É um dos ‘mercados francos’ mais antigos de Lisboa, com história desde o século XIII. Hoje continua a ser palco privilegiado para a transacção de produtos roubados. Quando muda o turno da Polícia, é aproveitar para vender às escondidas.
“Aproveitem agora que a bófia foi embora! Por mil paus, perdão, por cinco euros, leva doze pares de meias da melhor qualidade, acabadinhas de roubar. Pelo mesmo dinheiro pode levar estas ‘Lacostes’ verdadeiras.” Esta é uma das muitas ofertas que podem ouvir-se na Feira da Ladra, em Lisboa, aos sábados e às terças-feiras, entre as 13h00 e as 14h00, altura em que os fiscais da Câmara de Lisboa e os agentes da PSP e da Polícia Municipal deixam de estar no Campo de Santa Clara, devido à mudança de turno e à hora de almoço.
Além das meias e das ‘Lacostes’, aparecem ainda telemóveis, auto-rádios, televisões, tabaco, perfumes, armas e toda uma parafernália de produtos que os vendedores não se atrevem a apregoar ou a expor enquanto as autoridades estão presentes. É também durante essa hora que a feira se enche de clientes. Um momento que provoca gigantescos engarrafamentos nas ruas circundantes e em que há mais roubos do que o normal.
“É nesse período que a feira revive o espírito que lhe deu tanta fama, em Portugal e no estrangeiro. Ou seja, é quando aparecem mais coisas roubadas a preços incríveis. Já houve vários turistas, aliás, que me disseram que a hora do almoço lhes tinha sido recomendada como a melhor para visitar a feira. Mas também acrescentaram ser nessa hora que devem ter mais cuidado com a carteira”, diz um dos feirantes.
PROBLEMAS DE SEGURANÇA
Luís Monteiro, adjunto do vereador Pedro Pinto da Câmara Municipal de Lisboa, reconhece que a questão da segurança é um dos principais problemas da feira: “Posso adiantar, no entanto, que nos últimos tempos temos reforçado o contingente de polícias municipais. Além disso, já solicitámos um reforço e uma maior atenção à PSP nas alturas de mudança de turno”, ressalva.
Apesar dos roubos, cuja autoria é invariavelmente atribuída a toxicodependentes ou a ‘gangs’, Luís Monteiro afasta qualquer possibilidade de a Câmara acabar com a feira ou mudá-la de local. “A única coisa que estamos a pensar é em construir um auto-silo ou parque de estacionamento subterrâneo. Não sabemos ainda quando nem onde. Posso garantir, porém, que não vai colidir com o mercado de Santa Clara. Aliás, nem tal podia ser, dado que de trata de uma zona classificada.”
“Lembro, por outro lado, que no caso dos toxicodependentes, a Polícia Municipal, por muita boa vontade que tenha, não pode fazer tudo, visto estar limitada pela lei”, acrescenta. Muitos feirantes ilegais e ladrões “trabalham” impunes durante anos.
COM O MATERIAL ÀS COSTAS
A pouca segurança, a escassez de lugares de estacionamento e a fiscalização pouco eficaz são exactamente as principais queixas ouvidas aos feirantes com banca na Feira da Ladra. Apesar destes problemas, todos consideram que aquele que é um dos ex-líbris lisboetas deve continuar onde está.
Francisco Miranda, de 61 anos, vende notas e moedas antigas. “Venho a Santa Clara há mais de 25 anos. E nos últimos tempos isto parece mais uma feira de automóveis do que outra coisa qualquer. Aos sábados, por exemplo, já sei que, se chegar depois das sete da manhã, tenho de deixar o carro muito longe. Além disso, arrisco-me a ter de andar com o material às costas a ver se encontro um fiscal para poder ocupar o lugar que me custa cerca de 25 euros por mês”, refere, frisando que, “tal como a maioria das pessoas”, também já foi roubado. “Então isto não é a Feira da Ladra? De qualquer maneira, nesse aspecto, a coisa tem melhorado...”, ressalva.
DESDE AS CINCO DA MANHÃ
Na banca ao lado, as futuras professoras Tatiana e Alexandra – estudam ambas na Escola Superior de Educação, de Setúbal – concordam com Francisco Miranda. “Por acaso, nunca fomos roubadas. Mas temos de estar sempre bem atentas. Se nos distrairmos, já sabemos o que acontece”, diz Tatiana, enquanto Alexandra lembra o que sucede por não terem banca fixa. Ambas vendem roupa em segunda mão. “Aos sábados já sabemos que temos de vir para aqui dormir. O que interessa, no entanto, é que não acabem com a feira.”
Pedro Afonso também não tem banca fixa e queixa-se da falta de policiamento. Vende jogos para consolas e computadores, e, para assegurar um lugar com “bastante movimento”, chega à feira antes das cinco da manhã. “Custa, mas tem de ser. Tenho é pena de que um dos locais de Lisboa com mais turistas não seja devidamente vigiado pela Polícia”, lamenta Afonso.
PRODUTOS NOVOS E USADOS
Até à última década do século XX, a feira esteve “ameaçada” com a invasão de produtos novos. “Isto chegou a parecer a Feira de Carcavelos”, diz um dos feirantes, lembrando que, antigamente, o espaço para a venda de velharias, artesanato e objectos usados começou a diminuir, o que levou muitas pessoas a protestarem junto da Câmara Municipal de Lisboa. A autarquia reconsiderou e, segundo Luís Monteiro, desde 1990 que vereacção deixou de emitir licenças para os produtos novos. “A filosofia da feira sempre foi a de compra e venda de produtos em segunda mão. É este espírito que estamos empenhados em manter”, sublinha Monteiro.
Actualmente, no Campo de Santa Clara, estão 368 feirantes com licença fixa: 65 para artigos novos, 272 para usados, 28 para artesanato e três para um misto de novos e usados. Por mês, são emitidas cerca de 300 licenças chamadas “acidentais”. Quem vende produtos novos paga 9,5 euros por metro quadrado. Quem vende usados paga apenas 2,3 euros pelo mesmo espaço.
HISTÓRIA DO ‘MERCADO FRANCO’
Fama antiga A história e a fama da Feira da Ladra já vem de longe. Eduardo Freire de Oliveira, em “Elementos para a História do Município de Lisboa”, diz que a tradição remonta ao século XIII. O arqueólogo Augusto Vieira da Silva refere que a denominação vem de “ter havido algum dia, entre os feirantes, uma mulher que, com razão ou sem ela, era alcunhada de ladra”.
O nome oficial de Feira da Ladra só aparece escrito em 1610, quando as autoridades de Lisboa emitiram uma postura onde se lê: “Para se evitarem os roubos e furtos que nesta cidade se faziam, que daqui em diante nenhuma pessoa, de qualquer estado ou condição que seja, venda nem compre coisa alguma da Feira da Ladra.”
Um nome por decifrar Outros historiadores defendem o nome como ligação a Sainte Ladre, famosa feira de Paris, ou ao piolho ladro, termo que significa imundície, coisa velha. Outros ainda asseguram que a denominação provém do facto de a maioria dos objectos vendidos serem produtos de roubo.
Durante algum tempo, a Feira da Ladra foi conhecida como Feira das Almas. Quanto a este termo, há duas versões. Uma diz que um dos produtos mais vendidos eram restos ou aparas de couro, a que os sapateiros chamam “alma”, dado que são aplicados entre as solas e as palmilhas. A outra versão: como o mercado abria ainda de noite, era alumiado por velas de sebo — o que, à distância, produzia um efeito fúnebre e levava as pessoas a dizerem que vagueavam por ali almas do outro mundo.
Localização De acordo com vários investigadores, como o historiador e “olisipógrafo” Mário Costa, o “primeiro mercado franco” de Lisboa terá tido como localização inicial a Ribeira Velha. Mais tarde passou pelo Paço da Ribeira, Castelo de São Jorge, Rossio (perto da Alcáçova), Bemposta, Praça da Alegria, Campo de Santana e Passeio Público.
Até que, no dia 4 de Abril de 1882, a Câmara de Lisboa mandou fixá-la no Campo de Santa Clara, onde ainda se encontra. Ali se encontra “entalada” por edifícios maneiristas, barrocos e neoclássicos.
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