Que futuro para Amália?
Fundação está entre as não avaliáveis pelo governo e arrisca estatuto de utilidade pública
Foi por vontade de Amália que nasceu a fundação com o seu nome. Envolta em controvérsia desde a criação, em Dezembro de 1999, volta a ser notícia ao constar da lista divulgada pelo Governo como uma das 37 entidades que as Finanças consideram "não avaliáveis" por falta de informação. O presidente, João Aguiar, e o vice-presidente, Rui Maurício, dizem desconhecer os motivos e garantem ter "entregue toda a documentação". Mas a história da Fundação é "uma estranha forma de vida" como o fado cantado por Amália.
Gestora de um património que inclui a casa-museu Amália Rodrigues, na rua de São Bento, em Lisboa, a herdade do Brejão, no Alentejo, outros imóveis avulsos, jóias, móveis e quadros (num total, à morte da artista, avaliado em quatro milhões de euros), uma conta bancária (de 750 mil euros) e a imagem/marca Amália, a fundação acumula prejuízos e desde 2010 que aguarda a revisão do processo de utilidade pública. Caso perca esse estatuto, a fundação – criada para ajudar crianças e idosos pobres – perderá também a isenção de pagamento de IRC e impostos patrimoniais, o que agravará a sua débil situação financeira.
Diz o vice-presidente que foram poucos os anos em que a liquidez permitiu pôr a acção benemérita em prática e espera um aval final para fazer contas à vida. Garante que a "marca Amália vale uma fortuna", mas recusa lançar projectos próprios. A família da fadista, que herdou os direitos de autor, diz nada ter contra a fundação, mas essa não é a opinião dos amigos que pedem "transparência".
A IDEIA DE MALUDA
Considerada a maior do fado, Amália Rodrigues tinha na voz e na imagem a sua maior riqueza. Ainda assim, bens materiais não lhe faltavam e foi por pressão da pintora Maluda, amiga pessoal da artista, que chegou a ideia da fundação.
"Ela avisava Amália de que seria imprudente não fazer nada desse tipo", lembra o fadista João Braga, desde sempre uma das vozes discordantes. "Amália contava entre os seus amigos alguns dos maiores advogados do País, mas como não queria aborrecer ninguém e escondia o que andava a fazer, não se valeu disso", adianta. Acabou por ser o guitarrista Fontes Rocha, já falecido, e o juiz Machado Soares – autor do fado ‘Coimbra tem mais encanto na hora da despedida’ – que a apresentaram a Amadeu Costa Aguiar, advogado pouco conhecido, que logo se tornou próximo da fadista.
A polémica surgiu um dia após a morte de Amália, a 6 de Outubro de 1999. A par da discussão sobre os direitos do património da fadista, advogados de renome, artistas, entre os quais João Braga, Raul Solnado e Armando Cortez, e figuras várias da sociedade questionavam a legitimidade das disposições testamentárias que colocavam nas mãos de Amadeu Aguiar, e com funções vitalícias, a fundação.
Desafios na praça pública e acções judiciais animaram os primeiros anos da Fundação Amália Rodrigues. Questionavam o paradeiro das jóias, que valeriam cerca de dois milhões de euros se vendidas em leilão de uma casa famosa como a Sotheby’s ou a Christie’s, o rasto de ‘supostas contas na Suíça’, e a necessidade ou não do pagamento de um imposto sucessório. A polémica foi tanta que só em 2007 a fundação pode movimentar a conta bancária da artista no Barclays.
NOVA GESTÃO
O actual presidente, João Aguiar – que por estatuto e por em 2010 ser o antigo vice-presidente em funções sucedeu ao pai, Amadeu Costa Aguiar –, manteve no seu escritório de advogados, em Lisboa, o secretariado da Fundação e chamou para vice-presidente o amigo Rui Maurício. Na lista da actual administração estão ainda Fernando Monteiro, Graça Castro e António Holbeche Fino e um rol de dúvidas levantadas na imprensa.
À Domingo, João Aguiar garante que a "Fundação Amália Rodrigues não tem dívidas. Isso é a campanha de desinformação que continua a existir. As contas são transparentes e se houver esclarecimentos a fazer serão às entidades competentes. Se Amália Rodrigues pretendeu estabelecer uma fundação com cariz de solidariedade social, o que o povo português tem de fazer é agradecer a magnitude".
As jóias, diz, "estão devidamente guardadas em cofre bancário". E sobre o montante de uma alegada dívida às Finanças, que ascenderia a 2,3 milhões de euros por imposto sucessório, garante que é "um disparate".
"Essa situação verificava-se até ao momento em que o Governo português fizesse a declaração de utilidade pública da Fundação. Por receber esse benefício, obviamente que não há imposto sucessório a pagar. Era uma situação hipotética, e a ser verdade até gostava de saber como esse valor seria apurado. Era preciso que tudo o que está dentro da casa–museu fosse avaliado", frisa.
A CASA AMARELA
O que se pode ver na rua de São Bento, nº 193, é uma casa amarela e portuguesa, com certeza. Entre as 30 mil peças expostas, saltam à vista raridades. Há um xaile negro de franjas, um piano de meia cauda (da Casa Petrof), quadros da escola flamenga dos séculos XVII e XVIII, a tela pintada por Maluda, peças Companhia das Índias, candelabros franceses, cómodas D. Maria em pau-santo e uma guitarra bojuda que, garantia Amália, "esteve na batalha de Alcácer Quibir".
A casa-museu recebe anualmente uma média de sete mil visitantes – "desde portugueses que vêem a casa como uma catedral, a holandeses de 20 anos ou japoneses de 60". As visitas rendem 30 a 35 mil euros por ano. "Seria suficiente para sustentar a Fundação e pagar os ordenados dos cinco funcionários, se essa fosse a única despesa, pois a administração trabalha em regime de voluntariado. O problema é a manutenção da casa–museu, que tem despesas grandes, e da herdade do Brejão", diz o vice-presidente, Rui Maurício.
Nas suas contas, a Fundação tem um prejuízo acumulado de cerca de 25 mil euros por ano e só entre 2007 e 2010 as contas saíram da "zona vermelha" e o espírito de Amália renasceu.
"Foi conseguida a declaração de utilidade pública, publicada por despacho de Outubro de 2007, reanimadas as galas, entregues donativos à AMI e à Cruz Vermelha, montada a exposição, em conjunto com a Fundação Berardo e EDP, em que finalmente foram expostas as jóias e registada a marca Amália", lembra o juiz Américo Lourenço, ex-vogal, que passou pela Fundação "com grande empenho pessoal" e diz ter saído por "excesso de trabalho, incompatível com a vida profissional".
Para os actuais gestores, no entanto, o futuro da Fundação é muito incerto. "Os estatutos têm algumas reservas em relação a alienação de património e estamos a tentar reverter a utilização da imagem Amália fazendo protocolos com entidades que usem a marca", como foram os casos do filme produzido pela Valentim de Carvalho ou do actual espectáculo de La Féria, cita Rui Maurício.
O advogado não tem dúvidas de que "Amália é um ícone de Portugal e que a marca gera muito dinheiro e tem um potencial enorme e queremos bons parceiros para a desenvolver".
A criação directa de programas não está nos propósitos da casa: "Não estamos interessados em produzir eventos, mas sim em realizar protocolos com quem queira usar essa marca. Se perdermos o estatuto de utilidade pública teremos de repensar a estratégia."
HERDADE DO BREJÃO ABERTA AO TURISMO
A casa com uma vista soberba sobre a praia do Brejão passa agora a estar disponível para quem a quiser arrendar para férias ou eventos, diz Rui Maurício, vice-presidente da Fundação Amália. "Foram realizadas obras de conservação grandes, pois estava sem utilização desde o óbito da Amália, e está finalmente preparada para receber visitas", frisa.
Com piscina, sala e três quartos, a casa era um dos locais preferidos de Amália Rodrigues e Rui Maurício admite "abrir as portas a visitas para crianças em risco, a quem se pode contar uma história sobre como vivia uma artista".
Perto, o Centro Médico idealizado por Amália funciona a conta-gotas. João Braga, fadista, lembra que Amália quis esse posto "por o marido lhe ter morrido nos braços, vítima de um enfarte, e ela, naquele local isolado, não ter encontrado médico a tempo". Da Fundação, garantem que é dado o apoio possível: "Há dois médicos e consultas gratuitas uma vez por mês."
NOTAS
AS JÓIAS
Cordões, brincos, pulseiras e o alfinete ‘Estrela’ (2 milhões de euros) foram expostos ao público em 2010.
RÉPLICAS
A empresa Ouronor fez réplicas para o filme ‘Amália’ e criou uma linha de jóias inspirada na artista, exposta em Guimarães.
PATRIMÓNIO
4 852 231,91 euros é o valor actual de bens e direitos da Fundação entregue no Portal do Conselho de Ministros.
MARCA
A Fundação gere a marca Amália e criou um selo, que custa um euro, para certificar todas as peças de artesanato.
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