Há 75 anos, o bacalhoeiro integrou a frota nacional. Histórias do tempo em que a pesca era um assunto de fortuna ou de morte
Quando ia para o mar, nunca dizia adeus. Sabia que podia não voltar. Podia morrer afogado, não encontrar o navio e perder--se no meio da neblina, ceder ao sono e ao cansaço na proa do dóri [bote] e deixar-se cair, mas dizia ‘até logo’ de todas as vezes que se despedia à porta de casa e embarcava no ‘Creoula’ a caminho dos bancos da Terra Nova e da Gronelândia, para mais seis meses de campanha na pesca do bacalhau.
José Santos Leites, natural de Caxinas, Vila do Conde, era contramestre no lugre de quatro mastros que durante 36 anos foi bacalhoeiro abençoado pelo regime do Estado Novo, num tempo em que a sina de muitos homens passava pela pesca e a das mulheres pela oração. "Iam à Nossa Senhora das Boas Novas pedir que a santa protegesse os maridos na pesca do bacalhau enquanto eles, no meio do oceano, passavam medos, solidão e fome, uma barbárie", recorda Rosa Maria, filha do caxineiro que começou como pescador no ‘Creoula’, no início da década de quarenta, e anos depois chegou a contramestre por ser "um pescador de primeira linha" [os que apanhavam mais peixe e que no fim da viagem recebiam o ‘mérito’]. José já cá não está para contar as histórias que o mar teceu, mas foi a idade que o levou, não a pesca.
"Ele contava que na altura da II Guerra Mundial tinham medo de serem atacados no meio do oceano, principalmente na Gronelândia, tinham o fantasmas das coisas que pairavam no mar." O medo não era em vão: o ‘Deléns’ e o ‘Maria da Glória’, também lugres bacalhoeiros, foram bombardeados no meio do Atlântico em 1942 por submarinos alemães em tempo de guerra mundial.
VIDA DURA
O ‘Creoula’ provou pela primeira vez a água há 75 anos, numa cerimónia presidida pelo chefe de Estado, o general Carmona, ao mesmo tempo que o ‘Santa Maria Manuela’, seu gémeo em constituição e plano, mas a sua faina não foi sempre a mesma. Em 1973 fez a última campanha como bacalhoeiro e em 1979 foi comprado à Parceria-Geral de Pescarias pela Secretaria de Estado das Pescas que, vendo o casco conservado, o transformou em Navio de Treino de Mar. Mas o tempo do bacalhau – nos melhores anos chegou a carregar mais de 12 800 quintais [768 toneladas], mais do que a sua capacidade máxima – ficou para sempre entranhado nas redes daqueles que o viveram.
"Não há vida pior do que a de um pescador do bacalhau! Todos os anos um homem vem para este inferno no engodo de juntar uns patacos, a ver se fica em terra para sempre, se não volta mais (…) Volta mais um ano, mais outro, mais outro… Até cair de podre. Até que o mar o leve", escreveu Bernardo Santareno em ‘O Lugre’, homenagem aos pescadores "daquelas águas onde o dia nunca acaba e o sol brilha no meio da noite". O escritor acompanhou, enquanto médico, campanhas na pesca do bacalhau, o que influenciou a sua obra feita de histórias de mar.
José Picoito, natural da Fuseta, Olhão, entrou no ‘Creoula’, último bacalhoeiro português, pela mão do pai, pescador e salgador que ali fez tantas campanhas quantas as que o navio conheceu. "Quem não queria ir à tropa fugia para o bacalhau, era a forma de escapar. Livrei-me dessa vida aos 27 anos, depois de oito campanhas de pesca." Em 1961, quando a guerra estalava em Angola, José batalhava no mar, uma dureza diferente.
"Dormíamos no rancho, dois em cada beliche. Havia beliches em cima, ao meio e em baixo. Também era aí que comíamos o jantar. Para nos lavarmos davam-nos uma caneca de água fria; aproveitávamos quando íamos a St. John’s buscar isco, ou quando tínhamos de atracar por causa dos ciclones, para nos lavarmos numa ribeira", lembra. "O navio tinha de poupar água doce para a comida por isso era racionada", explica Fernando Oliveira, quatro campanhas a bordo do ‘Creoula’ e 60 anos de idade.
"Arriava-se os botes por volta das cinco da manhã e depois era cada um por si, uma vida ingrata. Nesse tempo, da pesca à linha, o jantar era sempre bacalhau: umas vezes frito, outras vezes cozido, estava sempre na ementa. Vivíamos a pescá-lo e a comê-lo", conta o caxineiro que começou na infância à pesca da faneca com o avô e só aos 18 se virou para o bacalhau. "Nessa altura era um dos verdes", os estreantes. A primeira vez no dóri foi "terrível. Tinha mais medo do nevoeiro do que do mar, o nevoeiro era uma doença".
Por isso, optou por nunca se distanciar dos outros botes durante a jornada solitária no meio do nada. "Preferia apanhar menos peixe e não me perder ou acabar afogado, por isso nunca fui dos melhores. Por isso também nunca ganhei mais do que quatro ou cinco contos por campanha. Os homens de primeira linha – que tinham um motor para o dóri cedido pela companhia – chegavam a tirar mais 15 ou 20 contos, conseguiam comprar carros de 50 contos e muitos abateram as dívidas da casa assim."
Fernando era nessa altura solteiro, mas quem já tinha aliança entregava à mulher o dinheiro – conta Joaquim Sousa – mal poisava pé em terra.
"Houve um ano – lembra António São Marcos, agora comandante do ‘Santa Maria Manuela’ – que os comandantes dos navios foram condecorados com o Grau de Cavaleiro e alguns dos primeiras linhas com o Grau de Oficial da Ordem do Mérito Industrial", tal era a sua importância para o regime.
JORNADA LONGA
O retorno dos dóris ao navio era às sete, oito da noite. Uma jornada que podia durar 15 horas. "Para regressarmos chamavam-nos com umas sirenes, mas às vezes não ouvíamos. O almoço era comido no dóri, normalmente uma fatia de fiambre ou marmelada e uma conserva de atum ou sardinha", recorda Afonso Silva, de 58 anos, cuja primeira viagem no ‘Creoula’ foi também a última do bacalhoeiro português.
Os pescadores iam remando por ali, experimentando "com a zagaia até encontrar peixe. Quando isso acontecia largávamos os trolleys e esperávamos pelo menos uma hora até recolher as linhas"; uma sequência repetida até encher o bote. "Na fase da força do peixe quase não descansávamos. E quem apanhava vigia nesses dias nem dormia", diz Fernando sobre um "cansaço tão grande que às vezes se adormecia em cima da proa do bote, correndo o risco de cair". "Por isso, quando chegávamos ao navio descarregávamos o peixe e íamos logo jantar, tal era a fome. Só depois, pela noite dentro, é que arranjávamos o peixe", recorda Afonso.
Passavam-se horas de volta do bacalhau, uma sequência de procedimentos que tinham de ser feitos, desde o troteiro (corta a cabeça do bacalhau), ao garfeiro (vai atirando o bacalhau para onde é preciso), ao salgador. António São Marcos lembra a azáfama a bordo e a sua função, "uma espécie de dona de casa do navio. De manhã, quando os homens saiam nos dóris, ficava a bordo a orientar a baldeação do navio, que era lavar os restos do trabalho da noite. Depois era alisar o sal e preparar o porão para a pesca desse dia. À noite, quando os homens voltavam, supervisionava o processamento do pescado", recorda António São Marcos.
"Só não aproveitávamos a parte óssea, do crânio, de resto aproveitávamos tudo, nada se estragava", lembra Fernando.
Nos dias em que "no conjunto de todos os dóris se pescava mais de 200 quintais [12 toneladas], o capitão punha música para acompanhar o trabalho de salgar e escalar o bacalhau. Eram normalmente discos de fado, mas às vezes também baladas", recorda o algarvio José. Joaquim Sousa, 72 anos, viu-se a caminho da terra prometida noutro bacalhoeiro, mas ouviu do pai, com 29 viagens no ‘Creoula’, as histórias que depois sentiu na pele.
"O meu pai tinha seis filhos, por isso aguentou todos aqueles anos esta vida dura, sem água, sem luz, uma solidão imensa. Era um alívio chegar a terra depois de tanto tempo a ver o mar. Mas enquanto o meu pai não se afastava muito dos outros botes, eu arriscava mais. Tive dias de andar onze milhas para apanhar o navio. Às tantas já não se via nada: víamos um pássaro e achávamos que estávamos a ver o navio, já era a cabeça a baralhar". No mar, como na guerra, "cada homem é um tubarão, havia uma rivalidade terrível entre os pescadores que apanhavam mais peixe. Essa foi uma herança maldita que veio de outro tempo, mais antigo".
A FÉ NA HORA DO MEDO
‘Levantai-vos rapaziada, filhos da Virgem Maria/ Vai um homem para o leme e dois para a vigia’ era o último verso dos Louvados, que todos os dias os pescadores repetiam antes da descida dos botes para mais uma jornada de pesca à linha. Diz o ditado ‘Se queres aprender a orar, entra no mar’ e era à fé que os pescadores se agarravam. "Eu sentava-me na escada que ia dar ao rancho e era dos que orava mais alto. Com a morte ali tão perto, era preciso agarrarmo-nos à esperança de que voltaríamos", lembra Fernando Oliveira.
‘Vamos arriar com Deus’ ordenava o capitão. As crenças estavam tão presentes nos homens do mar que "o bote número 13 ninguém queria", recorda José Picoito sobre o sorteio feito na viagem de ida. "Era o número do azar e os pescadores tinham muito medo de não regressar." José, hoje com 70 anos, perdeu colegas. "Eram da Nazaré e nunca mais os vimos. O navio esperou, esperou, mas não vieram." Joaquim também ouviu do pai essas histórias. "Foram engolidos pelo mar e não mais apareceram." "Não era uma vida fácil para ninguém, desde o comandante ao moço", lembra António São Marcos, que tinha então 22 anos. "Mas guardo muitas e boas recordações dessa viagem. Tenho uma memória romântica daquela campanha que fiz no ‘Creoula’, apesar das poucas condições que havia foi uma viagem memorável."
Para os pescadores os momentos felizes daquela época teciam-se menos das linhas de pesca e mais das discotecas de St. John’s. "Tínhamos uma roupa guardada para quando íamos a terra dançar. Aí esquecíamos tudo", lembra Afonso Silva, que se deixou tentar "pelas canadianas" que encontrava. José também teve uma namorada ou outra. "Mas amor a sério foi em terra, em Portugal."
NOTAS
II GUERRA
O casco era vermelho sangue-de-boi. Em 1943 foi pintado de branco por causa da II Guerra.
TERRA NOVA
Há a certeza de que em 1504 já pescadores portugueses iam à Terra Nova.
ACIDENTE
A 10 de Outubro de 1938 uma onda varreu o convés do ‘Creoula’, matando o imediato e três pescadores.
MUSEU
Museu Marítimo de Ílhavo comemora 75 anos. Ano coincide com lançamento do ‘Creoula’ ao mar.
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