Munique e as histórias da vingança anunciada

"Morreram todos”. A frase saiu entaramelada da boca de Jim McKay, entrando de rompante, crua, fria, em casa de 900 milhões de telespectadores naquele dia cinzento de Setembro de 1972.

29 de janeiro de 2006 às 00:00
Munique e as histórias da vingança anunciada Foto: Karen Ballard
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Terminava assim, de forma inglória e abrupta, o drama dos elementos da comitiva olímpica israelita feitos reféns 21 horas antes. Ao todo, tombaram às mãos do grupo extremista palestiniano ‘Setembro Negro’ 11 homens, numa carnificina que manchou de sangue Munique, capital daqueles Olímpicos de Verão que, ironia do destino, tinham sido baptizados como ‘Jogos da Paz e da Alegria’.

Nunca mais ninguém esqueceu tamanha tragédia, registada em directo pelas estações de televisão dos quatro cantos do planeta. Steven Spielberg muito menos. Nem a chacina, nem tão-pouco o que aconteceria depois dela. A sua nova obra-prima, com o nome da cidade germânica onde tudo aconteceu, aborda precisamente a missão de retaliação pós--atentado, quando um comando da Mossad inicia a brutal vingança com a ‘Operação Ira de Deus’ – uma reacção em cadeia accionada a partir do governo da ex-primeira-ministra de Israel Golda Meir (Lynn Cohen) sob a alegação de ‘comprometimento de valores’. Objectivo primordial: partir num ápice para a Europa e eliminar os palestinianos que arquitectaram tão triste episódio da História do Séc XX.

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Para baralhar os dados, Steven Spielberg regressa ao velho truque que em 1993 o fez passar de figura constantemente ignorada pela Academia a realizador de eleição na noite dourada de Hollywood: colocar o factor humano acima de qualquer acontecimento, as estórias das personagens enquanto catalisadoras de todo o argumento.

Antes da veracidade histórica sobre aquilo que aconteceu de facto, interessa ao cineasta a vivência do jovem patriota israelita, oficial dos serviços secretos que certo dia é contactado por Ephraim (Geoffrey Rush) e convidado a embarcar na missão de vingar as mortes de Munique, deixando para trás a mulher grávida. Avner Kauffman (Eric Bana) é, a partir daí, o homem no centro das atenções, o hesitante líder do grupo, atormentado pela dúvida sobre qual a justificação para a onda de violência que será obrigado a despoletar.

Violência é, aliás, algo que não falta. Nas duas horas e meia de ‘Munique’, o ‘pai do ET’ gastou 70 milhões de dólares, metade de seu orçamento habitual, em explosões e perseguições pelas ruas de Paris, Nova Iorque, Telaviv e Beirute.

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No entanto, as críticas ao filme não surgiram pela transformação da caça ao homem numa espécie de guerra dos mundos. Spielberg tem sido atacado de “equivalência moral” por elementos do governo israelita, enquanto alguns críticos de cinema o acusam de “humanizar demónios” ao sublinhar um lado menos mecânico dos terroristas. Em entrevista ao jornal britânico ‘The Guardian’, o realizador defende-se: “Acho impressionante que pessoas que não gostam deste filme estejam a dizer isso. Nele demonstra-se claramente que o grupo ‘Setembro Negro’ era composto por terroristas. Os actos são irrefutáveis, mas se não começarmos a colocar questões sobre as pessoas envolvidas e porque é que o terrorismo acontece, nunca conseguiremos descobrir a verdade em relação ao porquê do 11 de Setembro de 2001.”

Apesar de suscitar olhares divergentes e alimentar polémicas, ‘Munique’ insere-se na lista dos melhores filmes de Steven Spielberg, dando um murro na indiferença com que o tema do Médio Oriente tem sido abordado pelos grandes estúdios. Só isso já é uma vitória.

VAI GOSTAR SE... tem acompanhado a mestria de Steven Spielberg no que toca à recomposição de determinada época, como aconteceu, por exemplo, em ‘A Lista de Schindler’.

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UM PORTUGUÊS EM MUNIQUE

Eduardo Gageiro e o famoso ‘instante decisivo’ nos Jogos Olímpicos de 1972.

Em Setembro de 1972, Eduardo Gageiro tinha sido enviado a Munique para fazer a reportagem fotográfica sobre os Jogos Olímpicos, para o ‘Século Ilustrado’, quando na segunda semana do evento viu ser-lhe barrada a entrada na Aldeia Olímpica. Primeiro achou estranho, depois decidiu aguardar. A notícia do rapto de atletas israelitas por parte de um comando palestiniano chegou mais tarde e deixou toda a gente boqueaberta. Ao contrário de outros colegas de profissão, decidiu esperar à porta do recinto, começando a engendrar um plano para furar a apertada barreira de segurança. “Apercebi-me de que os atletas tinham um crachá com menos uma letra do que o meu, meti as máquinas dentro de um saco normal, vesti um blusão e infiltrei-me num grupo de desportistas. Tapei o meu número de identificação e entrei. Fiquei radiante.”

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Aos 36 anos, cheio de sangue na guelra, o famoso fotógrafo português dirigiu-se à delegação lusitana, por feliz coincidência alojada no 16.º andar de um prédio mesmo em frente ao local onde se encontravam os helicópteros destinados a transportar os reféns até ao aeroporto. Os elevadores estavam parados e Eduardo subiu até lá acima pelas escadas. Cançado, a arfar mas cheio de adrenalina, deu a ordem sem pestanejar: “Apaguem as luzes que eu vou para a varanda.” A sorte bateu-lhe à porta. Dali viu o autocarro chegar com os israelitas e os palestinianos. Fez as fotos do embarque para os helicópteros, que enviou na mesma noite para o jornal, através de um elemento da comitiva das quinas.

O sucesso em Portugal foi enorme, embora Eduardo até tenha perdido dinheiro com a aventura: “Estava feliz da vida e fui para o centro de imprensa dizer que acabara de fazer imagens que mais ninguém tinha. A Associated Press ofereceu-me 250 contos pela fotografia, uma fortuna para a altura, mas não liguei nenhuma. Fui festejar, apanhei uma bebedeira e só no outro dia, mais sóbrio, me apercebi de que tinha perdido uma carrada de massa”, diz hoje, bem disposto.

Curiosamente, tanto as ‘chapas’ como o acontecimento acabaram por ter fraca visibilidade internacional: “Sempre achei estranho que nas olimpíadas seguintes jamais se tenha feito a homenagem aos que morreram naquele confronto. Sempre foi visto como um acidente, e não como o início de uma guerra sangrenta.”

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- Género: Drama/ Acção.

- Realização: Steven Spielberg.

- Actores: Eric Bana, Geoffrey Rush e Daniel Craig.

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- Classificação: 4/5.

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