O mago por detrás das suas máscaras

Guerrino Lovato é um dos maiores mestres da secular arte das máscaras de Veneza. Mas o seu grande momento de glória foi a participação no último filme do genial Stanley Kubrick.

26 de fevereiro de 2006 às 00:00
O mago por detrás das suas máscaras Foto: Cláudia Silveira
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A famosa cena da festa orgíaca num castelo medieval em que Tom Cruise entra de penetra, é talvez a mais célebre do filme ‘De Olhos Bem Fechados’, a derradeira obra-prima do genial cineasta norte-americano, Stanley Kubrick. A cena impressiona não só pelo bizarro da situação, como também pelas dezenas e dezenas de caras mascaradas que vão desfilando misteriosamente pelo ecrã – desde o célebre Casanova ao não menos famoso Cristóvão Colombo.

Certamente que Guerrino Lovato já deve ter visto esta cena dezenas de vezes. E tem boas razões para isso – é ele o autor de algumas das mais belas daquelas máscaras. Apesar de estar habituado a ver as suas criações nos palcos, a verdade é que desta vez foi especial, até porque foi o último filme do cineasta, falecido em 1999. No entanto a sétima arte é apenas mais um pormenor num vasto e impressionante currículo.

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A história deste mago das máscaras de Veneza começou há 30 anos, altura em que decidiu abraçar o ofício de escultor. Desde então dedica-se, de corpo e alma, a dar vida às históricas máscaras de Veneza. Foi, aliás, naquela cidade do norte de Itália, mais precisamente no bairro de Dorsoduro, que a reportagem da Domingo o foi encontrar. Estava atrás do balcão da sua loja-atelier – sugestivamente apelidada de Mondonovo – cujas paredes estão repletas de máscaras, e trabalhava num novo molde. Para quem não saiba fica aqui a informação: a arte de Guerrino Lovato não se resume às máscaras de ‘De Olhos Bem Fechados’. Com efeito, o artista veneziano é sobretudo conhecido por fazer máscaras mais tradicionais, as que contam a história europeia, as da renascença italiana, sátiras, grotescas, as da comédia dell’arte.

MAS VOLTEMOS AO FILME de Stanley Kubrick. Voltemos à história da sua participação em ‘De Olhos Bem Fechados’, uma história que ele conta na primeira pessoa: “Em 1996 o decorador do filme esteve na loja e encomendou 50 máscaras de dois modelos diferentes”, começa por dizer. A encomenda não demorou a chegar ao destino. Mas só alguns anos depois, quando o filme saiu, voltou a ter notícias do seu Cristóvão Colombo e do seu Sol.

Lovato faz questão de deixar bem claro que “existem máscaras de outras lojas de Veneza no filme, e mesmo de outros sítios do mundo, acho que também há coisas inglesas e americanas. De qualquer forma, nós fazemos coisas mais importantes, isto é só um pormenor.” Dito isto, acrescenta que também já trabalhou com outros nomes sonantes da sétima arte, como sejam os monstros sagrados italianos Frederico Fellini e Franco Zefirelli.

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É num espanhol arrastado que Guerrino Lovato nos vai falando de outras “coisas mais importantes” que já fez. Para começar, foi o responsável pelos baixos-relevos e esculturas no auditório do reconstruído teatro La Fenice, em Veneza. Consumido pelas chamas pela segunda vez em 1996, só voltou a abrir as portas no ano passado. Lovato teve de basear o seu trabalho em fotografias, nem sempre distintas, e também em cenas ampliadas do filme de 1954 de Luchino Visconti, ‘Senso’. Apesar do impressionante resultado final, o artista veneziano não deixa de admitir que alguns dos detalhes dos relevos originais se perderam para sempre. Para preservar a qualidade da acústica original, utilizou exactamente os mesmos materiais nos mesmos locais, quer fosse madeira, papel-maché, estuque ou gesso.

Em 1998 e 1999 trabalhou na decoração da reconstrução da grande cúpula em estilo Romanov do Kremlin, em Moscovo, numa empreitada encomendada pelo então presidente russo, Boris Ieltsin. E, logo depois, fez as malas e partiu para os Estados Unidos – esteve nos estúdios de Los Angeles e Nova Iorque a trabalhar na decoração interna do megalómano hotel-casino The Venetian, de Las Vegas.

No ano passado, construiu um enorme tigre voador, inspirado numa das obras de Salvador Dalí, para a maior retrospectiva europeia das obras do pintor catalão, por ocasião do centenário do seu nascimento. Mais de 300 obras, trazidas de 130 colecções, museus e instituições de vários países, estiveram expostas no Palazzo Grassi, na margem do Grande Canal. À entrada, pairava o tigre de Lovato.

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Guerrino Lovato estudou na Academia de Belas Artes de Veneza e em 1983 abriu na mesma cidade um estúdio e a loja Mondonovo, onde cria, além das célebres máscaras venezianas em papel-maché, adereços para o teatro, a ópera e o cinema.

Organizador de várias edições do Carnaval de Veneza, também já dirigiu inúmeros desfiles de máscaras na Europa e na América.

Foi, aliás, no Brasil, mais precisamente na favela da Rocinha, que teve um contacto mais prolongado com a língua portuguesa – o artista italiano entende a língua de Camões mas prefere não falar. Através de um projecto de uma ONG italiana e do governo da região do Vêneto, Lovato passou um mês na favela a ensinar o seu ofício a cerca de 50 alunos, num barracão alugado pela Casa de Cultura da Rocinha.

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Apesar de já ter feito cursos por todo o mundo, não pôde deixar de se impressionar com a vida da favela. “Eu não conhecia a Rocinha. Nas andanças pela favela, para conhecer a comunidade e almoçar, vimos crianças armadas, mas fomos tratados sempre com muito respeito porque as pessoas tinham consciência que estávamos a trabalhar pela comunidade.”

É verdade que as máscaras são talvez a coisa mais fácil de encontrar em Veneza. Há-as em todo o lado, de todos os tamanhos e dos mais diversos materiais. Mas quem valoriza a qualidade não deve deixar de passar na loja de Guerrino Lovato. Com um pouco de sorte até consegue apanhar o artesão em pleno acto de criação.

‘DE OLHOS BEM FECHADOS’

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AS OUTRAS LOJAS DE MÁSCARAS DE VENEZA QUE PARTICIPARAM NO FILME DE KUBRICK

‘De Olhos Bem Fechados’ não rima apenas com Guerrino Lovato. É que outras lojas de máscaras da cidade italiana de Veneza também forneceram a produção do filme de Stanley Kubrick.

A Ca’Macana, no bairro de Dorsoduro, foi uma delas. Por isso mesmo exibe, orgulhosamente, na montra os exemplares que o realizador escolheu para usar no filme, nomeadamente aquela que a personagem de Tom Cruise usa na mansão.

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A máscara ‘bautino’ e a do ‘medico della peste’ são outras das que aparecem na película.Também os irmãos Sergio e Massimo Boldrin, donos de uma pequena loja situada perto da ponte do Rialto, chamada La Bottega dei Mascareri, foram escolhidos para fornecer máscaras para o filme. Estão entre os melhores artistas da cidade no que a máscaras diz respeito, e já trabalharam também para o Shakespear Festival de São Francisco.

Não foi por acaso que a estreia europeia de ‘Eyes Wide Shut’ aconteceu exactamente em Veneza, no Festival de Cinema da cidade, em 1999. Infelizmente o consagrado cineasta norte-americano não pôde assistir ao momento tão aguardado, visto ter falecido pouco tempo antes.

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