‘A Sociedade dos Sonhadores Involuntários’ é dedicada a Luaty Beirão. Mas o presidente angolano também é personagem.
“José Eduardo dos Santos entra nos pesadelos”
Foi a greve de fome de Luaty Beirão e de outros ativistas que o levou a escrever ‘A Sociedade dos Sonhadores Involuntários’ ou a luta deles apoderou-se de um romance que já estava a escrever?
Foi antes, até porque a luta deles não começou aí. Ouvi falar pela primeira vez do Luaty, eu e milhões de angolanos, por altura da Primavera Árabe, quando ele apareceu num festival de música com um discurso incrivelmente agressivo contra o regime e contra o presidente da República. Aquilo circulou pelas redes sociais com enorme força e todos nos convencemos de que o regime iria cair no dia seguinte, como acabara de cair no Egito e na Tunísia, e estava o Kadhafi quase a cair também. Aquele episódio marcou-me muito e comecei a escrever o romance na altura, há uns seis anos. Depois interrompi para escrever outros livros, fui retomando e interrompendo, e há ano e meio voltei.
Dedica o livro "a todos os jovens sonhadores angolanos". Acredita que só os mais novos ainda não desaprenderam de sonhar?
De certa maneira. Quando os jovens foram presos organizou-se um movimento de solidariedade, bastante amplo e com pessoas de diversos estratos sociais, inclusive pessoas ligadas às famílias que estão no poder. Mas eram quase todos jovens. Creio que eu e o Orlando Sérgio, meu amigo, éramos os mais velhos. Não foi possível encontrar pessoas mais velhas dispostas a dar a cara. Isso mostrou que havia ali uma fratura: de um lado os jovens e do outro as gerações anteriores.
Sente alguma ponta de inveja por estes jovens conseguirem agitar o país de uma forma que gerações anteriores não conseguiram?
Nenhuma. Sinto grande admiração e respeito. Sempre pensei que seria assim um dia, sempre quis acreditar. Infelizmente, o movimento de solidariedade que se gerou com a prisão dos jovens aparentemente extinguiu-se. Pensei que não fosse acontecer. Sou um pouco ingénuo.
A que se deve a desmobilização?
A sociedade angolana está a atravessar um período muito difícil e a maior parte das pessoas está ocupada em sobreviver e em gerir a sua vida dentro da crise que o país vive. Mesmo os jovens, que normalmente saem para as ruas.
Tal como uma personagem do romance, também José Eduardo dos Santos tem o poder de entrar nos sonhos das pessoas?
Infelizmente entra nos pesadelos porque Angola atravessa uma crise terrível de desagregação. A saúde e o ensino estão a entrar em colapso, se é que não entraram já. As pessoas tocadas por essa tragédia enorme têm com certeza pesadelos com o presidente José Eduardo dos Santos.
Já lhe aconteceu sonhar com ele?
Eu sonho imenso. Uma das outras razões porque escrevi este livro foi porque resolvo muitas coisas através de sonhos. Sonho com títulos de livros, sonho com princípios de histórias e quase sempre com o desfecho de contos ou de romances. Sonho muito, e também com o José Eduardo dos Santos. Talvez por isso algumas dessas situações no livro… Mas sendo um livro que parte de uma realidade política concreta, é ao mesmo tempo uma ficção pura e uma fantasia.
As últimas notícias dão conta de que o estado de saúde de Eduardo dos Santos está a piorar. Teme que ele morra antes de perder o poder ou de ser levado à justiça?
Eu preferia que o presidente tivesse uma vida longa e que pudesse justificar tudo o que aconteceu em Angola e que vai acontecendo com a família dele. Nos últimos anos distribuiu o país pelos filhos. Todos estamos inquietos em Angola porque não houve uma preparação da passagem de poder. Houve a indicação de um nome, mas teria preferido que ele tivesse feito a transição pacífica para uma democracia real.
Diz o seu protagonista que "não se pode esperar de um homem mau e corrupto senão corrupção e maldade". Ainda há muitos angolanos que esperam algo diferente?
Neste momento acho que não.
Nem o círculo de fiéis?
Do presidente José Eduardo? O que acontece agora, com esta indicação de João Lourenço, é que esse círculo está a passar para outro lado. "Já não é este o chefe? Então vamos passar para outro chefe!" Acho que o José Eduardo acabará por ficar isolado, se tiver uma vida mais longa, e em todo o caso a sua família ficará isolada. A questão interessante é que, ao contrário de outros ditadores, ele não teve nem nunca terá amigos, não tem ninguém que o siga pelo pensamento e carisma. Durante estes anos as pessoas seguiram-no basicamente por poder e dinheiro. Ao contrário do Kadhafi, que até ao fim tinha gente disposta a morrer por ele, e que morreu com ele, ninguém está disposto em Angola a morrer por Eduardo dos Santos.
Estranha ver no Parlamento português o PCP, o PSD e o CDS a manifestarem-se contra um voto de condenação do regime angolano?
Eduardo dos Santos não representa nenhuma ideologia senão a do enriquecimento imediato e lucro fácil. Infelizmente, a classe política portuguesa, salvo honrosas exceções, foi sempre subserviente ao regime angolano, como foi ao apartheid.
E o povo português também é complacente com o que se está a passar em Angola?
O povo vota e elege deputados.
E vê Isabel dos Santos a ser uma das principais acionistas de grandes empresas portuguesas.
As pessoas sabem quem é Isabel dos Santos e de onde veio esse dinheiro. Fazer negócios com pessoas cuja fortuna é mais do que duvidosa não me parece correto. Depois, há a incapacidade de solidariedade imediata com Luaty e os seus companheiros, sendo difícil não acreditar nos bons motivos e razões que eles têm. Nem um pequeno gesto de solidariedade por medo da reação do governo angolano… Não fica bem.
Está preparado para os editoriais do ‘Jornal de Angola’ quando lerem ‘A Sociedade dos Sonhadores Involuntários’ até ao fim?
(gargalhada) Vamos lá ver se eles leem. Já seria um bom princípio.
Outra personagem do romance escreve que quando era mais nova achava que Angola era uma rede de condomínios com terrenos baldios pelo meio chamados África. É possível estar mais desligado da realidade do país vivendo num desses condomínios do que estando aqui a viver em Lisboa?
Sem dúvida. Há até uma juventude que cresceu depois da guerra e que vive nesses condomínios um pouco à semelhança do que acontecia com a juventude colonial. Muito à beira do fim, quando já era possível perceber que a situação estava presa por arames, faziam festas como se fosse assim para sempre. Lembram--me muito esta juventude angolana. Quando um filho do presidente José Eduardo dos Santos compra um relógio por 500 mil euros, é semelhante ao que acontecia antes, mas a outro nível, com mais dinheiro.
Qual seria a primeira pergunta que faria ao presidente de Angola se tivesse a oportunidade de o entrevistar?
Há muitas que gostaria de fazer. Uma das coisas que caracterizam o presidente José Eduardo dos Santos é que não sabemos o que ele pensa. Uma das perguntas seria: "De que lado estava você no 27 de Maio? [Golpe liderado por Nito Alves contra o presidente Agostinho Neto, em 1977]". Mas a pergunta mais importante neste momento é: "Porque é que você não saiu antes? Porque é que não preparou uma saída honrosa, digna, de forma a assegurar a pacificação do país?".
Imagina quem poderá liderar Angola depois de este regime acabar?
Angola tem muitos quadros, muitas pessoas competentes, capazes de assegurar o futuro do país em paz. Nem digo um, pois pela minha cabeça passam muitos nomes. O problema da oposição é a incapacidade que mostrou até agora para se unir e fazer frente ao regime. A oposição, sobretudo a que está no parlamento, está refém do regime. Uma boa parte da estrutura destes partidos tem casas, carros e mesadas asseguradas pelo regime. Essa é a razão por que não o afrontam, recusando-se, por exemplo, a participar nas eleições.
Admite envolver-se na política quando Angola for livre?
Não, de jeito nenhum. Não é o meu papel nem é a minha vocação. Sou escritor, quero continuar a ser escritor, gosto imenso daquilo que faço. É aquilo que eu sei fazer. Não seria um bom político e tenho horror a isso. Só de pensar nisso dá-me urticária.
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