Apenas um teatro e um restaurante continuam a funcionar no Parque Mayer, em Lisboa. A crise, dizem, "já foi pior"
Maria José, chega devagarinho, com o passo calmo que lhe permitem os 80 anos de idade. Pede um desconto, para aliviar "os 30 euros do bilhete das cadeiras de onde se vê bem, que custa cada vez mais a quem tem as reformas reduzidas", e aguarda a hora de entrada. Às 16h00 já a bilheteira exibe o cartaz ‘lotação esgotada para a matiné’. Costuma ser assim aos domingos, quando excursões oriundas de todo o País ajudam a encher o Teatro Maria Vitória, o primeiro a ser erguido no Parque Mayer, em Lisboa, e o único ainda a funcionar.
Ultrapassadas as duas colunas que ladeiam a entrada para o espaço desenhado com traço modernista, Maria Sofia Silva deita para trás o peso dos 70 anos e corre a reunir o grupo que acompanhou desde Constância e Santa Margarida. Junta a filha, a neta, o irmão mais novo e muitos outros que viajaram com ela. "Faço isto há 14 anos, com ou sem publicidade, almoçamos e vimos para aqui", diz, autoelogiando a sua capacidade de organizar visitas ao que resta da revista à portuguesa.
Na bilheteira, António Pires Coelho, 78 anos de idade e 40 de Parque Mayer, elogia a dedicação. "São as excursões que nos mantém. Antes funcionavam os quatro teatros, ABC, Variedades, Capitólio e Maria Vitória e havia público para todos, todos os dias era uma romaria. Agora, enche aos fins de semana, e em algumas noites de quinta e sexta-feira. De resto, nem há espetáculo. Isto está ao abandono."
UM ÚNICO TEATRO
A decadência, visível a olho nu, não afasta os amantes da revista. Maria José sorri, sem ponta de nostalgia, ao recordar os anos em que trabalhava como enfermeira no Hospital de Santa Marta e bastava-lhe atravessar a avenida para ter diversão. "Havia animação todas as noites, as senhoras usavam casacos de peles, e quem não tinha dinheiro para o espetáculo vinha só aos restaurantes."
Hoje, apenas um estabelecimento serve refeições. Dona Gina, que dá nome ao restaurante homónimo, nota que já passou por "tempos piores. Temos um público fiel, servimos bem, ao almoço e ao jantar, e vêm aqui pessoas de todas as classes", garante, sem parecer incomodada com as obras que transformaram o Parque Mayer num estaleiro. As grafites substituíram a tinta das paredes do que antes era o Teatro ABC e os andaimes e restos de cimento que sobraram da recuperação do Capitólio, já terminada, e do Variedades, enchem o ar de pó.
Ao Maria Vitória chega agora público de todas as idades. "Nos últimos anos tem surgido mais gente nova, que começa a gostar de teatro de revista", garante o senhor Coelho.
Catarina Cardoso, dez anos, confirma. Na companhia da mãe, da avó e da prima Cláudia, de 16 anos, aplaude com fervor os quadros e as cores de ‘Lisboa: Amor Perfeito’, apesar de reconhecer que não percebe "as piadas todas". "Costumamos vir sempre na passagem do ano, mas desta vez fui chamada para trabalhar e adiámos. A Catarina andava a insistir e aproveitámos esta tarde", conta a mãe, lamentando que as famílias não mostrem aos mais novos esta tradição cultural. "Eles gostam e só não vêm mais porque não sabem."
VETERANOS E NOVATOS
À entrada do Maria Vitória, o cartaz ostenta nomes sonantes a par de outros mais novos: Carlos Cunha e a filha, Erika Mota, Paulo Vasco e Vera Mónica, Ana Sofia Gonçalves e Flávio Gil, Élia Gonzalez e Diogo Costa. É notória a tentativa de renovação de um espetáculo que insiste em não morrer.
Pouco falta para o abrir da cortina e a descontração espanta quem entra nos bastidores. As gargalhadas convivem paredes-meias com perucas, plumas e lantejoulas. Tudo é grandioso.
Ana Sofia Gonçalves, 34 anos, coloca umas grandes pestanas, para que o público nas galerias "veja bem a expressão dos olhos de quem está em palco". Por mais escola que exista, a grande aprendizagem faz-se no palco da revista, diz. "Já fiz televisão, teatro infantil e o teatro de revista é o mais completo, porque abarca comédia, drama, canto, dança. Temos de fazer de tudo um pouco."
Embrulhada num roupão cor-de-rosa, cabelo apanhado num carrapito, Vera Mónica maquilha-se, enquanto liga um aquecimento portátil para afastar a humidade que mina aquele teatro. Tem quatro décadas de revista e prepara-se hoje como sempre o fez. "Somos obrigados a estar sempre em boa forma, e em dia de matiné a acordar cedo, porque a voz demora pelo menos oito horas a abrir." Somam-se trabalho, talento e improviso em cena. "Se acontece algo metemos uma bucha e o público percebe, ri-se sempre."
A mesma opinião tem Paulo Vasco, para quem o maior desafio de um ator de revista é tocar os espectadores: "Estão mais inteligentes e bem informados, mas continuam sempre à procura de um bom número de política ou de crítica social."
Em cena, há quadros que elogiam Lisboa, retratos do quotidiano, memórias do maestro Frederico Valério, paródias ao vice-primeiro-ministro Paulo Portas, ao primeiro-ministro Passo Coelho e ao líder do PS José António Seguro. Uma rábula a Tino de Rans e um quadro dedicado aos reformados tocam a plateia, que ri e chora com as interpretações de Carlos Cunha. Emocionado, o ator teme o fim deste género teatral: "Apesar de ter público, não se tratou de renovar e revitalizar a revista também a nível de textos. Precisamos de mais autores."
RENOVAR A REVISTA
Se aos mais experientes cabe o papel de ensinar, sobre os ombros dos mais novos recai o peso de renovar a revista. Aos 23 anos, Flávio Gil tem energia para subir a palco e assinar em parceria com Mário Rainho os textos de ‘Lisboa: Amor Perfeito’. Iniciou-se no teatro amador, saltou para a revista quando pensava seguir Direito e foi apanhado na teia quase sem dar por isso. "Nunca tomei essa decisão, foi acontecendo. Mas sempre que exista vontade é fácil criar uma revista. Os textos vivem da atualidade e os autores têm apenas de recolher a informação e tratá-la, no sentido de ser divertida para o público."
As muitas gargalhadas que se ouvem na plateia enchem de orgulho o elenco, que mal acaba o espetáculo da tarde prepara o que vem a seguir.
O público sai satisfeito. Os jovens elogiam as rábulas e o corpo de bailarinos, os veteranos, mais críticos, preferem as piadas brejeiras e aproveitam para recordar atores de outros tempos, cujos retratos enfeitam as paredes do Maria Vitória. "Já vi pior, mas também já vi muito melhor, como no tempo da Ivone Silva, Raul Solnado", diz Azália Silva, sobre o tempo em que, ainda estudante, passeava pelo Parque Mayer de livros na mão. "Era uma festa. Agora, noto problemas de som, não percebi algumas das palavras."
Muitos acreditam que se um dia o Maria Vitória vier abaixo, como prometido, ali renascerá um novo teatro, mais moderno e adaptado às novas tecnologias, que devolverá o brilho ao Parque Mayer.
Entregue à gestão da Câmara Municipal de Lisboa, o Parque Mayer tem aprovado um projeto que incluiu uma vasta reforma. Aos renovados teatros Capitólio e Variedades, deve juntar-se um novo Maria Vitória, esplanadas, zonas pedonais e uma ligação ao Jardim Botânico. Muitos pedem um Bairro de Artes, com escolas de teatro e a vida que ali pulsava nos tempos de ouro.
Implantado no espaço dos jardins do Palácio Mayer, o Parque foi inaugurado em junho de 1922 e dinamizado pelo empresário Luís Galhardo, que ali quis montar um espaço de lazer. O tempo e as muitas visitas levaram ao recinto dos teatros de revista restaurantes, carrosséis, esplanadas, casas de fado, barracas de tiro, cinema, luta livre e até combates de boxe.
António Pires Coelho passa ali grande parte dos dias desde 1967, quando o padrinho de casamento o chamou para as bilheteiras. Nota que esta crise "é maior do que todas as outras", mas tem fé que o Parque Mayer possa sobreviver, como em outras ocasiões.
Durante o Estado Novo, "com a censura, os autores tinham de escrever duas revistas para levar uma à cena, pois os cortes eram muitos. Mas depois de estar em exibição era sempre em grande", recorda. Dos muitos bilhetes que vendeu, "a maior vedeta foi a revista ‘Até Parece Mentira’, em cena logo depois do 25 de Abril, quando muitos pensavam que este género ia morrer. Havia filas todos os dias e as duas sessões diárias esgotavam". Os ventos da revolução levaram também ao parque o filme ‘Garganta Funda’, que estreou no Capitólio’ e "chamou muita gente", lembra António Coelho. "Esperavam largas horas na avenida da Liberdade para conseguir um bilhete. Foi o primeiro filme pornográfico a ser autorizado e vinham velhotes, famílias, todos queriam ver o que aquilo era", diz, entre risos.
Mais tarde, nos anos 80, a crise do teatro superou-se com uma pista de patinagem transformada em discoteca no topo do Capitólio. "A Roller Dance foi um sucesso, chamava muita gente nova." Com o tempo, o espaço esmoreceu e resiste apenas com a boa vontade de quem ali trabalha. Ana Maria Lemos trocou o trabalho de professora do ensino básico pelas relações-públicas do Teatro Maria Vitória, acompanha as muitas excursões, e não se arrepende. "Vêm pessoas de todo o País, o que mostra que há vontade de ver a revista".
CAIXA
A REVISTA VIVE SEM SUBSÍDIOS
Um mínimo de 250 mil euros, um elenco de luxo e vontade são necessários para montar uma revista à portuguesa. Os números são avançados por Hélder Freire Costa, o único empresário em cena no Parque Mayer, que celebra 50 anos de atividade. Iniciou-se em 1964 no Capitólio, produziu as revistas mais emblemáticas do Maria Vitória e lançou uma nova geração de artistas. "Espero que o Parque Mayer se mantenha um espaço de cultura e lazer, moderno, adaptado às novas tecnologias e com teatros de renda compatível à exploração. A revista vive sem subsídios."
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