A liberdade e a dignidade começam e terminam na capacidade de nunca nos conformarmos com a injustiça.
Após o estrondo das explosões que arrasaram a Europa, finalmente, fazia-se silêncio. O calendário indicava o dia 10 de dezembro de 1948 e os relógios pareciam saber que estavam em contagem decrescente para mais um evento canónico que marcaria o século. Numa assembleia da ONU, em Paris, respirava-se um clima de expectativa, apesar do ambiente assombrado pela história recente que traumatizou para sempre a humanidade. Estavam presentes na sala representantes vindos dos quatro cantos do mundo, que traziam consigo experiências únicas. Alguns eram sobreviventes de regimes derrotados, outros dos regimes vencedores. Apesar das diferenças entre si, todos concordavam que pior do que pensar no que se tinha passado era pensar na possibilidade de se repetir no futuro. A tinta das canetas ainda cheirava à pólvora dos campos de batalha e ainda ecoavam nos corredores os gritos das vítimas dos crimes que tinham sido cometidos naquela década. Preparavam-se para dar um passo gigantesco para a humanidade e adotar aquela que é uma das bússolas do homem do século XXI. Nascia assim a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
A cerimónia foi o culminar de um processo de elaboração do documento que começou logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a Comissão dos Direitos Humanos da ONU, liderada por Eleanor Roosevelt, ex-primeira-dama americana, pelo diplomata chinês Pen-Chun Chang e pelo libanês Charles Malik. Tinham sido incumbidos de dar uma resposta civilizacional ao abismo em que tínhamos caído como espécie. Tentava-se, nestes 30 artigos, impedir que toda a barbárie cometida naquele século encontrasse uma lacuna legal que a deixasse sem reconhecimento. Foi esse o espírito do documento: nasceu da necessidade vital de traçar linhas vermelhas. Foi uma forma de afirmar que nós, enquanto Seres Humanos, temos limites morais que não voltarão a ser ultrapassados. Foi um ponto de partida para expandir os direitos que até então eram apenas de alguns, a todos, independentemente da cor de pele, fé, género ou nacionalidade.
Como pretendido, e impulsionada pela memória das vítimas que lhe serviram de base, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não caiu em desuso e ao longo das décadas seguintes moldou e influenciou os princípios basilares de vários sistemas jurídicos. Em Portugal, basta folhear a Constituição da República Portuguesa de 1976 para encontrar, refletidos, muitos dos artigos da DUDH, como o direito à vida, à educação, à igualdade perante a lei e à liberdade de expressão. Os pilares das nossas democracias partilham a doutrina que se consagrou como Declaração naquele dia de dezembro em Paris.
Setenta e sete anos depois, o mundo mudou de forma quase irreconhecível e com ele os perigos aos quais devemos estar atentos. Apesar de muitas das garantias inscritas na DUDH serem “senso comum” - que às vezes não é assim tão comum - e estarem plasmadas em grande parte das legislações nacionais de uma forma ou de outra, não podemos dar por cumprido o respeito pelos direitos humanos. A luta é permanente, conta com avanços e recuos, e à medida que o tempo passa, os conceitos sofrem mutações. Um dos exemplos mais práticos é o da escravatura moderna. O artigo 4º da DUDH proclama, de forma clara, que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravatura e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”. Mas os contornos da realidade são outros. A 2 de dezembro de 2025, o Secretário-Geral das Nações Unidas, numa “Mensagem para o Dia Internacional para a Abolição da Escravatura”, assinalava que existem cerca de 50 milhões de pessoas presas em formas contemporâneas de escravidão, muitas delas mulheres e crianças, vítimas de tráfico humano.
Se acharmos que este fenómeno é um drama distante, basta olharmos para dentro de casa. Mesmo em Portugal – que é um Estado de direito, democrático e livre, em que a vulnerabilidade a este fenómeno é baixa - segundo o Global Slavery Index 2023, estima-se que cerca de 39 mil pessoas vivam atualmente em situação de escravatura moderna (Walk Free 2023, Global Slavery Index 2023, Minderoo Foundation). Ainda, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2024, apesar de espelhar uma realidade menos numerosa, indica que 76% - ou seja, 159 situações - de presumível tráfico tinham como fim a exploração laboral, principalmente para trabalhos agrícolas sazonais, das vítimas.
Mas não é só aqui que se têm testado os limites da DUDH. Com a chegada do espaço digital, o direito à liberdade de opinião e expressão, consagrado no artigo 19, enfrenta novos desafios, principalmente quando entramos no terreno dominado pelas plataformas digitais. Se é verdade que as redes sociais democratizaram o acesso à informação e servem de megafone às opiniões singulares, também abriram caminho à manipulação, à censura disfarçada e à desinformação.
Já no plano global, os direitos humanos ainda são diariamente pisados em zonas de guerra e por regimes autoritários. O direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, que são básicos e consideramos unânimes, parecem não contar em alguns lugares do planeta. Seja através das guerras - como a Guerra Civil no Sudão, que criou uma das piores crises humanitárias da atualidade, ou conflitos no Médio Oriente - repressão política - como na Venezuela - perseguições étnicas - como os Uigures na China - e religiosas - como os cristãos na Nigéria -, tudo isto pinta um quadro tenebroso que nos obriga a repensar se em 2025 estamos onde realmente queríamos.
É por isso que, passados 77 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos permanece como um farol para qualquer Estado que se preze, mas que por vezes não faz a sua luz chegar a todos os cantos do mundo. Já se sabe que não tem, e dificilmente terá, a força coerciva e a oponibilidade de uma lei nacional. Porém, não é por isso que deixa de servir como um indicador daquilo que se passa um pouco por toda a parte. É uma espécie de conjunto de valores que, na teoria, todos nós concordamos independentemente de onde ou quando nascemos. Como vimos ao longo das últimas sete décadas, a simples existência da DUDH não impediu - nem impede - atentados contra o Ser Humano. Contudo, sem ela, era mais difícil enquadrar esses crimes e as reações internacionais seriam mais morosas e difíceis.
Apesar de simbólico, o dia 10 de dezembro não deixa de ser importante. Devemos celebrar a declaração nessa data, mas preocuparmo-nos em honrá-la todos os dias. Esse é o verdadeiro tributo e compromisso que podemos fazer com quem nos suceder no planeta. E cumprir significa não só a abstenção de comportamentos que violem os artigos, mas também não ficar em silêncio quando, mesmo que do outro lado do planeta, alguém o faça. Foi no silêncio e na indiferença que a Humanidade tombou. Foi com a voz dos que recusaram o papel de cúmplice que se levantou.
Genuinamente, acho que devemos ser otimistas em relação ao futuro. Com a experiência dos meus 64 anos de vida, vejo as novas gerações, talvez por terem crescido num mundo mais homogéneo, a serem menos passivas perante abusos aos direitos humanos. A transparência trazida pelas redes sociais tornou mais visível e difícil de branquear este tipo de problemas, sejam eles numa estufa em Odemira ou na Faixa de Gaza. Cada vez mais, compreende-se que os direitos humanos são algo indivisível. Só se cumprem, se se cumprirem para todos, e não só para alguns. Porque a liberdade e a dignidade humana começam e terminam mesmo na capacidade de nunca nos conformarmos com a injustiça.
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