-se para abraçar a vida religiosa. Segundo a Irmã Maria Manuel Oliveira, do Secretariado Nacional dos Institutos Religiosos de Portugal, não existe registo do número de freiras que abandona vida religiosa.
5431 freiras a residir em Portugal
277 freiras a residir no estrangeiro
397 freiras em missão nos países do terceiro Mundo
103 institutos femininos
235 noviças em formação
FONTE: Anuário Católico de Portugal (2007)
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