Começou na rádio. Estreou-se no cinema. Fez televisão. Mas é no teatro que o público a conhece e a reconhece. Carmen Dolores. Voz que consegue pronunciar o silêncio. Pisou o palco pela primeira vez em 1945, na Companhia Os Comediantes de Lisboa. Depois, foi somando inúmeros sucessos. Interpretou Goldoni, Moliére, Brecht ou Almeida Garrett. Em 2003 disse adeus à senda artística. Quer viver os seus invisíveis 83 anos fora de cena.
- É verdade que Carmen Dolores vai sair de cena?
- Ora aí está uma grande verdade! Quero me poupar e poupar a minha saúde, e mais que querer, necessito de ter tempo para mim. Gosto da minha solidão. Gosto de estar comigo.
- Em 1998 disse que ia deixar o palco, mas regressou em 2003 com ‘Copenhaga’, de Michael Frayn. Talvez mude de ideias outra vez...
- Não! Naquela altura apanharam-me de maré. O João Lourenço mandou-me a peça e eu interessei-me por ela e pelo papel, que não era demasiado cansativo. Mas basta! Preciso de descontrair.
- O teatro é obsessivo?
- Bastante. O actor tem de estar bem todas as noites porque o público está à nossa frente e é impossível existir quebras. Além do mais, eu sou uma pessoa bastante crítica em relação ao meu trabalho, e o facto de não me poder ver em cena deixa-me ansiosa. Ao longo da minha carreira, o que me faltou foi a possibilidade de me ver. Em contrapartida a televisão e o cinema deixam-me ser crítica de mim própria.
- O que sente ao rever-se no ecrã?
- Às vezes, quando me revejo em alguns filmes que protagonizei, fico aflita.
- Tenho vergonha… Coitadinha… fazia o que podia! Se voltasse a fazer ‘Copenhaga’ tenho a certeza de que faria melhor. Sinto sempre que podia ter feito mais e melhor.
- Como é que uma actriz com 68 anos de carreira encara a experiência de já ter contracenado com a nova geração de actores?
- Muito positiva. É sempre bom trabalhar com pessoas novas e com talento. Por exemplo, Paulo Pires, que é um profissional fora de série. Assim como o Diogo Infante, um excelente encenador e actor, e Alexandra Lencastre e Natália Luiza, que são formidáveis.
- Quem já desempenhou papéis de autores como Dostoievski, Shakespeare, Strindberg, gostou de fazer novelas?
- Sim, apesar de ser um trabalho muito em cima do joelho. Não há tempo para o aperfeiçoamento. Mas é um bom treino e é óptimo exercício de memória.
- Nas novelas, o público confunde o actor com a personagem?
- Imenso. Numa ocasião, quando estava a fazer a novela ‘Passerelle’, onde desempenhava o papel de uma mulher cujo marido tinha uma amante, ia no elevador da Glória e uma senhora sentou-se à minha frente e exclamou: ‘Coitada! Compreendo-a tão bem. Tenho um marido igual ao seu!’
- Na vida real, o seu marido continua a ser o seu acérrimo crítico?
- Sim! É o meu crítico mais exigente e não há opinião que, para mim, conte tanto como a dele. Às vezes, nas estreias, até lhe dizia: ‘É melhor não ires….’ Eu costumo dizer que ele gosta mais de teatro do que eu.
- Detesta que se refiram a si como uma grande senhora do teatro...
- Acho um horror! Faz-me imensa impressão quando me dizem essa frase. As pessoas, e com toda a boa intenção do Mundo, pensam que me estão a elogiar, mas eu considero essa expressão demasiado pesada.
- As pessoas vão ao teatro assistir a uma peça ou vão ver o actor?
- Ainda há poucos dias fiz essa pergunta a mim própria e, inclusive, registei-a no meu segundo livro de memórias, que será editado no próximo ano. Não sei. Mas há um facto indubitável, e não é puxar a brasa à minha sardinha, quando as pessoas me perguntam ‘O que é que está aí para se ver’, após a minha resposta, elas querem logo saber quem são os actores do elenco.
- À excepção da sua interpretação no filme ‘A Vizinha do lado’, todos os seus papéis foram dramáticos. Porquê?
- Naquele tempo, os actores eram catalogados. Se o artista interpretasse bem o papel de mau da fita ou de rainha, havia a tendência para que se repetisse.
- Qual era o seu rótulo?
- Desde a ‘Teresa’ de ‘O Amor de Perdição’ fui logo rotulada como dramática, romântica e, na maioria dos casos, fazia de tuberculosa que morria de amor! Eu não me importava. Nesse campo havia um público imenso. As pessoas eram mais românticas do que hoje.
- Como é que António Lopes Ribeiro descobriu, em 1942, uma jovem que recitava poemas?
- Foi num evento ligado à rádio: queríamos fazer um grupo teatral de estudantes e o António estava lá para encenar a peça. Nunca mais esqueci o que recitei – ‘À Virgem Santíssima’, de Antero de Quental. Ele disse-me que eu tinha uma voz muito bonita. Depois, perguntou-me como é que eu me chamava. Mal lhe disse o meu nome, ele exclamou que Carmen Dolores era um excelente nome de cartaz!
- Nome sonante, pouco lusitano…
- A minha mãe, filha de um judeu inglês, nasceu em Madrid. Era uma bailarina excepcional, conheceu o meu pai, um jornalista português, em Espanha.
- Como é ter trabalhado com ícones do teatro português?
- É maravilhosa. Mas eu achava tudo aquilo natural. O meu pai, além de ser jornalista, traduzia peças teatrais, o que implicava que muitos artistas telefonassem para a nossa casa e fossem visita rotineira. Talvez seja por isso que eu nunca vi, por exemplo, Maria Amélia Rey Colaço, Palmira Bastos, Ribeirinho como ídolos, mas simplesmente como seres humanos.
- O teatro mudou bastante. Para melhor ou para pior?
- Houve coisas boas. Havia mais regularidade na produção, mais companhias teatrais estáveis... Por outro lado, havia a terrível censura. Quando fundei, juntamente com o Armando Cortez, o Rogério Paulo e o Fernando Gusmão, o Teatro Moderno de Lisboa, tivemos de fechar as portas ao fim de três épocas. A PIDE perseguia-nos dia e noite.
- O Teatro Moderno de Lisboa, morto pela PIDE, será reavivado num livro de Tito Lívio. Para quando está previsto a edição?
- Em breve. É um projecto muito interessante e histórico. Reúne imensos depoimentos. Aqueles três anos foram muito complicados, a esmagadora maioria das peças de teatro que obrigatoriamente tínhamos de enviar ao índex era cortada ou mutilada. Mas mesmo assim, acho que fizemos mais do que era possível.
- Pode-se dizer que a sua voz é a sua carótida?
- Sim. Em tudo o que faço, a minha voz está e existe. Quando estou a escrever e estou calada, sinto que as coisas não me saem bem. Até uma carta eu gosto de redigir em voz alta.
- Quando é que a poesia entra na sua vida?
- Desconheço se foi ela que foi ao meu encontro ou se fui eu que andei à procura dela, mas sei que desde sempre a poesia fez parte de mim. E continua. Adoro declamar poemas ao ar livre. Às vezes, vou à Gulbenkian e, no meio das árvores, declamo.
- Portugal é um país de poetas que não investe na poesia?
- Sim. E é uma pena. Nas livrarias os livros de poesia estão escondidos. Em 2003, gravei um CD com poemas por mim escolhidos, mas saiu do meu bolso. Desde que morreu Eduardo Street o teatro radiofónico morreu também.
- Na sua carreira, existe algo que lamenta?
- Não me posso queixar. As coisas vieram sempre ter comigo. Há pessoas com mais talento que não tiveram as oportunidades que eu tive. Felizmente, as coisas aconteceram-me. Acho que tive sorte. Há quem diga que isso se deve ao facto de eu ser do signo Touro.
- Acredita na astrologia?
- Não, mas acho graça. Às vezes leio coisas que coincidem comigo. Tive colegas que acreditavam, como o Jacinto Ramos, que até me fez a carta astral. E, curioso, tudo, ou quase tudo, coincidia com a verdade.
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