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Até ao céu

“O vizinho de baixo é um músico excêntrico que atravessa as madrugadas ao piano”

20 de janeiro de 2013 às 15:00

Ela pairava inocente no remanso de um casamento anódino quando descobriu por uma circunstância imprevista que o marido a enganava com a vizinha de cima. Não teria ficado a saber da conduta pérfida dele se não fosse abençoada com uma sensibilidade de perfumista. Mas era invulgarmente dotada para as fragrâncias mais exóticas e habituara-se desde menina a orientar-se no mundo pelo nariz. Poderia atravessar a cidade de olhos fechados que saberia reconhecer desde o perfume dos jacarandás floridos do parque à maresia salgada do estuário, no exacto ponto onde o rio se encontra com o mar.

Foi por acaso que se cruzou com a vizinha no elevador e percebeu nela o perfume inconfundível do marido, não o de marca mas o seu cheiro natural, pois era capaz de o identificar entre todos. Mais tarde, confirmou a sua certeza, verificando simplesmente que ele saía a seguir ao almoço e subia no elevador em vez de descer.

Não é tanto a traição do marido que a revolta, porque tomou consciência de que não era verdadeiramente feliz com ele, mas a ofensa irreparável de a ter trocado por uma mulher quase vinte anos mais velha. Porém, surpreendendo-se no espelho a seguir ao banho no esplendor dos seus trinta e dois anos ainda irrepreensíveis, tem uma inspiração providencial e, quando ele sai de casa e sobe ao andar de cima, ela faz o mesmo em sentido contrário.

O vizinho de baixo é um músico excêntrico que atravessa as madrugadas ao piano, tocando os compositores imortais, e adormece vestido entre pautas dispersas e garrafas de vinho. Ela costuma deleitar-se com a sua música encantadora, que lhe chega pelos insondáveis interstícios do prédio, mas nunca se sentiu atraída por ele porque, ao contrário dos sons perfeitos que lhe saem da alma, é amarrotado por natureza, não corta o cabelo e esquece-se de tomar banho. E ela é sensível ao cheiro. Apesar disso, bate-lhe à porta a seguir ao almoço e, fechando-a atrás de si, afasta as duas alças do vestido fino, deixando-o deslizar até ao chão pelo corpo de sereia, ficando defronte dele completamente nua. O músico estremunhado abre a boca pastosa do sono tardio, do vinho barato, mas não lhe sai palavra. Ela encolhe os ombros, faz um sorriso ingénuo. O meu marido está com a vizinha de cima, diz.

Depois do pianista, já se entregou a prazeres libertinos com o bancário do primeiro esquerdo, o construtor civil do segundo direito, o estudante do quarto esquerdo. E está tão deliciada com a sua desforra perversa que tenciona continuar a subir até ao céu, que, no caso, é o décimo andar, onde só vive o herdeiro ocioso que dá festas memoráveis.

Texto escrito com a antiga grafia

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