Filha de um contorcionista e neta de uma domadora de pulgas, Edith Piaf morreu aos 48 anos parecendo ter 70. Renasce agora num filme sobre a sua atribulada vida.
Esta semana, o Festival de Cinema de Berlim abriu com o filme ‘La Vie en Rose’. Assim mesmo, com título em francês. Na próxima semana, a 14, Dia de São Valentim, a França será inundada pelo lançamento (em 600 salas) do filme ‘La Môme’. Qual a relação entre os dois acontecimentos? Trata-se do mesmo filme, do realizador Olivier Dahon, sobre a vida da cantora Edith Piaf.
Para a versão internacional, escolheu-se o título de uma das canções mais célebres de Piaf. Mas para passar o filme em casa, fez-se questão de dar o nome com que a cantora ficou na memória dos franceses: ‘La Môme’, ‘A Miúda’.
Este lançamento com nomes diferentes revela que, apesar do orgulho na sua maior cantora, há uma partezinha desse seu mito, dessa sua lenda, que a França não quer exportar. Chamando ‘La Môme’ ao filme, na versão nacional, os franceses estão como os filhos do morto famoso que abrem a porta da casa ao público: parece que mostram tudo, mas, ciumentos, escondem como um segredo íntimo a foto mais querida do pai.
Em 1915, uma cantora desqualificada deu à luz uma menina raquítica no Hospital Tenon, em Paris. A lenda começou logo ali, embora só fosse arquitectada anos mais tarde e com entorses à verdade: contou-se que Annetta, a cantora pobre, parira numa esquina de Belleville onde cantava habitualmente, no mais canalha bairro do Norte de Paris. Como em todas as boas lendas, não faltavam precisões: as capas de dois gendarmes, estendidas sobre o passeio, fizeram de primeira cama do bebé...
Mas por que dar pinceladas extras a um quadro já tão colorido? A árvore genealógica do bebé tinha ramos artísticos de vários géneros, todos extraordinários: além da mãe, Annetta, a cantora de esquinas com nome artístico de Line Marsan, havia o pai, o contorcionista com cartazes que apregoavam: ‘O homem que anda com a cabeça ao contrário.’ A avó materna, Aicha, de origem berbere, do Norte de África, era amestradora de pulgas no Salão de Pulgas Sábias. A avó paterna, artista mais tradicional, era dona de um bordel na Normandia... Esses os familiares próximos de Edith, o bebé magrinho. Chamaram-lhe assim em homenagem a uma espia inglesa, Edith Cavell, acabada de ser fuzilada pelos alemães. Quem escreveu o destino de Edith Piaf não se deu um minuto de descanso.
Há uma palavra que o nome de Piaf evoca: amor. Então, junte-se-lhe outro que lhe vai sempre junto – infelicidade – porque, como se sabe, ‘La Vie en Rose’ é título mentiroso. A vida dos amorosos é cor-de-rosa, é, mas só por breves momentos. Piaf canta com a sua a voz única: “Quando ele me toma nos seus braços/ E me fala baixinho/ Vejo a vida cor de rosa...” Mas oiçam a canção até ao fim e não é preciso saber francês para entender o que aquela voz sofrida, como mais nenhuma o foi nunca, anuncia que aquilo vai acabar mal.
Piaf começou por começar mal. A sua infância parece escrita por Charles Dickens, só que um século depois e, em vez de Londres, os bairros parisienses pobres: Belleville, Montmartre, Pigalle... Aos seis anos, a minúscula Edith cegou (aí, parece um fado de Hermínia Silva), foi a Lisieux com a avó prostituta (confirma-se, é mesmo um fado), onde Santa Teresa a salvou. Mas não das ruas. Começou ao lado do tapete onde o pai fazia milagres circenses. Ela puxava pela voz, que admirava mais por vir de coisa tão pequena. Das varandas burguesas e das janelas dos quartos de criada atiravam-lhe moedas. Quem canta? “C’est la môme!”, ouviu-se pela primeira vez e passou a ouvir-se muito.
A RUA FOI UM CURSO
Se a rua é um curso, Edith doutorou-se com distinção. Era adolescente já com o corpo que sempre teve – até porque não era preciso muito para lá chegar: 1,47 m – trocou o pai pelo primeiro amante, um rapazito até no nome, P’tit Louis, Luisito. Nem uma filha e a morte dela, com dois anos, faltam para completar a letra do fado. P’tit Louis vai à vida sem saber da honra de ter aberto uma lista onde vão estar muitos e famosos. À volta dos 20, são anos de gandaia, de bebida e cantigas em bares de prostitutas e cama com magalas.
Mais tarde, ela vai cantar os canalhas e os legionários com que se cruza e nota-se, pela voz, que foi fascinada que passou por isso.
A voz – só talvez Sarah Vaughan e Amália Rodrigues tenham chegado àquele dizer tanto, cantando – acabou por fazer o que lhe estava destinado. Um empresário que passava numa esquina, onde Edith prosseguia a carreira da mãe, ouviu-a e levou-a para o seu cabaré fino. Deu-lhe um nome, Piaf, como o som de pássaro, já que ela era só isso, um som. Mas que som. O resto era um corpo sem pernas, um torso mirrado e já ligeiramente curvado, uma testa demasiado grande para a moldura de cabelo de rato.
Calada ela assim seria, mas ela cantava. Pela voz, pôs Paris aos seus pés. O poeta Jean Cocteau definiu-a: “De cada vez que canta, dir-se-ia que ela arranca a sua alma pela última vez.” Pela voz, os homens fechavam os olhos e quando os tornavam a abrir, a meio de uma canção, viam uma mulher deslumbrante.
AMOU MUITOS HOMENS
Edith Piaf amou muitos homens e, de cada vez, de forma arrasadora e única, até ao próximo. Pegava em jovens desconhecidos e traçava-lhes o destino: Yves Montand, Charles Aznavour, Georges Moustaki... Aos 47 anos, pegou num jovem cabeleireiro grego, Théo Sarapo, e pô-lo a cantar com ela um dueto: ‘À quoi ça sert l’amour?’ (‘Para que serve o amor?’), uma lição emocionante. Casou com Théo e morreu no ano seguinte, aos 48 anos, parecendo ter 70 e tendo a idade que tem o amor eterno.
Diz-se que um só homem a deixou, o boxeur Marcel Cerdan. O avião deste despenhou-se nos Açores, quando ele regressava de Nova Iorque, onde ela cantava. E onde ela cantou na noite que soube do desastre. Para que serve o amor senão para nos alimentar de tristeza?
Pierre Saka, um jovem que voltava da Alemanha onde tinha estado como prisioneiro na II Guerra Mundial, teve a oportunidade de lhe mostrar os versos de uma canção. Piaf nunca a cantou. Mais tarde, em 1962, já Saka era letrista famoso e jornalista conhecido, houve outra oportunidade com outra canção. Saka foi chamado à casa de Edith Piaf para ouvir dizer que não, também aquela canção ela não cantaria. Perante a tristeza do autor, Piaf pôs-se a cantar, naquela sala, algumas canções do seu repertório. No ano seguinte, Edith Piaf morria. Mas o autor preterido diria, ainda recentemente: “Fiquei para sempre na minha pequena nuvem, com a Piaf a cantar só para mim...” Nessa nuvem, onde cada francês julga estar.
UMA VIDA QUE DEU UM FILME
O INCRÍVEL DESTINO DE 'LA MÔME' PIAF ESTREIA-SE EM FRANÇA
‘La Môme’, ou ‘A Miúda’, faz a sua estreia perante o público francês esta quarta-feira, depois de quatro meses e meio de filmagens no ano passado entre Paris, Los Angeles e Praga. O filme retrata o excepcional percurso de Edith Piaf, da sua infância à glória, das conquistas às tristezas, de Belleville
às grandes salas de espectáculo de Nova Iorque, um destino tão incrível como um romance literário. Íntimo e intenso, ‘La Môme’ desvenda o coração da mulher e a alma de uma artista imortalizada pela sua voz e carisma inconfundíveis, num trajecto que recupera locais emblemáticos como o parisiense Bordel Pigalle.
Realizado por Olivier Dahan e produzido por Alain Goldman, este ‘biopic’/drama/musical, recém-apresentado no Festival de Berlim como ‘La Vie en Rose’, tem como protagonistas Marion Cotillard (‘Um Longo Domingo de Noivado’ ou ‘O Grande Peixe’, de Tim Burton), na difícil pele de Piaf, Jean-Pierre Martins [na foto], o veterano Gérard Depardieu, Emmanuelle Seigner, Pascal Greggory, Sylvie Testud, entre outros. As canções de Piaf, como não poderia deixar de ser, dão corpo à banda sonora. A produção europeia que promete correr mundo ainda não tem data de lançamento em Portugal.
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