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Como é viver vestindo a pele dos outros

As técnicas são várias e às vezes é preciso aprender a tirar cafés ou a voar no trapézio

15 de julho de 2018 às 00:30

Vestir a pele dos outros não é fácil, mas esse é o dia a dia dos atores. As estratégias são mais que muitas, num vale tudo que vai desde exercícios de improviso a trabalho de campo que já levou muitos atores profissionais a aprender a tirar cafés, a tocar violino ou a passar uns dias no hospital. Tudo em nome da credibilidade que se quer ver e aplaudir, no palco ou no ecrã.

Foi essa busca de naturalismo que pôs o ator Miguel Costa a aprender malabarismo e a movimentar-se num trapézio. A sua próxima personagem na telenovela ‘Alma e Coração’ é um artista e professor de artes circenses e Miguel Costa não quis deixar créditos em mãos alheias. "É claro que, nestes casos, existem duplos e eles substituem-nos sempre que necessário, mas nós, atores, também gostamos de dar o máximo de nós à personagem. Quis logo aprender tanto malabarismo como trapézio, aliás, ainda estou a aprender a tornar-me mais competente para que, à medida que a novela avança, podermos ir fazendo cada vez melhor, dispensando os duplos e oferecendo mais qualidade e verdade ao público."

Mas chegar a esta verdade é outra história, que não foi feita para corações sensíveis nem para gente com vertigens. Felizmente, Miguel Costa sempre sentiu uma certa atração pelos malabares e desde que assumiu o papel passou a frequentar encontros de malabaristas e a treinar. Muito. Tanto que até já abriu um lábio.

"Agora ando sempre com as bolas, os malabares e os arcos para todo o lado e treino a toda a hora. Felizmente, lá em casa, as minhas filhas acham piada", conta.

Mas a ‘pièce de resistance’ da encenação é mesmo quando tem de desafiar as alturas e subir para o trapézio. "Tinha algum receio. Felizmente, nunca tive vertigens, há muitos atores que têm. Mas treinamos com a ajuda de quem sabe, com o trapézio mais baixo, e tem sido muito giro", explica, momentos antes de entrar na tenda de circo que serve de ‘décor’ e onde decorrerá grande parte da ação.

Quem também andou nas alturas foi São José Correia, quando participou em ‘Worms’, um espetáculo de Rui Neto. "Supostamente passava 45 minutos em queda permanente, o que significava representar deitada sobre uma grade, presa por um braço, o que é uma posição antinatural", recorda. Por isso, a entrega tem de ser total. "A ponto de acreditarmos que estamos a viver aquilo, que estamos a cair."

Outros papéis não exigiram tanto fisicamente, mas fizeram-na escalpelizar outros mundos. Foi o caso de Antónia, da telenovela ‘Santa Bárbara’: "Uma vilã do piorio. Mas na altura, por coincidência, estalava o escândalo do Ricardo Salgado e vinham à baila todos os dias nomes de poderosos corruptos. Inspirei-me muito nisso, porque a Antónia era assim um bocado a ‘dona disto tudo’, tinha a arrogância de quem põe e manipula tudo e todos", recorda a atriz.

Talvez por isso, o ator João Didelet frisa que quanto mais distante a "personagem é, mais complicada se torna". Como foi, por exemplo, o Radu, de ‘A Única Mulher’. "Fazer de sociopata – e já me tocou por duas vezes – foi o mais complicado. Foi preciso ler muito sobre o tema e recorri, inclusivamente, a conversas com amigos meus que trabalham na área da Psicologia", afirma João Didelet. No que diz respeito a trabalho de campo, o ator já teve de aprender a arte do volteio - uma disciplina artística e desportiva na qual os atletas executam movimentos sobre o dorso de um cavalo em movimento - com os homens da GNR no quartel da Ajuda. Didelet também já viveu alguns dias no meio do campo, em Estremoz, para construir a personagem de ‘Belmonte’, um agricultor falido mas de bom coração que vivia num moinho.

O trabalho de aproximação é "essencial para arranjar as respostas que procuramos para a construção da personagem", frisa, por seu turno, a atriz Alda Gomes. Uma das personagens mais exigentes que alguma vez encarnou foi no filme ‘Ganhar a Vida’, de João Canijo.

"Era muito intensa e complexa. Tive que aprender a falar o básico em francês, em apenas duas semanas, antes das filmagens. Convivi com grupos de jovens franceses que estavam integrados na produção do filme e frequentei a casa de emigrantes portugueses. Participei em grupos de folclore e tentei obter o máximo de informação que consegui junto dos mesmos, para a tornar credível."

Dar liberdade

Em breve, Alda Gomes será uma hospedeira apanhada num ataque terrorista nas Galinheiras, na comédia ‘nonsense’ de Manuel Pureza e Sérgio Graciano, que no dia 26 chega às salas de cinema. Ali, todos os atores saem da sua zona de conforto. "Acho que é até uma coisa que os atores querem, porque estão fartos das personagens tradicionais, o vilão e a boazinha", refere o realizador Manuel Pureza. E como se consegue o efeito surpresa? "Dando-lhes liberdade de improviso e de criação. O que fiz foi distribuir-lhes muitas daquelas comédias ‘nonsense’ dos anos 80, tipo ‘Onde é que Pára a Polícia?’ e pedir-lhes que trouxessem as suas próprias ideias", revela Manuel Pureza.

Por isso, não é de estranhar que um ator esteja sempre em busca, como refere Marcantonio del Carlo. "Vou a todo o lado vampirizar o que for preciso para descobrir uma maneira de andar, uma voz, um sentir de uma personagem", afirma o ator que aprendeu com "grandes mestres" - como João Mota e Luís Miguel Cintra - que o "simples é que é difícil de alcançar. A técnica do ator deve ser usada sem que o espectador se aperceba disso. E o difícil é exatamente isso". Mas é o que vai ter mesmo de fazer para dar corpo ao Paulo de ‘Alma e Coração’: "Estou agora a dar os primeiros passos com a personagem da novela, que é muito difícil de interpretar, pois exige uma série de maneirismos que não são meus", justifica.

Disso fala também Maria João Bastos. "Cada ator trabalha à sua maneira e dependendo da personagem que tem entre mãos. O processo é muito variável, mas é muito mais exigente do que se possa imaginar... e ainda bem! Uma vez li uma frase do Robert de Niro que ficou: ‘eu sei que estou a fazer um bom trabalho quando me dizem que parece que é fácil’. Por trás é um trabalho de uma entrega física e emocional muito grande, muitas horas de trabalho e ensaio. Temos de sentir as angústias, as dúvidas, as emoções daquela pessoa para que o público as possa sentir também."

Autênticas ‘esponjas

Há alguns anos, Maria João Abreu fez no Teatro Aberto ‘As Presidentes’. "Eu era uma empregada de limpeza que desentupia as retretes com as mãos e passava a peça euforicamente a falar disso e das coisas que de lá saiam. E essa foi uma das personagens mais difíceis que já fiz, por falta de referências", recorda.

É na observação dos outros e do pulsar do quotidiano que Maria João encontra a matéria prima para trabalhar. "Estou sempre a observar, a absorver a maneira como as pessoas falam, comportam-se ou gesticulam. É frequente ver alguém na rua e, pelo semblante, pôr-me a imaginar como será a sua vida, porque é que está triste ou feliz e esse exercício é-me essencial para depois transportar para o palco as emoções e as vivências que elas me convocam."

Para dar vida a Isabel Galvão (‘Paixão’), por exemplo, em que interpreta uma mãe que nunca deixou de procurar a filha desaparecida há 20 anos, quando toda a gente a acusava de seguir com a sua vida para a frente, a atriz viu muitas entrevistas de Filomena Teixeira, a mãe de Rui Pedro, o menino desaparecido em Lousada, em 1998. "Para perceber como é que aquela mãe agia, como se sentia. Isso acaba por tornar essas personagens muito marcantes também para os atores porque vivenciamos o seu sofrimento."

Mas a forma como o ator trabalha "nunca é igual", refere por seu turno Sandra Celas. "É sempre muito alquímico. Temos várias formas de aproximação. Por exemplo, já fiz uma adicta em tranquilizantes e antidepressivos e foi preciso documentar-me sobre o assunto. Num telefilme em que fiz de médica tive de ir a um hospital e aprender com os profissionais de saúde a reanimar uma pessoa. Também já aprendi a disparar uma arma", recorda. Para vestir a pele de Júlia, a jornalista de ‘Inspetor Max’, Sandra Celas inspirou-se numa amiga jornalista e também "numa figura muito conhecida e muito determinada da comunicação social". Mas aqui até nem era complicado, pois Sandra Celas chegou a fazer jornalismo antes da carreira de atriz.

Entre os mais difíceis que fez está, sem dúvida, uma certa rainha de copas de ‘Alice no País das Maravilhas’: "Tinha um lado retorcido e maquiavélico muito evidente e, ao mesmo tempo, um lado cómico. Mas era em teatro, em que temos muito mais tempo para a dramaturgia e para um trabalho muito mais estilizado e elaborado", garante.

Esforço físico

Para Carla Chambel, houve ‘mulheres’ que a desafiaram de verdade: "Helena Tavares, subcomissária de uma equipa da Brigada de Investigação Criminal da PSP no filme ‘4.ª Divisão’, de Joaquim Leitão, foi um osso duro de roer. Depois a Marina de ‘Bem-vindos a Beirais’. Nunca tinha estado num balcão a tirar cafés!", conta.

No caso da subcomissária foi um processo de preparação em várias frentes. Primeiro, houve uma preparação física exigente com uma treinadora pessoal (Teresa Monroy). "Ela completou o trabalho também com um processo mental, para trabalhar a minha assertividade, uma atitude mais fria e dura. Depois passei por uma formação com um agente da PSP, Rúben, que me ensinou a fazer detenções, uso e porte de arma e levou-me durante uma manhã para um campo onde tive de responder a várias simulações e agir de acordo com isso. Foi fantástico." Por último, a atriz teve treino de luta com o duplo David Chan, dos Madstunts e pôde ensaiar previamente com o ator Miguel Melo, com quem teve de ‘ajustar contas’!

"No caso da subcomissária, a realidade daquela personagem estava completamente longe da minha. Para mim foi uma surpresa conseguir este papel, porque sou mais doce, menos segura do que ela aparentava ser. Geralmente, veem-me como a sofredora, a desprotegida. Foram duros os treinos, mas sobretudo a atitude psicológica foi o maior desafio", conta Carla Chambel.

Foram muitas horas de preparação e estudo, muito antes de começar a rodagem. "Procuro numa primeira abordagem analisar o texto, percebê-lo bem, anotar os possíveis pontos de clímax da personagem. Tento falar com pessoas que estejam próximas da realidade da personagem, ou procuro na internet. Às vezes inspiro-me em quadros, principalmente quando se trata de trabalhos de época. Mas o mais importante é o trabalho com os outros atores e a direção do realizador, encenador ou diretor de atores. As personagens são também um reflexo do que os outros fazem. Essas memórias de trabalho são as melhores para depois usá-las na cena. Para mim, a escuta e a disponibilidade para receber o que o outro dá são as minhas ferramentas prediletas", confessa.

Já no caso da Marina, de ‘Bem- -vindos a Beirais’, Carla mergulhou na vida da vizinhança.

"Pedi para me aceitarem num café da Portela, onde moro, para servir cafés e aprender as rotinas de um balcão e serviço às mesas. O senhor Capela foi o meu mestre. A minha grande vitória foi quando comecei a conseguir levar dois cafés na mesma mão. E depois pratos. Uma experiência magnífica e verdadeiro trabalho de malabarismo! A ideia era estar completamente à vontade com o trabalho para não ter de pensar nele durante as gravações. Na televisão é tudo muito rápido, temos que assimilar as informações e marcações do realizador com muita rapidez, há poucos ensaios. Portanto, quanto mais ágil fosse com o trabalho da personagem, mais eu podia focar-me naquilo que era realmente importante: contar a história, emocionar- -me", explica a atriz.

E depois há o espaço para a fantasia: "Diverti-me imenso a mimar ações detrás do balcão. Cortar queijo, chouriço, fazer sandes, descascar fruta, fazer listas de compras, sem ter um único objeto para usar. Cabia à imaginação do espectador preencher esse espaço."

Em televisão e cinema, o ator ensaia maioritariamente sozinho. "Se houver disponibilidade dos outros pode acontecer aquilo a que chamamos ‘passar texto’ antes de gravarmos. Em teatro, o processo é mais coletivo. Somos, por vezes, os espelhos uns dos outros para melhorarmos, para encontrar novas soluções", explica Carla.

Para Heitor Lourenço tudo começa com a "fisicalidade" da personagem. "Eu preciso senti-la primeiro que tudo e isso pode ser adquirido a olhar para uma pintura ou a ouvir uma música. Houve uma personagem que me surgiu assim, de uma ópera. Funciona como um gatilho para encontrar a verdade sobre aquele caráter, para poder vivê-lo e respirá-lo."

Também Heitor Lourenço já teve de aprender a montar a cavalo, a falar espanhol, a tocar piano e até violino mas, acima de tudo, faz "muitos exercícios de improvisação". Ainda assim teve personagens que lhe deram dores de cabeça. E de costas. "Aconteceu no final de ‘Bem-vindos a Beirais’. Eu fazia um tipo soturno, que tinha uma agência funerária, com uma postura tensa e, no final da novela, acabei por ter alguns problemas físicos com aquela má postura", recorda. Mas o ator e diretor artístico gosta de frisar que "não é preciso passar pelas mesmas situações ou ter vivido aquilo" para interpretar certas emoções. "Se vestirmos a pele de um assassino, não vamos matar ninguém", ironiza Heitor Lourenço.

A perspetiva é defendida por Inês de Medeiros: "A leitura e o entrosamento com o próprio texto são essenciais. Preciso, primeiro que tudo, de perceber o pensamento daquela personagem. Até um assassino tem um pensamento próprio, e é essa lógica que é preciso alcançar", diz. ‘Casa de Lava’, em que foi dirigida por Pedro Costa, foi um dos trabalhos em que a preparação assumiu uma dimensão especial. "Porque o Pedro consegue explicar-nos o que pretende mas sem grandes palavras. O que ele vai fazendo é passar-nos filmes, notícias, excertos de poemas, fotografias e imagens que nos ajudam a situar-nos naquela atmosfera e a construir o papel, seguindo as suas próprias referências."

Despir a personagem

Quem vive a fazer de conta tem também o reverso da medalha: há papéis que são igualmente difíceis de despir. Maria João Abreu, que há pouco mais de duas semanas parou de ‘ser’ a sofrida Isabel Galvão, da novela ‘Paixão’, está a fazer o necessário distanciamento e confessa que "é difícil".

"Foi uma personagem que sofreu muito, que passou o tempo todo deprimida e a chorar e esse estado emocional, ao fim de mais de um ano de gravações, acaba por entranhar-se também nos atores. Até chorei em dias de folga".

Quanto à Rainha de Copas do conto de Lewis Carroll que Sandra Celas levou à cena, o mais difícil foi mandá-la de volta para o país dos contos. "Talvez por ser uma senhora da nobreza, muito determinada, com muitos tiques e um carisma particular, dou por mim a usar as mesmas expressões que ela usava. Até já a minha filha diz: ó mãe, essa não eras tu, era a rainha!"

Também para Carla Chambel, há tiques que demoram a esquecer, mesmo para lá do palco. "Assim como preciso de fazer um aquecimento antes do trabalho, também preciso de fazer um arrefecimento. Fazer essa transição entre o que somos na cena e o que somos cá fora. Geralmente, demoro a vestir-me, a sair do camarim, conduzo o carro devagar. Ajuda a não sobrecarregar aqueles com quem vivemos com esta montanha russa de emoções que é a arte de representar."

Trabalho de campo

Da rua para o cinema português

O realizador João Canijo é conhecido por levar os seus atores a experimentar muito intensamente o trabalho de campo. Para o filme ‘Fátima’, as atrizes estiveram a viver várias semanas em Vinhais, Trás-os-Montes, e saíram de vários pontos do País com grupos de peregrinos, com direito a lágrimas e bolhas nos pés. Numa outra produção sua, ‘Sangue do Meu Sangue’, o elenco também viveu algumas semanas num bairro degradado da Amadora, antes da rodagem. Já o livro ‘Cem Mil Cigarros’ é uma coleção de textos sobre a obra cinematográfica de Pedro Costa, escrita por 28 críticos, ensaístas, cineastas e artistas portugueses e estrangeiros, em que se reúnem alguns dos textos que deram origem à obra do realizador e que também ajudavam à construção das personagens.

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