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A Casa Pia de antes e de agora

Várias gerações de casapianos, desde os anos 50, contam como recordam a instituição. Vive-se entre a crítica e o orgulho.

12 de setembro de 2010 às 00:00

Para nenhuma geração de alunos a Casa Pia é igual. Já formado em joalharia, Igor Pereira perscrutou no mapa da Península Ibérica por um curso de relojoaria. A Casa Pia de Pina Manique revelou-se, há dois anos, a escolha acertada. É o irmão mais novo de três filhos de uma família do Porto, onde todos os outros seguiram a tradição do pai: são economistas. Mas Igor, 26 anos, quis romper com os cânones. "A Casa Pia é uma escola como todas as outras; qual é o stress? Se eu estudasse na Escola D. Dinis, ou noutra, ninguém me ia perguntar o que acharam os meus pais disso! A pergunta é ofensiva para mim e para todos os casapianos. Um jovem de 14 anos não terá a mesma estrutura que eu para responder. E isso é horrível". Igor vê-se confrontado com esta discriminação - "sem sentido" - muitas vezes. "Porquê defender uma instituição que não devia ser posta em causa?"

Desde Novembro de 2002, quando rebentou o escândalo de pedofilia, a instituição tem vindo a adoptar um novo modelo estrutural. Foi reduzido o número de alunos internos (de 654 para 210) e instituído o objectivo de reduzir o tempo de acolhimento; apostou-se na formação dos educadores e em incentivos aos funcionários; alteraram-se os métodos de ensino. No final, a voz que ecoa de dentro da instituição diz estarem mais bem preparados para evitar casos como os do passado. Porém, há quem duvide.

"Não tenho dúvidas de que as medidas que apresentámos enquanto Conselho Técnico-Científico tenham sido postas de parte" - acusa o psiquiatra Álvaro Carvalho, que em Junho de 2008 se afastou da Casa Pia por não se sentir agradado com o ambiente dentro da instituição. "A Maria Joaquina Madeira substituiu a Catalina e assumiu que iria pôr em prática as medidas propostas, mas quem lá estava e quem ainda lá está apercebe-se de que a generalidade das medidas não foram aplicadas." A ex-provedora Catalina Pestana prefere não comentar, dizendo apenas: "é bom para todos que eu agora saia de cena". É o mesmo silêncio de Joaquina Madeira.

A UNIÃO DOS ALUNOS

Questiona-se agora se as mudanças são suficientes. "O ambiente tem-se vindo a degradar significativamente", considera o psiquiatra das vítimas. Igor Pereira discorda. O estudante vive no Alto da Ajuda, alugou um quarto numa pequena moradia que partilha com outro casapiano e dois alunos universitários. O pai paga-lhe o quarto e a alimentação, apesar de nos dois últimos anos ter trabalhado em part-time numa joalharia. Deixou de o fazer porque, quando regressar esta semana às aulas, vai contribuir para a união dos casapianos. É vice-presidente da recém-criada Associação Juvenil Todos pela Igualdade - Associação Juvenil Casapiana. É mais uma ferramenta para a inclusão dos alunos dentro e fora da instituição.

Já se pensa em formar um cordão humano à volta da Casa Pia, conta a ex-aluna Paula Ramos, 39 anos. Tal como ela, já por lá passaram seis irmãos e os quatro filhos. São duas gerações com alimentação, transportes e livros pagos pela instituição. Paula tirou o curso de costura e concluiu o 12º ano no único sítio onde o poderia ter feito. "A minha mãe vivia em Chelas sozinha com oito filhos e nós só voltávamos a casa às seis da tarde", recorda a encarregada de limpezas no Centro Comercial Vasco da Gama. Neste percurso, chegou a tocar trompete na Orquestra da Casa Pia - e gravou o disco ‘Os Gansos', com voz de João Pedro Pais, outro ex-casapiano. "O Carlos Silvino foi nosso motorista. Levava-nos onde fossemos actuar. Ele pode ser a pessoa que é - e estou a favor dos casapianos - mas custa-me a acreditar nas acusações. É doloroso demais".

Soraia Carvalho, 20 anos, filha de Paula, criou uma ligação tal à Casa Pia, para onde entrou logo na pré-primária, que mesmo hoje, depois de ter concluído o 12º ano de Artes Plásticas, na variante de Pintura Decorativa, continua a lá ir pelo menos duas vezes por semana. A razão é simples: toca trombone de vara na orquestra. E, claro, há sentimentos que a unem à escola: "sentia-me melhor lá do que em minha casa, se calhar, davam-me mais atenção. Tínhamos dificuldades económicas".

NÃO SE FALAVA DE ABUSOS

Sobre abusos na Casa Pia, Soraia Carvalho nunca ouviu falar, a não ser desde que o escândalo rebentou. Mas frisa que atenção por parte dos educadores nunca lhe faltou. "Era como se fossemos uma família. Pretos, branco, chineses, todos se dão bem". Apesar de tudo, em Dezembro de 2008, um aluno do Colégio Pina Manique, Eucride Varela, de 19 anos, morreu esfaqueado ao fugir da fúria de um gang. Nem a segurança privada do colégio travou a ira destes jovens que ali entraram à procura de um qualquer ajuste de contas.

Nove anos mais velha do que Soraia, Sofia Granadeiro conta que "os alunos externos nunca sabiam nada do que se passava dentro daqueles lares". Sofia seguiu a via de ensino, ao passo que "a maioria dos internos seguia pela via dos cursos profissionais". Aos dez anos saiu de um colégio na Ajuda - de classe média, média-alta - e mudou--se para Pina Manique. "Entrei para uma turma de crianças do Casal Ventoso e da Cova da Moura. "Chamavam-me ‘princesinha'". Já depois de ter iniciado as aulas, mudaram-na de turma à revelia dos pais. "Achámos injusto e o meu pai pediu para me voltarem a pôr na antiga turma. O que aconteceu e eu continuei a ser boa aluna".

É no capítulo da multiculturalidade que a médica diz ter recebido a melhor formação. "O que foi mais importante para mim foi a interacção com colegas de vários extractos sociais e de culturas diferentes". Não se lembra de grandes desacatos, a não ser quando - em 1995 - regressou à escola Tiago Palma,  acusado de ter morto à pancada um jovem negro, Alcino Monteiro, no Bairro Alto. "Levou uma tareia lá na escola de um grupo de alunos negros", conta. Para Sofia Granadeiro, o aspecto mais negativo da Casa Pia - de onde saiu em 1999, com a conclusão do 12º ano - era "o facto de terem as portas fechadas, principalmente ao Ministério da Educação, o que tornava as inspecções difíceis, pois dependia da tutela da Segurança Social".

Entretanto, passaram mais de dez anos e pelo meio veio à tona o escândalo de pedofilia e a ele seguiu-se o início da reestruturação da instituição. Nada de próspero para o psiquiatra Álvaro Carvalho. "Não tenho dúvidas de que o futuro das próximas gerações de alunos da Casa Pia estará comprometido se não forem tomadas medidas. Neste momento, a eficiência educativa é pior do que já foi".

Marcado a ferro e lágrimas, o primeiro dia de Pedro Namora na Casa Pia resiste à corrosão do tempo. Aos seis anos foi levado para a secção Nuno Álvares, em Belém, sem que tivesse tido a oportunidade de ver a mãe, a única pessoa que ainda lhe lembrava o conceito de família. Os dias de disciplina ríspida passaram a ser a sua rotina. "Levantávamo-nos às 6h30 para tomar banho, com um frio brutal. Eram sete chuveiros mas só dois tinham água com fartura. E eram ocupados pelos miúdos mais velhos. Para ele, o tempo de aulas, "único resquício de humanismo", era o momento do dia em que o coração serenava.

Com a passagem para a quarta classe, imperou a ordem de um novo destino: o Colégio de Pina Manique. Abandono e insegurança eram sentimentos frequentes para uma criança que aos poucos ia provando a impetuosidade da vida. Das fugas mais ou menos pontuais ao quotidiano, figuravam os jogos de futebol a que assistia na Casa do Restelo. Foi por essa altura que uma voz desconhecida o fez regressar à sua frágil condição de menino. "Em 1975, no final de um jogo, fui à casa de banho e de dentro de uma das retretes alguém me pediu que lhe levasse um rolo de papel higiénico. Quando fui dá-lo, tentou puxar-me mas consegui fugir". Era Carlos Silvino.

Porém, Namora mantinha o orgulho em ser aluno da Casa Pia. "Tínhamos ginásio, ganhávamos torneios e tínhamos um corpo docente magnífico". Hoje, 20 anos depois, lamenta o desgoverno. "Tornou-se numa escola para meninos que não aqueles que lá deviam estar".

À revolta de Pedro Namora junta-se a de Américo Henriques, o mestre de relojoaria que, antes de se dedicar a esta arte, chegou à Casa Pia como órfão. Tinha sete anos e o internato operava em moldes "massivos, militarizados e desumanos, com uma disciplina severa demais". Para o ex-educador da Casa Pia, de 62 anos, o futuro da instituição está condenado à penumbra da incerteza. "Não sei para que é que a Casa Pia vai servir tendo o plano de estudos passado de 3600 horas de formação para 1600. Não dá para formar técnicos de nada". Por isso o mestre Américo se afastou, em Dezembro de 2008.

"A anterior directora, Maria Joaquina Madeira, mudou a imagem da Casa Pia, o símbolo, as cores, a indumentária dos alunos. Preocupou-se pouco com o conteúdo dos cursos, o que é desastroso. Hoje a Casa Pia tem um terço da capacidade de resposta que tinha para casos sociais muito graves. Não sei qual é a sua função com uma estrutura de acolhimento tão exígua".

"SÓCRATES NUNCA PERDOOU AS DENÚNCIAS SOBRE PAULO PEDROSO"

Para o ex-casapiano Pedro Namora, a instituição tem perdido lentamente a sua verdadeira missão social e educacional, ao longo dos últimos 30 anos. "Tornou-se numa escola para quem quisesse lá andar, numa escola para meninos que não aqueles que lá deviam estar. Sócrates nunca perdoou as denúncias que estiveram na base da detenção de Paulo Pedroso. A Casa Pia hoje está completamente descaracterizada. Não me admirava que acabassem com a instituição", lamenta o advogado, de 46 anos.

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