Sangue de uvas

O vinho Kosher respeita todos os requisitos da religião judaica. Uma das regras sagradas é que a maquinaria da adega tem de ser nova ou muitíssimo bem lavada. Em Portugal é produzido em Meca, no Ribatejo, e tem até a bênção do rabino.

02 de outubro de 2005 às 00:00
Sangue de uvas Foto: Pedro Catarino
Partilhar

Passavam poucos minutos das sete e meia da manhã quando passámos a portagem e fomos em direcção a Alenquer. Chegados ao local que, curiosamente, pertence à freguesia de Meca (Ribatejo, no caso de alguma dúvida), esperámos meia hora para que o tractor ficasse operacional.

Quando pronto, um homem senta-se ao volante e começa a guiar com a mesma facilidade que barramos manteiga no pão.

Pub

Nós, o rabino, os dois agentes comerciais, seguimos o barulho. A pé. Poucas solas gastámos. Um campo apinhado de uvas despertou-nos a preguiça domingueira. O tractor ia-as engolindo como uma boca gulosa. Em menos de vinte minutos não cabia nem mais um cacho no camião. E dirigimo-nos para o lagar onde a mercadoria da natureza iria ser despejada.

O rabino obedece ao empregado e carrega num botão, depois noutro. As uvas caem com força, uma força meiga, para, lentamente, desaparecerem trituradas.

O sumo da uva é sugado para um tubo que vai dar ao cimo da adega. O rabino está de mangas semiarregaçadas. O espectáculo é acompanhado pelos olhares de um funcionário ucraniano e de um ribatejano que, simpaticamente, indicavam quais os mecanismos a serem accionados.

Pub

Quatro vezes, quatro camiões, quatro cargas apinhadas de uvas. Na verdade, quem faz o vinho, afinal, são as tramóias. Carrega aqui, ali, acolá. Ok. A páginas tantas perguntámos ao rabino a razão de não ter dado nenhuma bênção. E ele responde: "o vinho serve para muitas cerimónias e, como desconhecemos qual será, não dizemos nenhuma, mas temos a intenção."

O enólogo Tiago Carvalho pinta o quadro da produção: "Este ano foi seco. Sem a chuva, as uvas ficam com um teor alcoólico mais elevado. Normalmente o vinho fermenta a uma temperatura máxima de 30 graus, e este, antes de ser engarrafado, passa por um processo de pasteurização, elevado para 75 graus." O rabino denomina este processo de ‘Mevushal’: cozido, fermentado, "na lei judaica está escrito que temos de subir mais do que 45 graus."

Paulo Rocha, o presidente da firma, não hesitou em aceitar o desafio de fabricar um vinho que requer preceitos diferentes: "Produzo tantos vinhos, e por que não este?" Estreou uma máquina, facilitou todas as formalidades e está seguro do sucesso, "estou certo que haverá muita procura."

Pub

O vinho foi rotulado de Ben Rosh. Mas só por mero acaso é que a família do homenageado ficou a saber da existência do vinho. É o caso de Isabel Ferreira Lopes e de Mário Barros Bastos, netos de Ben Rosh. Apesar disso, esperam que seja o princípio do fim da injustiça de que foi vítima.

CONTA O RABINO da Comunidade Israelita de Lisboa, Boaz Pash, que, durante o II Templo (400 anos a.C.), "as mulheres mais justas de Jerusalém davam aos condenados à morte um cálice de vinho forte. A finalidade era aliviar a agonia do réu com o estonteamento do álcool. E, também, em tempos remotos, no regresso de um funeral, a Hebrá Kadisha – uma confraria que tem como principal propósito dar assistência espiritual aos doentes e moribundos, e de executar o dever religioso de enterrar os mortos – consolava os enlutados com uma taça de vinho.

No entanto, esta analogia com o decesso, depressa foi abolida do judaísmo: "A expressão Le Haim – para a vida – traduz a sólida afinidade entre a alegria e o ‘Yain’, vinho em hebraico, vocábulo que, feitas as contas numéricas, apresenta o valor 70, "o que na perspectiva cabalista pode revelar o segredo de uma pessoa."

Pub

Considerado pela Cabala (mística judaica) como o ‘sangue da natureza’ e referenciado na Bíblia de “sangue das uvas", o vinho é uma presença assídua em todas as cerimónias religiosas judaicas. Do Shabat à bênção de agradecimento da comida, das solenidades à oração que simboliza a entrada da semana, o vinho está sempre presente.

Mas é em Purim, festa das ‘sortes’, parecida com o Carnaval, pelas máscaras e pela suposta euforia, que o caso muda de figura. Num dos tratados do talmud (livro do estudo oral) está escrito, revela o rabi: "devemos beber vinho a ponto de ser impossível distinguir a diferença entre o Mordechai e Haman". E quem são eles?

O RABINO AFIANÇA QUE O PRIMEIRO "era bom, tio daquela que foi a rainha Ester". O outro, ministro do imperador Ahashverosh (séc. 5 a.C.) da antiga Pérsia, "era mau, mais do que as cobras. Quis exterminar todos os judeus que viviam no império." E para isso, fez um sorteio para saber em que dia esfregaria as mãos de contentamento. Calhou a 14 de Adar (mês hebraico equivalente a Fevereiro-Março).

Pub

Mas o feitiço virou-se contra o feiticeiro, e Haman, o mau da fita, acabou com o pescoço na forca, exactamente nessa data. A provável bebedeira que advém desta diferenciação é explicada: "dessa forma não sabemos quem era o bom e quem era o mau. É para esquecer a maldade." Esta festa realiza-se uma vez por ano. Claro. Não haveria fígados.

"Cada celebridade abarca um simbolismo na eleição do tipo de vinho", diz o rabino. Por exemplo, aos Sábados a escolha recai no tinto, "porque a cor vermelha representa a força." Igualmente na Páscoa (Pessach): durante a leitura da Hagadah (relato da saída dos judeus do Egipto) os quatro copos obrigatórios personificam "os quatro níveis de redenção, enquanto esperamos pelo quinto, que só chegará com a vinda do Messias", deverão ser do mesmo carácter: "é para lembrar o sangue dos nossos antepassados, quando éramos escravos." Os quatro copos não são bebidos de qualquer maneira. A expressão "bota abaixo" poderia estar correcta, não fosse o costume dos judeus recostarem o corpo para o lado esquerdo enquanto o bebem. É o lado pelo qual as pessoas livres ingeriam.

Nos casamentos a tradição aponta para o vinho branco, e não é por ser mais ou menos indigesto... mas "para que a ligação do casal seja tranquila. O branco simboliza a placidez." Nas festividades a selecção incide somente na qualidade.

Pub

ENFATIZANDO QUE O VINHO na religião judaica frui uma estreita ligação com a mística, o rabino assegura que "a certa altura da santificação (Kidush) é possível ver a nossa imagem." Essa ocasião centraliza-se quando a pessoa que conduz a oração inclina o rosto ligeiramente em direcção do copo, e é como se o vinho se transformasse num espelho. "Na verdade, esse vulto reflectido é a nossa forma espiritual."

Boaz defende que “a importância do vinho não se reduz a um potencial que põe os seres humanos mais alegres...". Portanto, o vinho não serve só para trocar os passos. Com ele é possível dizer orações e bênçãos. Para isso, ou apenas para provar o milagre da uva, existem normas e regras. A exigência primordial para um vinho estar de acordo com a Halácha, lei judaica, assenta numa única alínea: "deverá ser feito por judeus." A explicação baseia-se em que "antigamente, e ainda hoje, faz-se vinho nezer – aquele que é exclusivamente concebido para rituais religiosos da Igreja. E esse é proibido, porque é dedicado a um sacrifício." O vinho que está imune do carácter religioso, chamado ‘stam inam’, o rabino adianta que, igualmente, esse precisa de judeus "desde a apanha da uva até ser engarrafado", pelo facto de subsistir a probabilidade de serem adidos emulsionantes proibidos pelo código judaico.

Outra condição: "a maquinaria da adega deve ser nova, ou muito bem lavada." Quando o vinho passa por estes requisitos, o rabi afiança que é ‘Kosher’ – enquadra-se nos parâmetros dos preceitos judaicos.

Pub

PRODUTOS KOSHER EM PORTUGAL

Basta ir ao supermercado do El Corte Inglés que, desde há dois anos, estreou em Portugal uma secção Kosher, para ver o sortido de produtos, que passaram por uma fiscalização rabínica; carne, saladas, frangos, folhados, salsichas, bolachas, fazem parte das 700 referências que, diariamente, são repostas.

"Os nossos produtos são os necessários para uma refeição, por isso, diversificam" – afirma a responsável do departamento de Relações Externas. E adianta a razão que os levou a ter nas prateleiras alimentos Kosher: "havia uma necessidade que não estava coberta: muitos elementos da Comunidade Israelita de Lisboa iam comprá-los a Madrid." Claro que a Avenida António Augusto de Aguiar fica mais à mão do que Espanha.

Pub

Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?

Envie para geral@cmjornal.pt

Partilhar