Tarefa dolorosa. Eram os mecânicos como eu quem saia dos helicópteros para recolher os cadáveres dos nossos camaradas. Contei mais de 60.
Saí dos Pupilos do Exército e fui para França tirar o curso de rádio de helicópteros Alouette III. Depois, fui mobilizado para Angola e colocado na Base Aérea 9, em Luanda, integrado na Esquadra 94. Depressa esqueci algumas teorias, pois no mato a realidade era bem diferente e sujeita a muitas condicionantes. Nas evacuações, éramos nós – os mecânicos, no meu caso de rádio –, que saíamos com a maca para recolher os feridos e os mortos. Era uma tarefa dolorosa.
Foram vários os Alouettes furados por projécteis inimigos mas, por sorte ou perícia dos pilotos, nenhum foi abatido. Alguns caíram por avaria e outros porque queríamos socorrer as nossas tropas em sítios inacessíveis, muitos na mata angolana. Só de uma vez morreram seis camaradas, um dos quais me pediu, à última da hora, para ir no meu lugar.
Durante as missões, todos os tripulantes se uniam nas adversidades, inventávamos e com espírito de humor, mas com responsabilidade, dizíamos: 'Isto está preso por arames, mas voa!' Foram vários os casos em que os rotores das caudas partiram e as aeronaves caíram no chão como pedras. Uma vez, numa operação de resgate de vítimas, o helicóptero teve uma grave avaria e valeu-nos a perícia do piloto que conseguiu desligá-lo no ar. Acabamos por cair desamparados na mata. Felizmente, ninguém morreu.
No primeiro ano de comissão (1965/66), os militares mortos no Ultramar não tinham direito a transladação para a Metrópole e nós não os podíamos transportar. Infringindo as normas, arranjávamos maneira de os resgatar, mais que não fosse para lhes fazermos um funeral digno. Colocávamos os cadáveres nas aeronaves e depois dizíamos que os homens tinham morrido a bordo.
Como fazia parte da tripulação de helicópteros, vi a guerra do Ultramar do ar. Só descia à terra para resgatar os feridos e os mortos, uma missão talvez mais complicada do que combater com as forças inimigas no meio do mato. Tínhamos de contar os mortos e só pela minha mão passaram mais de 60. Foi terrível e hoje ainda acordo a meio da noite a sonhar com esses momentos trágicos. A maior parte dos corpos de homens caídos em combate foi levada para Nambuangongo, cujo cemitério depressa ficou lotado. Em 1966, restabelecendo a mais elementar justiça, o Estado passou a assegurar o seu transporte de regresso à Pátria.
A nossa principal actividade desenvolveu-se na zona dos Dembos. À medida que as operações militares decorriam, saíamos ao nascer do dia de Luanda e só no ar é que recebíamos instruções sobre o nosso destino. Ficávamos nos acampamentos do Exército, em melhores ou piores condições, mas todos juntos: oficiais, sargentos e cabos especialistas. Éramos quem levava os militares, sobretudo os pára-quedistas, para os teatros de operações. Para os colocar no mato, cada Alouette transportava cinco tropas, além do piloto e de um mecânico.
No interior do helicóptero assisti às cenas de desespero daqueles que tinham de saltar para a selva, alguns deles para a morte. Muitas das vezes eram empurrados porque não tinham coragem para se atirar. Alguns partiram pernas ao chegar ao chão, porque a vegetação era alta e o helicóptero não podia baixar mais. Quibala Norte, Bela Vista, Santa Eulália, Quibaxe, Quicabo, Piri, Zala Úcua e a mítica Nambuangongo foram as zonas que mais nos serviram de base.
No terceiro trimestre de 1965 falou-se que Ernesto Che Guevara estava a combater na fronteira do Congo com Angola. Para nos certificarmos da veracidade da informação fomos para São Salvador do Congo. Participámos em várias operações na zona, por exemplo em Cuimba e Serra da Canda, mas nunca obtivemos qualquer confirmação. O mítico guerrilheiro refere no seu livro ‘Congo’ que estava lá nessa altura, mas a combater ao lado dos oponentes a Mobutu.
No terceiro semestre de 1966, com a ida da facção Chipenda para o Leste, a guerra agravou-se na zona. Disseram-nos que íamos para lá por oito dias, mas só fomos substituídos ao fim de 45. Estabelecemo-nos no recém-formado aeródromo-base no Cazombo e daqui partíamos para onde fosse necessário. Andámos pelos ‘cus de Judas’ – magistralmente descritos por António Lobo Antunes – estivemos em Lumbala e noutras terras perto da fronteira da Zâmbia. Nessa zona, os Fuzileiros e os Comandos foram os nossos principais companheiros. Levávamos os feridos para o Luso. A Esquadra 94 foi constituída em 1963 e continuou operacional até deixarmos Angola. Quem por lá passou jamais a esquecerá.
DO HELICÓPETRO PARA A RÁDIO
Quando regressou, Amílcar Pires ficou mais seis meses na Força Aérea e depois foi para a Emissora Nacional como técnico de rádio. Casou com uma mulher que conheceu em África. Tem uma filha, de 36 anos, médica, e teve um rapaz, que faleceu com 19 anos (1987), atropelado por um camião em Alcácer do Sal. Estudava Medicina. Enquanto trabalhava na rádio tirou o curso de Direito, mas exerceu pouco. Entretanto, ingressou na Função Pública, foi chefe aduaneiro do Aeroporto de Lisboa e reformou-se, em 1999, como director da Alfândega do Funchal.
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