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Abraço fatal na cruz do migrante

Entre as imagens que chocaram o Mundo há crianças afogadas ou assustadas com uma câmara fotográfica

21 de julho de 2019 às 06:00

Julia Le Duc entristeceu o Papa Francisco, enfureceu Donald Trump, chocou toda a gente. A fotografia da correspondente do jornal mexicano ‘La Jornada’, difundida pelas agências noticiosas a 24 de junho, sublinha o drama de um pai que, mesmo antes de morrer, ainda tenta proteger a filha, com menos de 2 anos, envolvendo-a na sua t-shirt negra. Após 15 anos a registar o desespero dos migrantes que tentam atravessar uma ponte que é o posto fronteiriço entre as cidade de Matamoros (Tamaulipas – México) e de Brownsville (Texas – EUA), captou uma das imagens mais pungentes dos últimos tempos: Oscar Alberto Martinez Ramirez, de 25 anos, e Valéria afogados no Rio Grande, na tentativa de cruzarem o caudaloso curso de água no sonho de encontrarem, no mais próspero país do planeta, uma solução para a sua vida miserável em El Salvador.

Le Duc julga que terá sido a "surpresa" dos "dois corpos [emergirem] juntos e abraçados", próximo da Cruz do Migrante (marco que lembra os que não conseguiram nadar até à outra margem), que teve o efeito de comover globalmente. Só esta fotógrafa tem imagens de 25 afogados na região de Matamoros – a cidade, com apenas um albergue, "sem condições", onde se cruzam multidões de migrantes que ali chegam com os deportados recambiados dos EUA.

Uma das últimas fotos que tinha incomodado consciências foi a do pequeno sírio Aylan Kurdi, com apenas três anos, cara mergulhada no Mediterrâneo, naquela manhã de 2 de setembro de 2015, em que o mar – depois de ter virado o barco insuflável que saíra da cidade costeira turca de Bodrum rumo à grega ilha de Kos, na noite anterior – estava sem ondas ameaçadoras. E a jornalista turca Nilüfer Demir, da agência de notícias Dogan, perante aquela situação, desabafou: "Pensei que esta é a única maneira pela qual posso expressar um grito diante do seu corpo silencioso."

No 11 de Setembro de 2001, a identidade do homem, alto e magro, que cai desamparado, tendo ainda como fundo o World Trade Center – inspirando o romance de Don DeLillo com o mesmo título desta fotografia de Richard Drew, ‘The Falling Man’ (‘Homem em Queda’) – foi alvo de várias versões. Inicialmente reconhecido como sendo Norberto Hernandez; depois, parente de outras três famílias; até que, observando todos os negativos, vê-se uma camisa laranja como a que usava Jonathan Briley, de 43 anos, quando trabalhava num restaurante da torre. Mas, entre a massa disforme de 2606 corpos provocada pelo ataque dos aviões da Al-Qaeda, é impossível ter qualquer certeza.

Espelho de sangue

Na Guerra do Vietname, no dia 8 de junho de 1972, o repórter da Associated Press, Nick Ut, levantou a câmara ao ouvir uma explosão e viu várias crianças a fugirem de um bombardeamento de napalm, com a pequena Phan Thi Kim Phúc, de nove anos, sem roupa, a correr com as costas queimadas e a gritar. Após ter registado ‘The Terror of War’, ele próprio conduziu as vítimas ao hospital e, a partir dessa altura, estabeleceu uma forte amizade com Kim Phúc, que seria submetida a cerca de duas dezenas de intervenções cirúrgicas. Outra sequência impressionante é a de Eddie Adams, quando viu um guerrilheiro vietcong, braços algemados atrás das costas, a ser empurrado pelas ruas de Saigão, a 1 de fevereiro de 1968, e testemunhou o chefe da polícia a puxar pelo revólver, encostar o cano à têmpora do inimigo e a fazer uma execução em público.

A História da Fotografia está recheada de representações violentas. No mês de chumbo da guerra da siciliana Cosa Nostra – novembro de 1983 –, uma das imagens emblemáticas é aquela em que Franco Zecchin documentou o assassinato de Benedetto Grado, pois, além de mostrar o corpo tapado com um lençol branco e três mulheres de negro (em luto por outro familiar assassinado), conseguiu obter o efeito de espelho na poça de sangue que manchava a rua de Palermo, onde se reflete o rosto da filha do executado.

A "imagem mais triste do dia", quando se tornou ‘viral’, depois de ter sido colocada no Twitter pela palestiniana Nadia Abu Shaban (quando, afinal, já tinha sido publicada em 2012, pelo turco Osman Sagirli, no ‘Türkiye’), impressionava pela explicação: aquela criança síria, num campo de refugiados, levantava os braços em sinal de rendição – nos seus quatro tormentosos anos de vida, a pequena Hudea julgou que a câmara fotográfica era uma espingarda que lhe estavam a apontar.

Perante uma quase avalancha de imagens chocantes, a do abutre e da criança (‘The Vulture and the Little Girl’ – mas que era um rapaz, chamado Kong Nyong), obtida por Kevin Carter, em março de 1993, em Ayod (atualmente, Sudão do Sul), originou um debate acerca da ética, com os leitores do ‘New York Times’ a questionarem se os jornalistas trocavam o humanismo pelo Prémio Pulitzer. Não se sabia que a ave de rapina tinha pousado quando o autor já tinha enquadrado aquele pequeno em lágrimas, que se dirigia para um centro de distribuição de alimentos da ONU e que ele se manteve ali até o pássaro bater as asas. Por um absurdo do destino, enquanto aquela vítima sobreviveu (morreria aos 14 anos, de malária), Kevin Carter, atormentado por um complexo de culpa, em julho do ano seguinte, suicidou-se, deixando um bilhete onde se podia ler: "Sou assombrado pelas lembranças vividas de assassinatos, cadáveres, raiva e dor."

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